Neste trecho adaptado por PISEAGRAMA do livro “Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno”, recém publicado em julho no Brasil pela Editora Bazar do Tempo, o filósofo Bruno Latour reflete sobre os impasses da divisão entre ciências sociais e naturais e propõe outros modos de investigar, compreender e viver com a Terra.
Bruno Latour, Piseagrama n.14, 2020. Tradução de Marcela Vieira e revisão técnica de Alyne Costa.
A prova de que o movimento ecológico não conseguiu definir com suficiente precisão o Terrestre, esse grande ator político, é que a ecologia não soube produzir uma mobilização social à altura dos desafios. Ficamos sempre surpresos ao ver a distância que existe entre a potência dos afetos suscitados pela questão social desde o século XIX e a potência dos movimentos ecológicos desde o pós-guerra.
Um bom indicador dessa distância é o admirável livro de Karl Polanyi, A grande transformação. O que é desolador ao ler Polanyi não é constatar que ele se enganou ao acreditar que os danos do liberalismo seriam coisa do passado, mas sim ele ter pensado que tais danos provocaram apenas uma única reação, que podemos chamar de a grande imobilidade das referências políticas. Como seu livro é de 1945, os 70 anos seguintes demarcaram com precisão o lugar, lamentavelmente vazio, da outra grande transformação que deveria ter ocorrido, caso os movimentos ecológicos tivessem sabido assimilar, prolongar e ampliar a energia criada pelos diferentes tipos de socialismo.
No entanto, essa transmissão nunca efetivamente aconteceu. Como não souberam unir suas forças de modo eficaz, o socialismo e o movimento ecológico foram capazes apenas de desacelerar o curso da história, ainda que ambos tivessem por objetivo transformá-la. Se não puderam concretizar suas ambições, foi por acreditarem que era preciso escolher entre questões sociais ou questões ecológicas, enquanto o que estava realmente em jogo era uma outra escolha, muito mais decisiva, que dizia respeito a duas direções da política: uma que define as questões sociais de modo muito restrito e outra que define os riscos para a sobrevivência sem estabelecer diferenças a priori entre humanos e não humanos. A escolha que precisa ser feita é, portanto, entre uma definição limitada dos laços sociais que compõem uma sociedade e uma definição mais ampla das associações que formam aquilo que tenho chamado de “coletivos” (uso o termo “coletivo” para substituir a palavra “social”, alargando com isso a gama das associações que podem ser coletadas).
Essas duas direções não apontam para atores diferentes. Para recorrer a um clichê, não seria o caso de ter de escolher entre o salário dos operários e o destino dos passarinhos, mas entre dois tipos de mundo em que há, em ambos, salários de operários e passarinhos, só que combinados de formas distintas em cada um deles. A questão, assim, passa a ser: por que o movimento social não abraçou já de saída as questões ecológicas como se fossem suas, o que lhe teria permitido evitar sua obsolescência e prestar apoio ao ainda débil movimento ecológico? Ou, invertendo a pergunta, por que a ecologia política não soube pegar o bastão da questão social e avançar?
Durante esses 70 anos que os especialistas chamam de a Grande Aceleração, tudo sofreu uma metamorfose: as forças do mercado foram liberadas, a reação do sistema terra foi provocada (aqui, a palavra “terra”, com minúscula, corresponderá ao quadro tradicional da ação humana – os humanos na natureza –, enquanto “Terra”, com maiúscula, corresponderá a uma potência de agir na qual reconhecemos, ainda que de maneira não plenamente instituída, uma espécie de função política).
No entanto, seguimos definindo uma política como progressista ou reacionária segundo um mesmo e único vetor: o da modernização e o da emancipação. Temos de um lado, portanto, enormes transformações, e, do outro, uma quase total imobilidade na definição, no posicionamento e nas aspirações associadas à palavra “socialismo”. Nesse sentido, vale lembrar, aliás, das enormes dificuldades que as feministas encontraram para que suas lutas fossem consideradas relevantes, já que por muito tempo foram tratadas como “periféricas” em relação às batalhas por transformação social. A bússola do socialismo parecia emperrada.
