Sujeitaremos produção de comida às corporações do veneno e dos ultraprocessados? Ou apoiaremos projeto viável, que alimenta favorecendo a pequena propriedade, o orgânico e a Natureza?
Em 2021, aqueles de nós que trabalhamos na construção de sistemas alimentares mais justos, equitativos e que operam dentro dos limites planetários, temos muito trabalho a fazer. As mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e o rápido declínio da fertilidade do solo estão prejudicando seriamente a saúde das pessoas e do planeta, deslocando sociedades e ameaçando os sistemas alimentares no mundo inteiro.
Cinco anos atrás, firmávamos um compromisso global para acabar com a fome até 2030 — mas, desde então, já perdemos muito território. Estima-se que 690 milhões de pessoas passaram fome em 2019, e que mais de 2 bilhões careceram de acesso a alimentos seguros, nutritivos e suficientes com frequência. Tudo isso muito antes que a pandemia de COVID-19 aumentasse em aproximadamente 130 milhões o número de pessoas que sofrem de fome, e que empurrasse inumeráveis milhões a mais para a beira da fome, colocando em risco um terço dos meios de subsistência das pessoas envolvidas na produção agroalimentar.
Ao mesmo tempo, as relações de poder nos sistemas alimentares e na ampla economia global vêm mudando numa velocidade vertiginosa. Em 2008, as empresas mais poderosas do mundo eram aquelas que perfuravam poços de petróleo e negociavam seus títulos. Doze anos depois, os cinco maiores titãs corporativos do mundo vendem algo tão intangível quanto dados e têm um valor de mercado que excede o PIB de continentes inteiros. Os novos gigantes biodigitais estão prontos para dar o próximo passo: implantar os dados em massa e os DNA digitais na indústria farmacêutica, nos mercados de alimentos e nos sistemas financeiros do mundo. O “multi-setorialismo” torna-se onipresente na medida em que as corporações tornam-se cientes dos pontos de inflexão da vida social e ambiental à espreita, visando atrair governos, cientistas e um punhado de organizações da sociedade civil, para um novo multilateralismo artificial.
Nesse contexto, nos perguntamos como serão os sistemas alimentares em 2045 se permitirmos que o agronegócio continue desse jeito. Mas também imaginamos o que aconteceria se, pelo contrário, a sociedade civil e os movimentos sociais tomassem a iniciativa — das bases às ONGs internacionais, passando por grupos, cooperativas e sindicatos de agricultores, pecuaristas e pescadores. Consideremos o que este “grande movimento pela comida” poderia conseguir, se formos capazes de pensar com décadas de antecedência, colaborar em todos os setores e escalas, adotarmos diferenças estratégicas, trabalhar com governos e pressioná-los para a ação e transformação dos fluxos financeiros, estruturas de administração e sistemas alimentares desde a base.
Horizonte 2045: Agronegócio como de costume (Cenário 1)
Em primeiro lugar, imaginamos um sistema de alimentos sem alterações em comparação com o atual, e então analisamos sua possível evolução pelos próximos 25 anos, à medida em que as empresas e os governos respondem ao colapso ambiental, deslocamento social, reconfigurações geopolíticas e a uma ampla gama de possibilidades tecnológicas. Nesse cenário, as relações de poder permanecem basicamente inalteradas, e a sociedade civil — presa nas mesmas questões de sempre — consegue contestar a agenda e evitar os piores excessos, mas não com força suficiente para causar uma verdadeira mudança de curso.
Ao longo da década de 2020, os avanços nos campos de digitalização, automação, biologia sintética e tecnologias moleculares prometem eliminar os riscos — e as pessoas — do sistema alimentar. Os novos atores argumentam que o caminho para a resiliência (e o lucro) passa pela produção de proteínas em placas de Petri, por deixar a inteligência artificial administrar a colheita ou manipular com discrição o comportamento dos consumidores, inventando novos alimentos ultraprocessados ou apoiando a geo-engenharia.
Nos próximos anos, diante das mudanças climáticas, da degradação do meio ambiente e das pandemias que destroem os sistemas alimentares, essas soluções “milagrosas” mostram-se irresistíveis para os policy makers em pânico. Entregam as chaves do sistema alimentar para megacorporações biodigitais, plataformas de dados e empresas de capital privado que se aproveitam da proliferação de acordos de aquisição de negócios, e se transformam nos gigantes agroalimentares de amanhã.
