Ana Carvalhaes*
O andar de baixo e a esquerda brasileira vivem um capítulo dos mais decisivos da História, embora com muita sombra, neblina e perigos na estrada. O cenário brasileiro, nada estável desde 2013-2014, foi invadido por uma pandemia e uma recessão globais, sob um governo neofascista que esperneia de ódio, nega a crise e acelera seu projeto autoritário-ultraliberal.
É como se a pandemia tivesse arrombado a porta da História, mudado o script e bangunçado os ritmos da crise – sem apontar qualquer “signo” ou direção para os dilemas do país. Cada vez mais, no próximo período, o global e o nacional – o “externo” e o interno – vão se articular de forma inseparável. Não há análise e política possíveis de uma perspectiva apenas nacional: tal como a pandemia é global, é igualmente planetário o fenômeno dos neofascismos.
Já temos 25 mil mortos pela Covid-19, quase 400 mil contaminados, perto de mil vidas a menos a cada 24 horas, as UTIs em colapso, filas desumanas por um auxílio que mal mata a fome, projeção de retrocesso econômico entre 5% e os 7,5% do PIB – que se traduzirá em mais desemprego e miséria acentuada. Talvez das piores perfomances do mundo frente ao vírus, preço a pagar pela desigualdade estrutural e pela natureza dos ocupantes do Planalto e da Esplanada.
E, yes, nós temos, como se todo o anterior fosse pouco, o agravamento da crise político-institucional, a mais longa e mais séria das última três décadas, talvez da História da República. Crise que é mais um capítulo da longa e profunda crise nacional brasileira, escancaradamente aberta quando a esmagadora maioria do capital no país decidiu se desfazer do projeto conciliador do PT e optar pelo golpe – o que nos trouxe Temer, Bolsonaro e seu ultraliberalismo totalitário. (Ver, a esse respeito, Sobre a natureza da crise brasileira na seção ARQUIVO deste site).
Ao contrário do que esperavam todos os que conspiraram pelo golpe, no entanto, Bolsonaro não encerrou a crise de projeto político do andar de cima. Simplesmente porque o bolsonarismo não veio ao mundo para negociar nem acordar nada, mas para acirrar conflitos e vencer o contraditório com a medição de armas de fogo. A gravação da reunião ministerial de 22 de abril mostrou o desprezo profundo pela vida, de parte dos reunidos – suas excelências não trataram em nenhum momento de políticas públicas para evitar o genocídio da Covid-19 – provou a determinação de Bolsonaro em se enfrentar com todo indivíduo ou instituição com alguma prerrogativa para lhe impor limites (ou não obedecê-lo militarmente). Revelou seu plano de organizar tropas civis armadas em sua defesa, a obsessão de controle sobre qualquer força investigativa, para proteger a família e amigos. Jogou luz sobre a chocante submissão dos ministros militares (que seriam o setor “bombeiro”, sensato) às falas incendiárias e ameaçadoras do capitão.
Em suma, um festival de duas horas divididas entre a baixaria do chefe da gangue e a bajulação mais constrangedora de parte do ministério de menor nível desde... que o Brasil passou a ter algum ministério. O vídeo mostrou asseclas mais preocupados em vender “a porra do” Banco do Brasil, mandar prender governadores e prefeitos, fazer “passar a boiada” de regras infra-legais em desrespeito das leis. Chama a atenção o quanto a mídia empresarial não deu importância às falas de Paulo Guedes, de defesa política e teórica do ultraliberalismo contra qualquer esboço de plano de emergência para recuparação econômica do país, receitando mais uma vez o enxugamento da máquina, o ajuste sobre estados e municípios e “mais reformas” – afinal, a mídia e grande parte do empresariado brasileiro têm acordo com Guedes...
Conflito interinstitucional acirrado
O conflito do governo militarizado com o STF já demonstrava os perigos que correm as limitadas regras democráticas vigentes. Depois dele, das reações de militares ao vídeo, da intervenção de JB na PF e nas estranhas operações da PF, a crise institucional ganhou o perigosos ingrediente da participação direta de setores da caserna. Um grupo de dezenas de colegas de formatura do titular da Segurança Institucional, Augusto Heleno, hoje na reserva, publicou uma carta de defesa do ministro, cheia de insultos aos ocupantes do Supremo, avalizando a ameaça feita por Heleno na sexta-feira – de que a requisição do celular poderia ter “consequências imprevisíveis para a estabilidade institucional”.
Somam-se às ameaças dos quartéis, o fato de que bolsonarismo conta com o entusiasmo dos homens das polícias militares e civis, e das milícias. Pior: parcela das trabalhadores e trabalhadores mais pobres relutam em abandonar o apoio ao governo, em parte pela situação econômica trazida pela Covid-19, combinada à impossibilidade real de quarentena, às fake news do gabinete do ódio e, principalmente, devido ao papel nefasto de mercadores da fé aliados à agenda autoritária, patriarcal, racista, homofóbica e individualista do núcleo governamental.