Em lugar de unirmos essas revoltas, fomos capazes apenas de vivenciar, em estado de quase total impotência, a Grande Aceleração, a derrota do comunismo, o triunfo da “globalização-menos” e a esterilização do socialismo, tudo culminando no grande circo que foi a eleição de Donald Trump! Isso sem falar nas outras catástrofes que nos fazem tremer só de imaginá-las.
Enquanto esses acontecimentos transcorriam, ficamos presos a uma oposição mal resolvida entre conflitos “sociais” e “ecológicos”, como se estivéssemos lidando com dois conjuntos distintos entre os quais não podíamos escolher. Mas a natureza não é mais um saco de grãos do que a sociedade é um balde de água… Se não há escolha a fazer, é pela excelente razão de que não há humanos legítimos de um lado e objetos não humanos do outro. A ecologia não é o nome de um partido, nem um tipo de preocupação, mas sim um apelo para mudarmos de direção: “Rumo ao Terrestre”.
Mas como explicar essa interrupção no sistema que organizava a indignação coletiva? A antiga matriz que permitia distinguir os “progressistas” dos “reacionários” se definia, desde a irrupção da “questão social” no século XIX, pela noção de classes sociais, elas também dependentes do tipo de posição que ocupavam naquilo que chamávamos de “processos de produção”.
Ainda que muito se tenha tentado atenuar as oposições de classe e até mesmo convencer de que elas não faziam mais sentido, foi em torno dessas oposições que a política se organizou. A eficácia das interpretações da vida pública em termos de luta de classes decorria do caráter aparentemente material, concreto, empírico dessa definição de categorias antagônicas. É por essa razão que tais interpretações foram consideradas como “materialistas” e geralmente se apoiavam no que chamávamos de uma ciência econômica aplicada.
A despeito de todas as revisões que sofreram, interpretações dessa ordem serviram muito bem durante todo o século XX. Ainda hoje, são elas que permitem identificar quem “avança” e quem “trai as forças do progresso” (ainda que, não custa repetir, as atitudes possam divergir se o assunto for, por exemplo, valores morais ou economia). De um modo geral, podemos afirmar que permanecemos marxistas.
Se recentemente essas definições passaram a girar em falso, é porque a análise em termos de classes sociais e o materialismo que a tornava possível eram claramente definidos pelo atrator que chamamos de Global, o qual se encontra em posição oposta ao Local.
Os grandes fenômenos da industrialização, urbanização e a ocupação das terras colonizadas definiam um horizonte – temível ou radiante, pouco importa – que dava sentido e direção ao ideal de progresso. E isso por uma boa razão: tal progresso tirava da miséria, ou mesmo do jugo da dominação, centenas de milhões de seres humanos, cujas ações deveriam se dirigir para a emancipação tida como inevitável.
Apesar dos constantes desentendimentos, Direitistas e Esquerdistas só competiam, no fim das contas, para saber quem seriam os modernizadores mais definitivos, qual lado alcançaria mais rapidamente o mundo Global, ao mesmo tempo em que divergiam sobre se o melhor modo de proceder era a reforma ou a revolução. Mas nenhuma das correntes jamais tentou explicar aos povos em processo de modernização para que mundo exatamente o progresso os acabaria levando.
O que elas não previram (ainda que pudessem perfeitamente ter previsto!) é que aquele horizonte de progresso se transformaria, pouco a pouco, justamente num mero horizonte, uma simples ideia regularizadora, um tipo de utopia cada vez mais vaga à medida que começou a faltar Terra para dar corpo àquela ideia. Até que o acontecimento de 13 de dezembro de 2015 – a conclusão da COP21, Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas – finalmente oficializou, de certo modo, a constatação de que não existe mais Terra capaz de corresponder ao horizonte do Global.
Se as análises em termos de classe nunca permitiram às Esquerdas resistir por muito tempo a seus inimigos – o que explica o fracasso das previsões de Polanyi sobre a extinção do liberalismo –, é porque elas nutriam uma definição do mundo material tão abstrata, tão ideal (para não dizer idealista) que elas nunca foram capazes de compreender a nova realidade.