Recorrem a algoritmos para determinar as condições de crescimento de cada metro quadrado fértil sobre o face da terra; as lavouras e o gado são criados (e alterados) sob medida para se adaptarem a estas condições, e ecossistemas são concebidos de acordo com dados recolhidos para alcançar um desempenho ideal. Os tratores robóticos e os drones para pulverização e vigilância — uma espécie de “internet agrícola das coisas” — ganham terreno tão rápido quanto as infraestruturas físicas e digitais permitem (Tendência # 1).
Deixar a segurança alimentar à mercê das redes digitais e de possíveis problemas técnicos de dados, preocupa igualmente governos e movimentos pela alimentação. Também é preocupante a situação dos agricultores que são obrigados a deixar suas terras para mudar-se para “cidades inteligentes” e vilas de comércio eletrônico, ou são reduzidos a meros proletários digitais. Mesmo assim, a promessa de um futuro “climaticamente inteligente” e “livre de riscos” convence muitos países de baixa renda a deixar a terra, os recursos e os dados nas mãos daqueles que fornecem as tecnologias e se oferecem para comprar suas colheitas com antecedência. Como resultado, os governos mais poderosos e suas empresas parceiras têm à disposição redes internas de logística, que utilizam para controlar os recursos e suprimentos de alimentos ao longo de enormes corredores econômicos.
Diferentemente dos Tratados de Livre Comércio (TLC) anteriores, que abriam novos mercados, os TLC das décadas de 2020 e 2030 servem principalmente para garantir o acesso aos recursos, proteger os direitos de exploração dos dados corporativos e congelar regulamentos desfavoráveis. Ao considerar o alimento como um ativo estratégico, põe-se em marcha uma nova onda de acumulação de terras, oceanos e recursos; e, cada vez mais, os pontos de congestionamento comercial são militarizados (Tendência # 2).
Ao final da cadeia, na ponta do consumidor, os dados coletados nas atividades online são combinados com os metadados gerados pelo uso de carteiras digitais, serviços de alimentação automatizados e outras atividades cotidianas. A interconexão dessas fontes de dados abre novas oportunidades para rastrear, aprimorar e manipular invisivelmente os hábitos alimentares das pessoas e reconfigurar as culturas alimentares. A indústria alimentícia gasta cada vez mais recursos para oferecer novos vernizes ao consumismo ético e sustentável, confundindo os cidadãos com uma variedade avassaladora de argumentos e cadeias produtivas cada vez menos transparentes (Tendência # 3).
Horizonte 2045: Sociedade civil como nunca antes (Cenário 2)
O desgaste do meio ambiente, as ameaças à segurança alimentar e o impulso das novas tecnologias baseadas em dados fazem parte de qualquer cenário realista pelos próximos 25 anos. No entanto, não há nada de inevitável nessas trajetórias impulsionadas pelo agronegócio. Na prática, o que vai acontecer é que as divisões entre grandes corporações — e também entre empresas, trabalhadores e consumidores — vão aumentar; dado que os ecossistemas se recusam a ser domados, as pessoas resistem à manipulação, as tecnologias têm falhas e verdadeiros pontos de inflexão ambiental e social se aproximam. Muito dependerá de até que ponto as corporações mais poderosas — em nome do “multissetorialismo” — conseguem ganhar com o controle da governança do sistema alimentar.
Neste segundo cenário, a sociedade civil adota a iniciativa e passa a desenvolver colaborações mais profundas, mais amplas e mais eficientes do que nunca. Efetivamente, faz tempo que um movimento de longo prazo pela alimentação vem se gestando. Numerosos exemplos que vão desde as lutas indígenas atuais contra a colonização até os protestos antiglobalização que deram lugar ao conceito de soberania alimentar, mostram que a sociedade civil — em sua diversidade de formas e escalas de ação — pode ser um motor de mudança muito poderoso.
Na luz destas experiências, é possível identificar quatro processos básicos que os movimentos pela alimentação precisam realizar para promover a transformação no próximo quarto um século: 1) colaborar em múltiplas escalas; 2) expandir alianças e reestruturar as relações; 3) conectar seu compromisso de longo prazo a um amplo “scanner do horizonte”; e 4) preparar-se para a mudança e as situações perturbadoras.