Militares, policiais e milicianos não são personagens novos na novela da crise nacional iniciada lá atrás – de 2013 para cá terão matado injustamente mais brasileiros pobres e negros do que o número de vítimas fatais da pandemia no país. A diferença é que eles têm, pela primeira vez, um líder para chamar de seu, e sentado no Planalto. Esta é, esquematicamente, a fórmula da polarização político-social da que participamos.
Qual é a tendência do apoio ao governo?
A maior parte da oposição social ficou decepcionada com o impacto político da gravação. Afinal, o discurso agressivo e autoritário do “chefe” tem ressonância positiva sobre sua base de apoio fanática, calculada por cientistas políticos e estatísticos entre 15% a 20% do eleitorado. Sua firmeza e “jeitão” manteriam em seu entorno os outros 10 a 15% que ainda o têm como ótimo ou bom. Não há dúvida de que o bolsonarismo neofascista tem influência de massas – resultante de uma combinação de tendências internacionais e circunstâncias históricas recente, em que se destaca o profundo desgaste do petismo e da esquerda, dadas a corrupção e as promessas incumpridas.
No entanto, analistas de todos os matizes sérios (evidentemente não fascistas) dizem que, se fica bem frente à turba pró-golpe, o vídeo afasta do governo uma parte do eleitorado de centro ou centro-direita, até mesmo um setor que votou nele, por revelar suas entranhas genocidas, incluídos nelas possíveis crimes de responsabilidade de ministros, como Weintraub e Damares e os planos macabro de Salles e Guedes. Esses mesmo politólogos (não marxistas) e pesquisadores de opinião chamam a atenção para que a rejeição a Bolsonaro cresce em ritmo superior ao crescimento registrado em seu apoio (devido à polarização extrema).
Não é possível valer-se nunca, ao pé da letra, de pesquisas de opinião, ainda mais em tempos de questionários por telefone. É certo que não é qualquer diagnóstico o de que Bolsonaro tem bases armadas. Mais controversa será afirmar que Bolsonaro saiu enfraquecido dos últimos embates, porque se é verdade que se isolou politicamente, também é verdade que foi rápido no contra-ataque.
De qualquer maneira, é quase unânime a avaliação que o vídeo e as reações militares serviram para agravar a briga entre poderes. Na hipótese de que a fórmula da intensa polarização ganhe o ingrediente da intervenção ativa das forças repressivas – e JB as chama a isso – não está descartado, entre as muitas possibilidades, um enredo a la boliviana, de alguma forma de golpe policial-militar.
Para fugir das limitações das pesquisas de opinião, é preciso analisar a relação de forças entre as classes sociais. É evidente que o golpe de 2016 colocou o andar de baixo (o mundo trabalho) e a esquerda na defensiva, situação agravada por uma série de derrotas frente a Temer e pela eleição do neofascista.
A grande questão é se essa série de retrocessos configurou ou não uma derrota irreversível e com que política atuamos para revertê-la. Não cabe discutir se a derrota foi histórica ou não, porque o histórico só se define historicamente, na temporalidade de décadas, e antes disso é preciso continuar jogando. (A menos que se desista da ação em favor de uma postura de observadores e analistas do colapso.)
Por oposição social e provavelmente el/eitoral, o Brasil tem hoje uma minoria dos setores burgueses – em crescimento desde a chegada da pandemia – uma parcela importante, senão majoritária dos assalariados mais bem remunerados (funcionários públicos, professores em geral, pessoal da saúde, bancários, alguns gerentes de baixo escalão, trabalhadores que vivem de free lancers – pessoal que, por não ser operário industrial, não deve ser, por oposição maniqueísta, considerado classe média), parte dos profissionais liberais, freelancers, pequenos camponeses, intelectualidade, meio artístico e científico, a vanguarda dos movimentos sociais mais dinâmicos – como de mulheres, negritude, juventude; e parte ainda não exatamente mensurável das trabalhadoras e trabalhadores mais pobres, entre os quais se destacam sem-teto e sem-terra.
Em contrapartida, Bolsonaro e seu núcleo governante, por mais desqualificado e moralmente questionável, contam ainda com o apoio de uma parte expressiva, senão majoritária, do povo pobre trabalhador das favelas e periferias – com a ajuda ideológica dos neopentecostais. Além da maioria dos médios e pequenos empresários, do industrial de boca de porco ao taxista. Ou seja, da classe média proprietária. O que é exatamente disputável nessa base?
Não haverá dúvida de que é preciso disputar para o antifascismo e para uma saída de esquerda para a crise essa base que o bolsonarismo mantém entre os trabalhadores mais pobres. Mas não é nem conveniente nem eficaz (do ponto de vista dos resultados esperados) desprezar a importância de dividir o inimigo e enfraquecer mesmo as bases de classe média, até porque a oposição social também tem o que alguns erroneamente taxam de “classe média”. Uma visão de classes baseada em esquemas do século passado, que não incorpore as grandes transformações provocadas pelo neoliberalismo nas relações sociais leva a preconceitos que só prejudicam uma necessária ação antifascista.