Para ser materialista, é preciso que haja uma matéria; para oferecer uma definição mundana de uma atividade, é preciso haver um mundo; para ocupar um território, é preciso que haja uma terra; para se lançar na Real Politik, é preciso existir uma realidade.
No entanto, ao longo de todo o século XX, enquanto proliferavam análises e experiências fundadas em uma definição clássica da luta de classes, uma metamorfose da própria definição da matéria, do mundo, da terra sobre a qual tudo se apoiava acontecia, mais ou menos sub-repticiamente; de todo modo, sem que muita atenção fosse dada por parte das Esquerdas. Desde então, a questão passou a ser definir as lutas de classe de modo mais realista, levando em conta essa nova materialidade, esse novo materialismo, impostos pela orientação na direção do Terrestre.
Retomamos aqui a questão colocada por Naomi Klein no livro Tudo pode mudar: Capitalismo vs. Clima: por que tão poucas coisas mudam devido à estabilidade das referências políticas – e, em particular, devido à anestesia causada pelo termo “capitalismo”?
Polanyi superestimou as capacidades de resistência da sociedade à mercadologização porque contava com a mobilização de atores somente humanos e com sua consciência acerca dos limites da mercadoria e do mercado. Mas os humanos não foram os únicos a se revoltar… Polanyi não pôde, assim, prever a incorporação de extraordinárias forças de resistência aos conflitos de classes, capazes até de transformar o que neles estava em jogo. O desfecho dessas disputas só será diferente se todos os rebeldes, por mais entrelaçados que estejam, forem reconhecidos como combatentes.
Se as classes ditas sociais eram identificadas por seu lugar no sistema de produção, percebemos agora o quanto esse sistema era definido de forma demasiado restritiva. Decerto, há muito tempo os analistas vêm acrescentando à estrita noção de “classes sociais” todo um aparato de valores, culturas, atitudes e símbolos para especificar suas próprias definições e explicar por que os grupos não seguem sempre os “interesses objetivos” de sua classe. E, no entanto, mesmo adicionando “culturas de classe” aos “interesses de classe”, tais grupos não desfrutam de territórios suficientemente povoados para que possam conformar uma realidade e tomar consciência de si próprios. Sua definição continua sendo social, demasiado social. A questão é que, sob a luta de classes, existem outras classificações. Sob a “última instância”, existem outras instâncias. Sob a matéria, há outros materiais.
Timothy Mitchell, no livro Carbon Democracy: Political Power in the Age of Oil, demostrou muito bem que uma economia alicerçada sobre o carbono garantiu por muito tempo uma luta de classes eficaz; foi com a passagem do carvão ao petróleo que essa luta foi vencida pelas classes dirigentes. No entanto, mesmo diante dessa mudança, as classes sociais seguiram se definindo da maneira tradicional: ainda como operários defendidos pelos sindicatos.
Mas para definir as classes seguindo o critério do território, não se pode classificá-las da mesma maneira que antes. O poder que os mineradores tinham de bloquear a produção, de se organizar no fundo das minas fora da vista de seus supervisores, de fazer aliança com os ferroviários que operavam próximo a suas bases, de enviar suas mulheres para se manifestarem em frente às janelas de seus patrões, tudo isso desaparece com o petróleo, essa fonte de energia controlada por um punhado de engenheiros expatriados em países distantes, liderados por pequeníssimas elites facilmente corruptíveis, cujo produto circula por oleodutos que são de fácil reparo em caso de dano. Se antes, com o carvão, os inimigos eram visíveis, com o petróleo eles se tornaram invisíveis.
Mitchell não enfatiza apenas a “dimensão espacial” das lutas operárias, o que seria um truísmo. Ele chama a atenção, com efeito, para as diferentes composições formadas pelo carvão ou pelo petróleo com a terra, os operários, os engenheiros e as empresas. A partir dessas diferenças, aliás, ele chega à conclusão paradoxal de que foi a partir do pós-guerra – e graças ao petróleo – que passou a prevalecer uma concepção de economia que acredita poder se isentar de qualquer limite material!