Estas dinâmicas já são difundidas nos movimentos atuais pela alimentação, mas deveríamos desenvolvê-las de uma forma mais sistemática. Em particular, a sociedade civil terá que se preparar melhor para as muitas crises que se avizinham no próximo quarto de século: os chamados “cisnes cinza”, eventos que não podem ser previstos em termos de data ou de características específicas, mas para aqueles que sim é possível se preparar. Neste cenário, imaginamos quatro caminhos possíveis e inter-relacionados de reforma e transformação dos sistemas de alimentação:
CAMINHO 1
Ancorar os sistemas de alimentação na diversidade, na agroecologia e nos direitos humanos
Ao longo da década de 2020, os sistemas alimentares com base na diversidade têm demonstrado uma grande resiliência em comparação com a crise. Os mercados territoriais continuam em expansão e as dietas voltaram-se para opções éticas e saudáveis. Com um claro consenso em torno da soberania alimentar e da agroecologia, um movimento alimentar de longo prazo deve defender os direitos dos excluídos e amplificar as suas vozes por meio de processos inclusivos, de promoção de sistemas diversificados e agroecológicos e acelerando o surgimento de mercados alternativos e mudanças nas dietas.
OPORTUNIDADE # 1
Construir resiliência por meio da diversidade e da agroecologia
Na década de 2020, solos saudáveis, diversidade de variedades de culturas e de raças de gado, e ecossistemas agrícolas e aquáticos dinâmicos são cada vez mais valorizados. Os impactos dos diferentes sistemas de produção tornam-se mais fáceis de medir e, em 2030, os sistemas agroecológicos estarão estabelecidos e superando a agricultura industrial em várias escalas. Os povos indígenas e camponeses continuam a proteger as paisagens e a cultivar espécies esquecidas e desvalorizadas, bem como variedades selvagens de plantações, por meio da expansão de bancos genéticos e coleções vivas comunitárias, intercâmbio entre pescadores e agricultores de ecossistemas vizinhos e escolas agroecológicas no campo.
Alimentos tradicionais — incluindo safras “menores”, com alta tolerância ao clima e às doenças, e alto valor nutricional — são recuperados graças aos esforços conjuntos de movimentos sociais, chefs, responsáveis pelas compras públicas e formuladores de políticas. No entanto, as estratégias dos agricultores para proteger a diversidade continuam sendo atacadas, ameaçando e colocando em risco sua capacidade de garantir a segurança alimentar até 2045.
Vários apoios políticos para a agroecologia também estão consolidados. Com base no Tratado Internacional sobre Recursos Genéticos Vegetais para Alimentos e Agricultura (Tratado de Sementes da FAO), a sociedade civil consegue negociar um protocolo sobre diversidade genética, salvaguardando a pesquisa feita por agricultores e o intercâmbio de suas sementes e variedades, mesmo além das fronteiras.
OPORTUNIDADE # 2
Defender os direitos humanos, os direitos da natureza e renegociar o contrato entre o Estado e a sociedade
As crises incessantes e a crescente precariedade do próximo quarto de século tornam os direitos humanos mais importantes do que nunca como uma bússola que orienta os movimentos de alimentos. Na década de 2020, novas formas de proteção social proliferam e a sociedade civil luta para que os direitos sejam plenos e não passíveis de espionagem digitalizada.
Com o novo reconhecimento dos “trabalhadores essenciais” nos sistemas alimentares, os direitos trabalhistas são garantidos por meio de uma série de leis nacionais e regulamentações internacionais reforçadas. Mas só isso não basta: na década de 2030, os movimentos alimentares pedem ao Estado que ele defenda o acesso universal básico aos direitos e recursos (terra, sementes, água, cultura) e à produção dirigida pelo povo, diante da expansão de grandes complexos agroindustriais e da automação massiva.
