Felipe Moda e Marco Gonsales
Acontece nesta quarta-feira, 1º/7, a primeira greve nacional dos entregadores e entregadoras por aplicativos. Além de ser o primeiro movimento paredista nacional, será a primeira participação da categoria brasileira em uma manifestação de dimensão internacional. A organização do protesto se articulou com o movimento dos repartidores e repartidoras (entregadores e entregadoras) latino-americanos “Yo no reparto” que também decidiram convocar uma paralisação para o mesmo dia. Sendo assim, além dos brasileiros, entregadores e entregadoras argentinos, mexicanos, peruanos, guatemalenses, dentre outros, também paralisarão suas atividades em protesto por melhores condições de trabalho.
A pandemia de COVID-19 escancarou o caráter degradante do trabalho ofertado pelas empresas de delivery por aplicativos. No Brasil, são aproximadamente 4 milhões de trabalhadores e trabalhadoras intermediados e intermediadas por aplicativos, grande parte deles e delas são motoristas e entregadores (IBGE, 2019). Assim, os trabalhadores por aplicativo são uma parte expressiva das 38,4 milhões (41,1% da população ocupada) de pessoas que atuam na informalidade (NERY, 2020), sem direitos e proteções sociais.
No contexto da pandemia, os entregadores e as entregadoras intermediados por aplicativos foram alçados, por governantes e por parte da população, como trabalhadores e trabalhadoras essenciais para nos auxiliarem no enfrentarmos das dificuldades impostas pelo isolamento social. Outrora invisíveis, e por vezes indesejados, esses trabalhadores e trabalhadoras tornaram-se “heróis” e “heroínas”, pois são expostos diariamente ao risco do contágio pela COVID-19 ao fazerem as compras de parte da população que está em suas casas. Em outras palavras, estamos colocando trabalhadores e trabalhadoras informais para trabalharem em plena pandemia e, não satisfeitos, os e as elegemos como parte da solução para garantirmos o distanciamento social.
Entretanto, serem “heróis” e “heroínas” não significaram melhores condições de trabalho ou mesmo melhores remunerações para esses trabalhadores e trabalhadoras. Pelo contrário, a pandemia escancarou o caráter degradante do trabalho realizado pelos entregadores e entregadoras. Isso porque, as empresas proprietárias dos aplicativos, como a Rappi, a Uber Eats, a Ifood, a James, a Loggi, dentre outras, se dizem responsáveis apenas pela manutenção de uma infraestrutura tecnológica que permite aos consumidores encontrarem trabalhadores disponíveis para realização dos serviços dos seus interesses, não sendo de sua responsabilidade a atividade fim da operação. No entanto, ao se conectarem às empresas através dos aplicativos, os trabalhadores e trabalhadoras são gerenciados, de maneira subordinada, por uma autoridade digital que determina as tarefas a serem realizadas e como realizá-las, monitora o desempenho em tempo real, estabelece o preço e também o valor da força de trabalho, além de determinar gratificações ou punições (MORAES, OLIVEIRA, ACCORSI, 2019; FILGUEIRAS, ANTUNES, 2020).
Apesar das empresas de delivery se posicionarem, assim como outras empresas-aplicativos (ABÍLIO, 2017), apenas como fornecedoras, em nossa opinião, essas empresas, através das novas tecnologias da informação ampliam a qualidade da sua capacidade em gerenciar, controlar e organizar o trabalho sob o marco da relação capital-trabalho: uma relação desfavorável ao trabalhador, mas lhe concede renda e produz valor ao capital (AMORIM; MODA, 2020; HUWS, 2017).
Portanto, a grande vantagem, leia-se perversidade, deste modelo de negócio é enquadrar milhões de trabalhadores e trabalhadoras como autônomos e autônomas, ou seja, sem registros em suas carteiras de trabalho e direitos trabalhistas e previdenciários. Além disso, esses trabalhadores e trabalhadoras são responsáveis pelas principais ferramentas para desempenharem suas atividades laborais, como a moto ou a bicicleta, seus acessórios e suas manutenções, além do celular e o pacote de dados para uso da internet.
Por serem autônomos e autônomas, os entregadores e entregadoras trabalham de forma intermitente e tem sua remuneração totalmente variável, tendo por base um percentual cobrado pelas entregas realizadas. Por estas características, para esses trabalhadores e trabalhadoras “ficar em casa” significa não ter renda, levando-os e as a enfrentarem um terrível dilema: ou cuidam da sua saúde ou vão para às ruas em busca de um troco, uma perversão do capitalismo contemporâneo.