A obsessão de Trump com um retorno ao carbono (King Coal) oferece uma ilustração quase perfeita da nova geopolítica: uma utopia delirante e enfumaçada abrangendo todas as relações sociais que lhe são associadas em uma terra que não existe mais e numa época ultrapassada em cinquenta anos.
Oque agora parece estar muito claro é que a luta de classes depende de uma geo-logia. A introdução do prefixo “geo” não torna obsoletos os 150 anos de análise marxista ou materialista. Ao contrário, ela obriga a retomar a questão social, porém deixando a nova geopolítica torná-la ainda mais intensa.
Já que a cartografia tradicional das lutas de classes sociais permite compreender cada vez menos a vida política – com as análises se limitando a lamentar que as pessoas “não seguem mais seus interesses de classe”–, precisamos ser capazes de esboçar um mapa das lutas das localidades geo-sociais como forma de finalmente identificar quais são os verdadeiros interesses nelas envolvidos, com quem é possível se aliar e quem será preciso enfrentar.
O século XIX foi a era da questão social; o século XXI, por seu turno, é a era da nova questão geo-social. Se não conseguirem traçar um novo mapa, os partidos de Esquerda se assemelharão a arbustos atacados por gafanhotos: deles não restará mais que uma nuvem de poeira.
A maior dificuldade em desenhar esse mapa reside no fato de que, para encontrar os princípios que permitirão definir as novas classes e traçar as linhas de conflito entre seus interesses divergentes, deve-se aprender a desconfiar de definições como “matéria”, “sistema de produção” e até mesmo das referências no espaço e no tempo que foram tão úteis para definir tanto as classes sociais quanto as lutas da ecologia.
Na verdade, uma das maiores peculiaridades da época moderna foi a proposição de uma definição tão pouco material, tão pouco terrestre, da matéria. A modernidade se vangloria de um realismo que ela nunca soube implementar. Afinal, como chamar de materialistas pessoas capazes de deixar a temperatura do planeta aumentar em 3,5º C, ou que impõem a seus concidadãos o papel de agentes da Sexta Grande Extinção, sem sequer se darem conta disso?
Pode mesmo parecer estranho, mas quando os Modernos falam de política, nunca sabemos em qual domínio prático eles a situam. Em suma, “a análise concreta da situação concreta”, como Lênin costumava dizer, nunca é suficiente. A ecologia sempre disse aos socialistas: “Se esforcem um pouco mais, senhores e senhoras materialistas, para se tornarem enfim materialistas!”.
Se o amálgama entre os velhos veteranos da luta de classes e os novos recrutas dos conflitos geo-sociais ainda não foi possível, isso se deve ao papel que ambos atribuíram à “natureza”. Esse é mais um daqueles casos em que, literalmente, as ideias conduzem o mundo.
Foi a confiança em uma certa concepção da “natureza” que autorizou os Modernos a ocuparem a Terra de uma tal maneira que impediu outros de habitarem de modo diferente seu próprio território. Isso porque, para fazer política, precisamos de agentes que conjuguem seus interesses e capacidades de ação. Mas não se pode fazer alianças entre atores políticos e objetos quando eles são considerados exteriores à sociedade e desprovidos de potência de agir. O slogan genial dos ocupantes da ZAD de Notre-Dame-des-Landes expressa bem esse dilema: “Não defendemos a natureza, nós somos a natureza defendendo a si própria”.
Ora, a exterioridade atribuída aos objetos não provém de um dado da experiência: ela é, mais propriamente, o resultado de uma história político-científica muito particular que convém examinarmos brevemente, para que se possa devolver à política sua liberdade de movimento.
O papel das ciências na tarefa de sondar o Terrestre é inegável. Sem elas, o que saberíamos sobre o Novo Regime Climático? E como ignorar o fato de que elas se tornaram o alvo privilegiado dos negacionistas climáticos? Ainda assim, é preciso compreender suas particularidades.
Se aceitarmos de bom grado o que a epistemologia usual nos empurra goela abaixo, nos veremos prisioneiros de uma concepção da “natureza” impossível de ser politizada, já que ela foi inventada precisamente para limitar a ação humana mediante o apelo a supostas leis de uma natureza objetiva que não poderiam ser questionadas. De um lado a liberdade, do outro a estrita necessidade: isso permite obter vantagens dos dois domínios. Toda vez que pretendemos contar com a potência de agir de atores não humanos, encontramos a mesma objeção: “Nem pense nisso, trata-se de meros objetos; eles não podem reagir”, tal como dizia Descartes a respeito dos animais, alegando que eles não poderiam sofrer.