Ao colocar os direitos no centro, os governos são forçados a vincular o próximo conjunto de objetivos de desenvolvimento – a “Agenda 2045” – a um novo acordo financeiro entre o Norte e o Sul. Paralelamente, os movimentos de alimentos estão explorando uma série de caminhos legais: aumentando o apoio aos defensores dos direitos civis e lançando poderosas campanhas em grande escala para estabelecer os direitos dos rios, das bacias hidrográficas, dos ecossistemas e do planeta, garantindo ao mesmo tempo que as salvaguardas não sejam usadas para expulsar as comunidades de suas terras. Em 2040, a fome, a subnutrição, a desnutrição, os problemas de saúde e a degradação ambiental constituirão uma violação criminal dos direitos humanos que pode ser levada ao Conselho de Direitos Humanos (ou perante um Tribunal Penal Internacional reestruturado).
OPORTUNIDADE # 3
Acelerar a transição para cadeias de abastecimento territoriais e para o consumo ético
Os mercados territoriais — que já são a norma para muitos pequenos produtores e consumidores no Sul global — continuam a crescer como resultado da COVID-19. Nas décadas de 2020 e 2030 — com maior ênfase na resiliência e no apoio crescente dos municípios e regiões — testemunhamos o aumento de iniciativas de cadeias de suprimentos curtas, a produção de alimentos cresce nas comunidades e famílias e multiplica cooperativas de produtores e consumidores. Essas tendências convergem para uma explosão de compras éticas, ecológicas e locais e uma transição progressiva para dietas vegetarianas e “flexitarianas”, adotadas por até 80% dos que antes comiam muita carne (os mais abastados).
Em 2045, cerca de 25% do consumo mundial de gado e frutas e vegetais virá de famílias e fazendas urbanas, outros 25% dos centros de abastecimento regionais e até metade do abastecimento da indústria de alimentos será comercializado de forma justa, na opinião produtores camponeses. Agricultores e movimentos sociais encontram uma causa comum em sua oposição a novos substitutos para carne e laticínios, e conseguem impedir a introdução massiva desses produtos nos mercados mundiais.
Em 2045, os consumidores — munidos de ferramentas sofisticadas de análise de dados públicos e aplicativos de verificação de dados, de contabilidade de custos reais e transparência — serão capazes de distinguir rapidamente entre empresas operando “como de costume”, fazendo os negócios “de sempre” (“A-corps”); empresas que assumem um compromisso permanente com a responsabilidade corporativa (“B-corps”); e empreendimentos cooperativos sustentáveis (“C-corps”).
CAMINHO 2
Transformar as estruturas do governo
Ao longo dos anos, o movimento de alimentos de longo prazo vêm lutando contra a dominação corporativa do sistema multilateral e reconfigurando radicalmente a governança. Diante de crises quase permanentes, a sociedade civil consegue adotar medidas urgentes sobre segurança alimentar que derrubam regras de comércio e contratos de grilagem de terras, e medidas rígidas são tomadas contra a concentração e os remendos tecnológicos do agronegócio. Essas mudanças são sustentadas pela contínua proliferação de Conselhos de Política Alimentar, processos de reflexão compartilhada e outros mecanismos que reforçam a participação dos movimentos sociais, povos indígenas e ONGs na governança do sistema alimentar.
OPORTUNIDADE # 4
Revisar, reformar e reconfigurar as agências agroalimentares da ONU
Apesar das muitas deficiências das instituições multilaterais, os movimentos alimentares concordam em querer evitar o sequestro da ONU e de suas agências com sede em Roma por parte das grandes corporações, e em começar a se mobilizar em torno da controversa Cúpula dos Sistemas de Alimentação da ONU em 2021. Aproveitando o inevitável vácuo pós-Cúpula, a sociedade civil está pressionando para que o trabalho fragmentado dos órgãos da ONU baseados em Roma sejam reunidos, ao mesmo tempo que fortalecem os processos regionais.
Na década de 2030, a sociedade civil defendeu a reforma com base em análises independentes de órgãos da ONU com sede em Roma, revelando inúmeras ineficiências e deturpações. Também conseguiu o apoio de governos com ideias semelhantes e secretariados da ONU, e usou sua crescente capacidade de planejamento para influenciar a eleição dos chefes desses órgãos. As reformas resultantes reunificam os três órgãos da ONU baseados em Roma sob a égide de um Comitê de Segurança Alimentar Mundial (CFS) rejuvenescido e altamente inclusivo, servindo como o órgão governante de fato, e realinham o CGIAR (Grupo Consultivo para Pesquisa Agrícola Internacional, conhecido como CGIAR por sua sigla em inglês) com o resto das agências (tornando-o o quarto órgão da ONU com sede em Roma).