Contrariando as expectativas de que o aumento do número de demanda pelo serviço, causado pelas políticas de distanciamento social, faria os entregadores e entregadoras aumentarem seus rendimentos, o que aconteceu foi exatamente o contrário. Segundo pesquisa que realizamos recentemente com 36 entregadores e entregadoras paulistanos e paulistanas, a ser publicada nos próximos dias, 78% dos entrevistados e entrevistadas afirmaram que suas receitas decresceram durante o período de isolamento social. Resultados semelhantes também foram encontrados pela pesquisa, de abrangência nacional, realizada pelos pesquisadores da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (REMIR, 2020).
Isto decorre do fato da atual crise sanitária ser também social, econômica, política e ambiental. Junto o novo coronavírus, vemos também o aumento da desigualdade social e das taxas de desemprego, o que força boa parte dos trabalhadores e trabalhadoras a buscarem nas empresas-aplicativos uma maneira de garantir sua sobrevivência. Assim, simultaneamente ao aumento da demanda por pedidos, também cresceu o número de entregadores e entregadoras nas ruas, o que permite às empresas reduzirem o valor da hora de trabalho.
Além disso, como as empresas não garantem as condições de trabalho, coube aos trabalhadores e trabalhadoras arcarem com o aumento dos gastos para poderem trabalhar, já que os valores que as empresas disponibilizaram para a compra de máscaras e álcool gel é completamente insuficiente. Para denunciar estas condições, e após inúmeras manifestações pontuais em cidades do Brasil, os entregadores e entregadoras estão organizando a sua primeira greve nacional, sendo as suas principais pautas: aumento do valor das corridas; fim dos bloqueios arbitrários que impedem alguns entregadores de seguirem trabalhando; seguro em caso de roubo e acidente; e disponibilização de EPIs para diminuir os riscos de contaminação por coronavírus. Pautas completamente justas para eles terem condições mínimas de seguirem trabalhando, o que é negado pelas empresas.
Esta mobilização é central para questionar o sentido pelo qual caminha as relações de trabalho na contemporaneidade, já que a adoção de medidas que flexibilizam os vínculos trabalhista são um fenômeno generalizado em todas as profissões. Desta forma todos aqueles que lutam por uma sociedade democrática, que são antifascistas e antirracistas, devem apoiar ativamente esta manifestação. É urgente barrarmos os processos de precarização do trabalho, o qual foram fortalecidos pela aprovação da Reforma Trabalhista, e que promovem situações nas quais pessoas passam o dia todo carregando comida nas costas e ao mesmo tempo não conseguem dinheiro para almoçar, como foi denunciado por um dos organizadores do protesto.
Assim, além de divulgarmos o #BrequeDosApp, toda a população deve contribuir ativamente com a greve no dia 01/07, não realizando pedidos de comida e avaliando negativamente os aplicativos nas lojas de aplicativo. Precisamos estar junto com os entregadores e entregadoras em sua luta para pressionarmos os poderes público a garantirem melhores condições de trabalho para todos e todas.
* Felipe Moda e Marco Gonsales são militantes da Insurgência e pesquisadores do trabalho por aplicativo
Referências
ABÍLIO, L. C.. Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Passa Palavra, 2017. Disponível em: <http://passapalavra.info/2017/02/110685>. Acesso em 15 de Jan. 2019.
AMORIM, H.; MODA, F. B.. Trabalho por aplicativo: gerenciamento algorítmico e condições de trabalho dos motoristas da Uber. Fronteiras - estudos midiáticos, v. 22, n. 1, 2020.
FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contratempo, Trabalho de Plataforma, v. 39, nº 1, 2020.
MORAES, R. B. S.; OLIVEIRA, M. A. G.; ACCORSI, A. Uberização do trabalho: a percepção dos motoristas de transporte particular por aplicativo. Revista Brasileira de Estudos Organizacionais. v. 6, n. 3, p. 647- 681, 2019.
NERY, C. Desemprego cai para 11,9% na média de 2019; informalidade é a maior em 4 anos. Estatísticas Sociais. Agência IBGE Notícias. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26741-desemprego-cai-para-11-9-na-media-de-2019-informalidade-e-a-maior-em-4-anos Acesso em: 23 mar. 2020.
REMIR. ABÍLIO, L. C.; ALMEIDA, P. F.; AMORIM, H.; CARDOSO, A. C. M.; FONSECA, V. P.; KALIL, R. B.; MACHADO, S. Condições de trabalho em empresas de plataforma digital: os entregadores por aplicativo durante a Covid-19. São Paulo: REMIR, 2020.
HUWS, U. A formação do cibertariado. Trabalho virtual em um mundo real. Tradução: Murillo van der Laan - Campinas, SP: Editora Unicamp, 2017.