Ao mesmo tempo, se nos opomos à “racionalidade científica” inventando um modo mais íntimo, mais subjetivo, mais enraizado, mais global – mais “ecológico”, por assim dizer – de perceber nossos laços com a “natureza”, saímos perdendo duas vezes: permanecemos com a ideia de “natureza” tomada emprestada da tradição e ainda nos privamos da contribuição oferecida pelos “saberes positivos”.
Precisamos, portanto, poder contar com todo o poder das ciências, mas renunciando à ideologia da “natureza” que esse poder incorporou. Temos de ser ainda materialistas e racionais, só que dessa vez deslocando essas virtudes para o terreno correto. E isso porque o Terrestre não é de forma alguma o Globo; assim, é impossível ser materialista e racional da mesma forma em relação a ambos.
Contudo, é preciso antes de mais nada esclarecer que não podemos fazer o elogio da racionalidade sem reconhecer a que ponto tal noção foi mal empregada por aqueles que se dirigiam rumo ao Global. Como considerar realista um projeto de modernização que, há dois séculos, teria “esquecido” de antecipar as reações do globo terráqueo às ações humanas? Como tratar de “objetivas” as teorias econômicas incapazes de incorporar em seus cálculos a escassez de recursos que elas tinham como tarefa prever? Como falar da “eficácia” de sistemas técnicos que não foram planejados para durar mais que algumas décadas? Como chamar de “racionalista” um ideal de civilização culpado por um erro de previsão tão absurdo que fez com que pais deixassem para seus filhos um mundo muitíssimo menos habitado?
Não surpreende que a palavra “racionalidade” tenha se tornado assustadora. Antes de acusarmos as pessoas comuns de não darem nenhum valor aos fatos por meio dos quais as pessoas ditas racionais pretendem convencê-las, lembremo-nos de que, se elas perderam todo o senso comum, é porque foram magistralmente traídas. Para devolver um sentido positivo às palavras “realismo”, “objetivo”, “eficácia” e “racional”, é preciso direcioná-las não mais para o Global, onde elas claramente fracassaram, mas ao Terrestre.
Como podemos definir essa diferença de orientação? Os dois polos são quase os mesmos, mas com a diferença de que o Global apreende todas as coisas partindo do distante, como se elas fossem exteriores ao mundo social e completamente indiferentes às preocupações dos humanos. Já o Terrestre lida com os mesmos agenciamentos tomando-os de perto, como interiores aos coletivos e sensíveis à ação dos humanos, à qual reagem drasticamente. Temos aí duas maneiras muito diferentes de aquelas mesmas pessoas racionais fincarem, se assim podemos dizer, seus pés na terra. Essa diferença de perspectiva, portanto, suscita uma nova distribuição das metáforas, das sensibilidades, uma nova libido sciendi fundamental tanto para a reorientação quanto para a reinvenção dos afetos políticos.
Podemos pensar o Global como uma declinação do Globo que acabou distorcendo o acesso a ele. Que será que se passou? A ideia, de fato revolucionária, de pensar a terra como um planeta como qualquer outro, imerso num universo tornado infinito e composto de corpos essencialmente semelhantes remonta ao nascimento das ciências modernas. Para simplificar, podemos chamar esse acontecimento de a invenção dos objetos galileanos.
O sucesso obtido por essa visão planetária é imenso. Ela informa o globo retratado pela cartografia, o mesmo das primeiras ciências da terra. Ela torna a física moderna possível. No entanto, infelizmente, tal visão é também muito fácil de ser distorcida. Na medida em que ela permite, a partir da terra, conceber este planeta como um corpo entre outros que estão em queda livre no universo infinito, alguns concluíram que era preciso ocupar virtualmente o ponto de vista do universo infinito para compreender o que se passa em nosso planeta. A possibilidade de acessar lugares distantes partindo da terra se torna, assim, o dever de acessar a terra partindo de lugares distantes.