Mais importante ainda, a formulação de políticas é descentralizada e democratizada por meio dos novos fóruns regionais do CFS, que facilitam o diálogo “da base até Roma”; os grupos de trabalho interinstitucionais e não hierárquicos são reativados; e os processos de reflexão compartilhada são generalizados. Essas reformas ajudam a mover as deliberações globais (por exemplo, sobre agroecologia, mercados de territórios e terras) para a esfera nacional, para construir diálogos globais e nacionais em torno das realidades locais e lições aprendidas, para preencher a lacuna entre as organizações da sociedade civil trabalhando em nível local e as de alcance global.
OPORTUNIDADE # 5
Acabar com a impunidade corporativa e seus remendos tecnológicos.
Ao longo dos próximos anos e décadas, os movimentos de alimentos pressionam por leis nacionais e um tratado da ONU para monitorar, regulamentar ou retirar tecnologias perigosas ou deficientes – particularmente os sistemas de big data nos quais se baseiam. A impunidade corporativa está ameaçada em várias frentes: intensifica-se a pressão por um tratado que limite o poder das corporações; iniciativas em torno da política de concorrência e regras antitruste estão ganhando impulso; as proteções aos investidores são eliminadas dos acordos comerciais; e os países se unem para abrir processos de ação coletiva contra o agronegócio.
Para acelerar o progresso, os movimentos de alimentos estabelecem parcerias com governos com ideias semelhantes e secretarias da ONU. Os debates internacionais não demoram em se abrir a acordos antitruste e tributários que começam sendo aplicados aos gigantes digitais e que, finalmente, atingem todos os setores. Na década de 2030, as negociações resultaram em uma série de tratados/protocolos destinados a limitar a impunidade corporativa. Apesar desses acordos serem ratificados por apenas algumas dezenas de países, e apesar de algumas ações serem finalmente resolvidas fora dos tribunais, o efeito combinado de ambos (e sua influência no mercado) é suficiente para gerar uma mudança nas práticas do empresas, corporações globais.
OPORTUNIDADE # 6
Adoção de um acordo internacional sobre emergências alimentares.
Diante do aumento de emergências alimentares durante a década de 2020, os governos estão começando a levar a sério a prevenção de desastres; e grupos de trabalho da sociedade civil estão recuperando as estruturas existentes e desenvolvendo novos modelos que priorizam a segurança alimentar em relação aos acordos comerciais, contratos abusivos de venda de terras e outras questões comerciais ou políticas.
Na década de 2030, um grande número de governos aplicará leis-modelo e, em face às crises alimentares prolongadas, há uma forte vontade de acelerar as negociações internacionais. A memória da luta pelo acesso às vacinas contra a COVID-19 e as barreiras causadas pela regulamentação da propriedade intelectual contribuem para multiplicar os apoios ao processo. Com a OMC dividida e os países com maior vocação comercial reorientados para a autossuficiência estratégica, o tratado é aprovado e um bom número de países e regiões decide também adotar protocolos para eliminar os possíveis obstáculos remanescentes. O agronegócio tenta revogar os acordos, mas ao longo dos anos 2030, organizações da sociedade civil convencem os governos de que a crise é indefinida e os acordos emergenciais devem continuar em vigor.
OPORTUNIDADE # 7
Implementar políticas alimentares, conselhos de políticas alimentares e novas formas de participação cidadã
Paralelamente a seus esforços em nível internacional, os movimentos alimentares também trabalham na consolidação e disseminação de políticas alimentares democráticas, processos de reflexão compartilhada e modelos de governança multissetoriais forjados em cidades e municípios; e, no início da década de 2020, começam a ganhar espaço no nível nacional.
Ao longo da década, os movimentos por alimentos têm acumulado vitórias de forma consistente, aproveitando a experiência de autoridades municipais e grupos da sociedade civil, redes consolidadas de atores pioneiros e a crescente visibilidade de cidades e regiões nas negociações climáticas internacionais. Na década de 2030, os novos processos deliberativos do CFS (vide “Oportunidade nº4”) estão vinculados a outros espaços de governança global e, como resultado, as diretrizes internacionais para o desenvolvimento de processos e órgãos inclusivos de governança alimentar refletem os aprendizados das experiências locais.