Se não é correto desprezar a força do inimigo e negar derrotas recentes, tampouco é útil considerar a situação e as classes estáticas, congeladas numa foto, nem os de baixo historicamente derrotados de antemão. A dimensão inimaginável da crise econômica e social que impõe a pandemia, no planeta e no país, trará com certeza, novos, mais profundos e mais violentos conflitos e rebeliões sociais. É essencial que a esquerda socialista vá além de lamber feridas, para participar e disputar projeto nessas explosões espontâneas e lutas organizadas que virão. Não há outro caminho para resistir e ter chance de mudar a correlação de forças.
A relação entre a frente antifascista e a independência dos explorados
O “day after” da pandemia e da grande recessão será melhor ou pior, dependendo também da nossa disposição de luta, compreensão das mudanças, política para cada realidade, e da capacidade de auto-organização dos de baixo. Temos, no Brasil, o grave problema de enfrentar um projeto neofascista que ataca incessantemente e se encontra por ora na ofensiva (ganhando a partida). É preciso parar Bolsonaro! E não somente na luta institucional.
O PSOL deve estar à frente do chamado pela unidade entre todas e todos que se opõem ao projeto neofascista representado por Bolsonaro e seus apoiadores. É preciso trabalhar por uma forte e diversa unidade antifascista – quanto mais ampla, mais diversa, mais forte – pela qual se renuncie de hegemonismos partidários e luta de egos.
Pra vencer o fascismo, não basta que essa articulação se una para ações parlamentares, judiciais, de mídia – o que já é trabalhoso – nem que tenha como horizonte eleições, eleições e eleições. É preciso começar imediatamente a pensar em agir, em por o bloco na rua, com bandeiras concretas frente ao autoritarismo: contra as novas ameaças ao STF, com apoio às investigação sobre fake news, com uma ação unitária nas redes de mentiras da extrema direita; com a denúncia e defesa de investigação profunda sobre as operações policiais em periferias, pela punição dos culpados pela morte do menino João Pedro; contra o armamento generalizado; contra as mudanças das normas infra-legais ambientais; contra as normas pró-cloroquina do Ministério da Saúde; contra as ameaças aos educadores do projeto “escola sem partido”; pela demarcação as terras indígenas pelo critério de direito secular. Sem descartar alianças eleitorais pontuais que não anulem a personalidade do partido.
Ao mesmo tempo, dois cuidados devem ser evitados pelo conjunto dos movimentos do andar de baixo e pelo PSOL: nem sempre é útil nem conveniente esperar que todos os que imaginamos necessários façam sua adesão à frente para só então tomar iniciativas. O segundo tem a ver com a personalidade do partido, a ser afirmada, e a luta por autonomia dos movimentos dos explorados e oprimidos frente aos possíveis setores burgueses da frente.
A unidade antifascista é tática, fundamental, mas tática. O programa da frente antifascista é um programa defensivo, contra mais retrocessos, necessário neste período. O programa ou plataforma do conjunto dos movimentos para sair da crise, a ser construído, não pode se subordinar aos limites que esses aliados mais conjunturais vão impor. (As campanhas pela taxação das grandes fortunas, e vidas iguais, por oportunidades igualitárias no atendimento médico, são exemplos de iniciativas às quais mesmo empresários democráticos e classe média proprietária civilizada podem não aderir).
Um programa anticapitalista e ecossocialista vai muito além do que é possível com aliados de tão diversa natureza de classe. O programa dos ecossocialistas é ecológico, feminista e antirracista. Não há nenhuma contradição entre sermos campeões da unidade antifascista, como o PSOL deve ser, e manter ao mesmo tempo uma localização autônoma, com programa e propostas de saída próprios – que disputem vanguarda e setores de massas para uma alternativa ao modelo de sociedade capitalista neoliberal, consumista e produtivista e ao modelo de República oligárquica, patriarcal e neoescravagista do país.
Guardadas todas as diferenças com as cirscunstâncias históricas do século passado, em que atuaram nossos clássicos, a frente antifascista nunca foi concebida como uma tática de subordinação dos socialistas nem a setores burgueses nem a adversários reformistas do movimento social. A unidade é uma necessidade momentânea dos explorados e oprimidos, por meio da qual os revolucionários deveriam se afirmar como os mais coerentes lutadores da classe e com isso disputar por uma alternativa de esquerda, comunista.
A frente antifascista é uma necessidade, urgente no Brasil, para vencer o fascismo e avançar para uma situação em que, na ofensiva, os de baixo voltem a arrancar vitórias e em que os socialistas disputem na luta e no terreno político-ideológico a superioridade de seu programa.
A estrada está nebulosa, sombria e repleta de perigos. Os tempos são difíceis, mas contraditórios e cada vez mais articulados aos tempos em que vive o mundo todo. É preciso seguir em frente. A hora mais escura pode ser o prelúdio de longa escuridão, mas, a depender de nossa compreensão e de nossas escolhas, pode ser, ao invés, como diz o provérbio árabe, o prenúncio do amanhecer.
(*) Jornalista e da Coordenação Nacional da Insurgência.