Contudo, nada obriga a essa conclusão, que, na prática, será sempre uma contradição em termos: os escritórios, as universidades, os laboratórios, os instrumentos, as academias, em suma, todo o circuito de produção e validação de conhecimentos nunca abandonou o velho solo terrestre. Por mais longe que possam enviar seus pensamentos, os especialistas sempre tiveram os pés fincados no chão. E no entanto, essa visão desde o universo acabou se tornando o novo senso comum ao qual os termos “racional” e até “científico” permaneceram por muito tempo associados.
Daí em diante, é a partir desse Grande Fora que a velha terra primordial será conhecida, avaliada e julgada. O que era apenas uma virtualidade passa a ser, tanto para os mais brilhantes pensadores quanto para os menos perspicazes, um projeto estimulante: conhecer é conhecer desde o exterior. Tudo deve ser considerado do ponto de vista de Sirius, como diz a expressão francesa – uma Sirius, claro, imaginária, que ninguém nunca acessou.
Além disso, essa concepção da Terra como planeta integrante do universo infinito, como um corpo entre outros corpos, gerou o inconveniente de limitar a alguns movimentos – ou mesmo a apenas um, a queda dos corpos, como era o caso do início da revolução científica – a gama de possibilidades dos saberes positivos.
Por essa razão, ainda que na Terra – vista de seu interior – houvesse muitas outras formas de movimento, foi ficando cada vez mais difícil levá-los em consideração. Aos poucos, fomos deixando de saber como traduzir em termos de conhecimento comprovado todo um conjunto de transformações: gênese, nascimento, crescimento, vida, morte, corrupção, metamorfoses. Foi esse desvio para o exterior que introduziu na noção de “natureza” a confusão da qual nunca fomos capazes de sair.
Até o século XVI, esse conceito podia ainda abarcar toda uma cadeia de movimentos; esse é o sentido etimológico da natura latina ou da phusis grega, que se poderia traduzir por origem, geração, processo, curso das coisas. Todavia, a partir do século seguinte, o uso da palavra “natural” passou a estar cada vez mais reservado à investigação de um único tipo de movimento considerado do exterior. Esse é o sentido que a palavra terminou por ganhar na expressão “ciências da natureza”.
Isso não seria um problema se tivéssemos limitado o uso desse termo às ciências do universo, ou seja, se o empregássemos apenas para descrever os espaços infinitos conhecidos a partir da superfície da terra por intermédio exclusivo de instrumentos e de cálculos. Mas quisemos fazer mais: quisemos conhecer dessa mesma maneira tudo o que se passava na terra, como se devêssemos considerá-la de longe.
Enquanto acreditávamos ter sob os nossos olhos um conjunto de fenômenos simplesmente à espera de serem desvendados pelos saberes positivos, nos distanciamos de tal modo daqueles fenômenos que – por uma espécie de ascese sádica – passamos a nos interessar, entre todos os movimentos que nos eram acessíveis, apenas naqueles que podíamos ver desde Sirius. Todo movimento precisava, então, se conformar ao modelo da queda dos corpos. Isso é o que caracteriza a chamada “visão mecanicista” do mundo, assim denominada graças a uma estranha metáfora proveniente de uma ideia bastante inexata a respeito do funcionamento das máquinas no mundo real.
Com isso, todos os outros movimentos se tornaram alvo de desconfiança. Considerados desde o interior, na Terra, eles não podiam ser científicos, não podiam ser verdadeiramente naturalizados. Daí decorre a clássica oposição entre os saberes vistos de longe, mas comprovados, e as imaginações que, vendo as coisas de perto, não teriam respaldo na realidade: na pior das hipóteses, meras histórias para crianças; na melhor das hipóteses, antigos mitos respeitáveis, mas sem conteúdo comprovável.