CAMINHO 3
Reorientar fluxos financeiros
A combinação de emergências climáticas, epidemias relacionadas à produção de alimentos, e riscos e falhas tecnológicas aceleram o estopim e exigem mais do que nunca a reorientação dos fluxos financeiros existentes. O movimento de longo prazo por alimentos concentra-se em três áreas: i) metas fáceis (ou “frutas ao alcance da mão”), como linhas orçamentárias administrativas e de pesquisa; ii) o difícil objetivo dos subsídios às principais commodities; e iii) “externalidades” e receitas corporativas não tributadas.
OPORTUNIDADE #8
Reorientar as linhas orçamentárias técnicas e de Pesquisa e Desenvolvimento para sistemas alimentares sustentáveis
Nos próximos anos, a sociedade civil se concentra em acessar as fontes de financiamento que podem ser realocadas sem a necessidade de um grande debate político. Eles começam com a FAO e o FIDA, onde se estima que os chefes de agência e funcionários relacionados podem realocar um terço das despesas entre diferentes departamentos ou linhas orçamentárias. Incentivado por seu Prêmio Nobel, o Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA) concorda em aumentar sua participação no abastecimento local sustentável (com uma meta de atingir 90% até 2030, no mais tardar), com uma oposição relativamente baixa.
Paralelamente, a sociedade civil trabalha para recuperar os duvidosos fluxos de ajuda que subsidiam missões comerciais, facilitam o investimento estrangeiro no setor extrativo ou contribuem para os objetivos geopolíticos dos doadores (em outras palavras, formas residuais de “ajuda condicional”). Quantias mais altas são recuperadas à medida que os movimentos de alimentos aumentam a pressão sobre os doadores bilaterais, exigindo que eles reorientem os projetos de pesquisa em países do Sul para a agroecologia, alinhando os objetivos dos centros globais de pesquisa (CGIAR) e reformando seus próprios programas de pesquisa agrícola.
OPORTUNIDADE #9
Reformar os subsídios para os principais produtos de base
A sociedade civil está empenhada em redirecionar o máximo possível dos 720 bilhões de dólares anuais em subsídios aos produtores, para que, ao invés de acabar no setor da agricultura industrial, sejam destinados à produção sustentável de alimentos. Como as alianças intersetoriais que desafiaram a OMC há alguns anos, no próximo quarto de século, os movimentos por alimentos, comércio e clima estão se juntando a grupos de agricultores, pescadores e trabalhadores em todo o sistema alimentar. Eles exigem uma reforma dos subsídios, preços justos e salários decentes. Em um cenário de pontos de inflexão ambientais no horizonte, de aumento da obesidade e de maior visibilidade de casos de abuso da mão de obra em lavouras, navios pesqueiros e fazendas industriais, esses esforços começarão a dar frutos no final da década de 2020.
Os subsídios aos combustíveis para os navios pesqueiros são os primeiros a cair e, subsequentemente, os subsídios para as operações de cacau, açúcar, óleo de palma e rações industriais são cortados. Oportunidades de reforma também estão se multiplicando globalmente, à medida que o aumento dos preços dos alimentos e a volatilidade do comércio se tornam o pão e a manteiga de cada dia. Puxando as mesmas cordas que usaram em 2009 para reativar o CFS, as organizações da sociedade civil pretendem aproveitar as vantagens da iminente crise global dos preços dos alimentos para recapitalizar o Fundo Comum das Nações Unidas para Produtos Básicos e reorientá-lo para o apoio à diversificação. Na década de 2030, um pequeno grupo de doadores bilaterais e fundos globais estarão liderando o desvio de investimentos das abordagens da “nova revolução verde” para a agroecologia.
OPORTUNIDADE #10
Colocar obstáculos à comida porcaria e tributar empresas de maneira justa
Durante o próximo quarto de século, multiplicam-se as vozes que exigem mais impostos para a indústria agroalimentar, seus produtos insalubres e seus impactos mais poluentes. Incentivados pelo sucesso da severa repressão à junk food no México e no Chile, os movimentos alimentares implantaram seu arsenal de estratégias de campanha ao longo da década de 2020 e acumularam vitórias em todas as regiões do mundo.
Com isso, conseguem resgatar novas receitas tributárias, prejudicar os lucros do agronegócio (e, portanto, sua capacidade de definir a agenda) e gerar economias consideráveis na área da saúde. Na década de 2030, novas conexões foram estabelecidas com movimentos de tributação ambiental, enquanto os consumidores têm a possibilidade de conhecer os “custos reais” da agricultura industrial por meio de bancos de dados abertos ao público. Os impostos que estão sendo estabelecidos — sobre CO2, toxinas, embalagens plásticas e resíduos alimentares — às vezes são insignificantes.
Mas, assim como acontece com os subsídios, os primeiros a adotar a iniciativa estão exigindo mudanças semelhantes de seus parceiros comerciais, desencadeando uma cascata de reformas e uma nova norma em escala global. Incentivado por essas conquistas, o movimento de alimentos de longo prazo e seus aliados em outros setores voltam sua atenção para a evasão fiscal corporativa e empreendem uma cruzada contra novas formas de negligência por parte dos gigantes bio-digitais que agora dominam o setor agroalimentar. Assim, eles descobrem que muitos governos estão chegando a um ponto crítico nessa questão e estão dispostos a agir.
CAMINHO 4
Repensar as modalidades de cooperação da sociedade civil
Para avançar nos caminhos 1, 2 e 3, a sociedade civil deve ser mais colaborativa do que nunca. Isso envolve lidar com rivalidades históricas, prioridades divergentes e competição por financiamento. Já existem muitos processos colaborativos bem-sucedidos que definem o rumo, e o agravamento das crises socioambientais revela novas oportunidades de trabalho conjunto.
OPORTUNIDADE #11
Generalizar a colaboração intersetorial
Os movimentos pela alimentação concentram seus esforços em superar vários obstáculos à colaboração e em tornar as abordagens intersetoriais a norma. Com o futuro da governança global em jogo (e enfrentando o risco de domínio corporativo), a Cúpula de Sistemas Alimentares de 2021 acelera as convergências da sociedade civil. Paralelamente à digitalização dos sistemas alimentares, os ativistas alimentares estão aprendendo com as lutas pela justiça digital e vice-versa, além de multiplicar suas alianças com os movimentos de justiça ambiental e climática.
Na década de 2030, o senso de propósito compartilhado incentiva as organizações da sociedade civil, fundações e redes a sincronizar seus calendários (das reuniões anuais do conselho às programações das conferências) com o objetivo de facilitar os diálogos intersetoriais de negócios, o planejamento estratégico e as oportunidades de cofinanciamento. As tensões permanecem entre a adoção de medidas de emergência (em face de crises que se multiplicam) e o desenvolvimento de estratégias de longo prazo. Progresso significativo terá sido feito até 2045, mas a busca por uma colaboração mais estreita continua sendo um trabalho em andamento, sujeito a negociações constantes.
OPORTUNIDADE #12
Desenvolver novas ferramentas para bloquear cadeias de commodities corporativas e se infiltrar em negociações a portas fechadas
Desde o início da década de 2020, os movimentos por alimentos expandem sua vigilância sobre as corporações, trabalhando primeiro com aliados próximos e, em seguida, alcançando organizações sociais em praticamente todos os setores. Em lugares onde a expansão do setor pecuário contribui para o desmatamento e a grilagem de terras, as comunidades indígenas, por exemplo, se conectam com trabalhadores do setor agrícola e de alimentos que levantaram questões sobre os mesmos negócios e trabalham com organizações locais de consumidores e saúde para “travar as correntes” e proteger os meios de subsistência.
Na década de 2030, os movimentos de alimentos também estão desenvolvendo ferramentas digitais que atendem a uma maior colaboração. A plataforma “Agropedia” facilita o fluxo de informações sobre commodities, empresas ou compromissos. As organizações da sociedade civil podem acessar os algoritmos usados para construir documentos-chave e os aplicativos de comunicação permitem decifrar os textos das negociações e identificar os atores que lideram e dominam essas discussões. Ferramentas são desenvolvidas para conectar comunidades e organizações interessadas com salas de conferências e textos de negociação, de conselhos municipais a assembleias da ONU.