Se o planeta acabou se distanciando do Terrestre, foi por se ter acreditado que a natureza vista do universo poderia pouco a pouco substituir, recobrir, banir a natureza vista da Terra, aquela que abarca, que poderia ter abarcado, que deveria ter continuado a abarcar, desde o interior, todos os fenômenos de gênese. A grandiosa invenção galileana terminou por ocupar todo o espaço, nos fazendo esquecer que ver a terra a partir de Sirius é apenas uma pequena parte do que temos direito de saber positivamente – ainda que essa parte corresponda ao universo infinito.
A inevitável consequência de tudo isso foi que passamos a notar cada vez menos o que se passava na Terra. Ao adotar a perspectiva de Sirius, arriscamos necessariamente perder de vista muitos acontecimentos, ao mesmo tempo em que criamos muitas ilusões sobre a racionalidade ou a irracionalidade do planeta Terra!
A julgar por todas as bizarrices que os terráqueos, ao longo dos últimos três ou quatro séculos, imaginaram ter identificado em Marte antes de perceberem que estavam errados, não devemos nos espantar com todos os erros cometidos, ao longo desses séculos, a respeito do suposto destino das civilizações terrestres vistas a partir de Sirius! O que se tornarão os ideais de racionalidade e as acusações de irracionalidade quando confrontados com a Terra e os terrestres? Tantos castelos feitos de areia, tantas certezas caindo por terra, tantos canais imaginados em Marte…
Uma tal bifurcação entre o real – exterior, objetivo e conhecível – e o interior – irreal, subjetivo e incognoscível – não teria intimidado ninguém, ou teria soado como um simples exagero de especialistas pouco familiarizados com as realidades daqui debaixo, se ela não estivesse sobreposta ao famoso vetor de modernização anteriormente observado. É precisamente nesse ponto que os dois sentidos (positivo e negativo) da palavra “Global” começam a divergir.
Devido a essa sobreposição, o subjetivo ficou cada vez mais associado ao arcaico e ao ultrapassado; o objetivo, ao moderno e ao progressista. Ver as coisas do interior passa a não ter outro valor a não ser o de remeter à tradição, ao íntimo, ao arcaico. Ver as coisas do exterior, ao contrário, se torna o único meio de apreender aquilo que conta como realidade e, sobretudo, de se orientar em direção ao futuro.
É essa divisão brutal que dá consistência, por assim dizer, à ilusão do Global como horizonte da modernidade. A partir de então, foi preciso se deslocar virtualmente de mala e cuia (mesmo que permaneçamos no mesmo lugar) para longe das posições subjetivas e sensíveis, rumo a posições exclusivamente objetivas, enfim desembaraçadas de toda sensibilidade – ou, mais precisamente, de todo sentimentalismo. É aí então que aparece, por contraste com o Global, a figura necessariamente reativa, reflexiva e nostálgica do Local.
Perder a sensibilidade à natureza enquanto processo – conforme o antigo sentido de “natureza” – se tornava o único modo de acessar a natureza enquanto universo infinito – segundo a nova definição do termo. Progredir na modernidade consistia, assim, em desprender-se do solo primordial e sair rumo ao Grande Fora; tornar-se, senão natural, ao menos naturalista.
Habitável? registra uma série de potes de barro oriundos do Sertão do Brasil. Os potes, fabricados pelas mulheres e utilizados para transportar e armazenar água, integram um acervo que deu origem ao projeto Acervo Disseminado, de Liliane Dardot e Inês Antonini, com a colaboração de Santana Dardot. O projeto propôs, durante o ano de 2016, exposições e cortejos, e convidou os espectadores a se tornarem guardiões dos potes, levando para casa memórias, histórias e tradições cotidianas presentes naquela artesania com a terra.
Habitável? registra uma série de potes de barro oriundos do Sertão do Brasil. Os potes, fabricados pelas mulheres e utilizados para transportar e armazenar água, integram um acervo que deu origem ao projeto Acervo Disseminado, de Liliane Dardot e Inês Antonini, com a colaboração de Santana Dardot. O projeto propôs, durante o ano de 2016, exposições e cortejos, e convidou os espectadores a se tornarem guardiões dos potes, levando para casa memórias, histórias e tradições cotidianas presentes naquela artesania com a terra.