OPORTUNIDADE #13
Criar novas parcerias para financiar um quarto de século de transformação do sistema alimentar
Com as empresas agrícolas implantando rapidamente sistemas alimentares baseados em inteligência artificial e big data, e os limites planetários sendo ultrapassados, está ficando claro que os ganhos com os movimentos de alimentos são escassos e chegam tarde demais. Fugindo da armadilha dos filantro-capitalistas de um lado e dos “cleptofilantropos” do outro, os movimentos de alimentos se voltam para doadores bilaterais e fundações progressistas e se propõem a considerar novas formas de colaboração e responsabilidade.
Como consequência, na década de 2030, os financiadores aliados mudam de subsídios de curto prazo por projeto para ciclos de financiamento de cinco anos, dobrando seu financiamento pelo menos a cada 10 anos e abrindo-se para iniciativas piloto, especulativas, intersetoriais e de preparação para o futuro. Mais importante ainda, eles estão dispostos a usar seu dinheiro e influência para catalisar mudanças maiores nos reinos financeiro e político.
Conclusões
É claro que em um futuro liderado pelo agronegócio seria impossível devolver o planeta e seus sistemas alimentares a um espaço operacional seguro. Na verdade, desigualdades galopantes continuariam a ser geradas, as pressões sobre os meios de subsistência se intensificariam, uma maior insegurança alimentar seria criada e novos impactos negativos sobre o meio ambiente seriam gerados. Em contraposição a este cenário, quatro caminhos para a transformação dos sistemas alimentares promovidos pela sociedade civil permitiriam desviar 4 trilhões de dólares da cadeia industrial para a soberania alimentar e agroecológica, reduzir 75% das emissões de gases com efeito estufa derivadas dos sistemas alimentares e gerar benefícios incalculáveis para as vidas e meios de subsistência de bilhões de pessoas nos próximos 25 anos.
No entanto, um movimento de longo prazo por alimentos acarreta uma série de riscos, desafios e incógnitas para grupos da sociedade civil. Primeiramente, envolve oportunidades incertas e custos operacionais incalculáveis (por exemplo, tempo e recursos para as campanhas do dia a dia). Em segundo lugar, a combinação de um lobby corporativo implacável com processos governamentais e intergovernamentais opacos significa que as vitórias sempre podem ser temporárias. Terceiro, há um risco de cooptação inerente a qualquer estratégia, incluindo aquelas descritas aqui. Por fim, mesmo que tenhamos barrado o “velho agronegócio” até certo ponto, essas estratégias podem não ser suficientes para devolver a habitabilidade ao planeta. Nesse contexto, é compreensível que as organizações da sociedade civil invistam todos os seus recursos na luta pela sobrevivência ou respostas a possíveis crises.
Em qualquer caso, os argumentos do Movimento de Longo prazo pela Alimentação são imponentes. Não exigem mudanças nas estratégias de curto prazo contra a grilagem de terras para campanhas pela assinatura de um novo tratado internacional. Um movimento de longo prazo por alimentos incita grupos da sociedade civil a distribuir uma série de objetivos e ações em uma trilha de 25 anos, adotando um panorama no desenvolvimento de campanhas abrangentes, considerando a rapidez com que podem ocorrer rupturas ambientais e sociais, bem como uma agressão do tsunami corporativo. Em um contexto de ameaças e pontos de inflexão sem precedentes, a falha em assumir riscos equivale a um fracasso seguro.
A sociedade civil pode e deve ser transformada. A história mostra que, diante de oportunidades ou situações de necessidade, as pessoas conseguem se adaptar quase que da noite para o dia. Guerras, embargos, golpes e desastres naturais podem transformar os padrões de produção e consumo e dar origem a novas redes de comunicação e cooperação. As enormes mudanças às que a sociedade se adaptou com a pandemia de COVID-19, que teriam parecido ser ingenuamente otimistas há apenas um ano, mostram-nos que amanhã tudo é possível.
O Painel Internacional de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis (IPES-Food) visa informar os debates sobre a reforma dos sistemas alimentares por meio de pesquisas e envolvimento direto em processos de formulação de políticas do mundo inteiro. O painel é co-presidido por Olivier De Schutter, Relator Especial da ONU sobre pobreza extrema e direitos humanos, e Maryam Rahmanian, especialista independente em agricultura e sistemas alimentares.