Por uma estranha perversão das metáforas de parto, não mais depender das antigas formas de gênese era o que permitiria “finalmente nascer para a modernidade”. Como as feministas demonstraram em suas análises dos julgamentos das bruxas, o ódio aos valores tradicionalmente associados às mulheres sairá dessa trágica metamorfose tornando grotesca toda forma de vínculo aos antigos solos. Livrar-se do pertencimento à gleba torna-se uma maneira de dizer “Cubra estes seios, que eu não poderia ver”, como disse o hipócrita padre Tartufo, da peça de Molière, à filha de seu anfitrião. A objetividade se tornou, assim, uma questão de gênero.
Esse grande deslocamento, a única verdadeira “Grande Substituição”, será então imposto ao mundo inteiro, o qual vai se transformando na paisagem da “globalização-menos” à medida que as últimas adesões à antiga natureza-processo vão sendo erradicadas permanentemente. Esse é o sentido da expressão que hoje se tornou obsoleta, mas cujos ecos ainda podem ser ouvidos toda vez que se fala de progresso, desenvolvimento e futuro: “Iremos modernizar o planeta, que está em processo de unificação…”
Graças a esse deslocamento, ou bem falamos de “natureza”, mas então estamos longe, ou bem estamos próximos, mas expressamos apenas sentimentos. Esse é o resultado da confusão entre a visão planetária e o Terrestre. A respeito do planeta, pode-se dizer, olhando as coisas “do alto”, que ele sempre variou, e que ele vai durar muito mais do que os humanos, o que permite encarar o Novo Regime Climático como uma oscilação sem importância. Já o Terrestre, por seu turno, não permite esse tipo de desprendimento. Desse modo, compreendemos facilmente por que é impossível oferecer uma descrição muito precisa dos conflitos concernindo as possibilidades de vínculo ao solo, e por que precisamos aprender a desenfeitiçar a noção de “natureza” que abarca aqueles dois atratores.
Quando os partidos ditos “ecológicos” tentam atrair o interesse das pessoas para o que se passa com “a natureza”, uma natureza que eles pretendem “proteger”, se o termo significa a natureza-universo vista de lugar nenhum, a natureza que supostamente se estende desde as células do nosso corpo até as galáxias mais distantes, a resposta das pessoas será simplesmente: “Tudo isso está muito longe; é muito vago; não nos diz respeito; não poderíamos nos importar menos!”.
E elas terão razão. Não avançaremos na direção de uma “política da natureza” enquanto utilizarmos o mesmo termo para designar coisas tão diversas como, por exemplo, uma pesquisa sobre o magnetismo terrestre, a classificação dos 3.500 exoplanetas que já foram identificados até agora, a detecção de ondas gravitacionais, o papel das minhocas na aeração dos solos, a reação dos pastores dos Pirineus à reintrodução dos ursos no local ou a reação das bactérias de nosso intestino a uma receita de dobradinha… Essa ideia de natureza abarca coisas demais.
Não precisamos mais buscar as causas da morosidade das mobilizações em favor da natureza-universo. Essa natureza é totalmente incapaz de provocar comoções políticas. Fazer desse tipo de seres – os objetos galileanos – o modelo do que pode nos engajar nos conflitos geo-sociais é entrar em campo para perder. Tentar mobilizar essa natureza nos conflitos de classe é como mergulhar os pés no cimento fresco antes de ir a uma manifestação.
Para começarmos a descrever de modo objetivo, racional e eficaz a situação terrestre, representando-a com algum realismo, precisamos de todas as ciências, porém posicionadas de outro modo. Em outras palavras, para ser um cientista, é inútil se teletransportar para Sirius. Tampouco é necessário abandonar a racionalidade para adicionar sentimentos ao frio conhecimento. É preciso, em suma, conhecer, da maneira mais fria possível, a atividade quente de uma terra finalmente vista de perto.
Como citar esse artigo
LATOUR, Bruno. Onde aterrar? PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 14, página 100 - 109, 2020.
Bruno Latour é professor na Sciences Po Paris, curador das exposições Critical Zones - ZKM Kalrshule e Taipei Biennial 2020. É autor, dentre outros, de Jamais fomos modernos, Políticas da natureza, Diante de Gaia e Onde aterrar? bruno-latour.fr