A pandemia mostrou as falácias do discurso do homo economicus, desconstruindo de modo vertiginoso a redução da vida a valor econômico; a negação do público e do comum; o indivíduo como valor absoluto e a redução da alteridade do outro à lógica utilitarista do interesse próprio
Esta pandemia do coronavírus está colocando a humanidade perante muitos desafios, porém, entre eles, talvez estejamos sendo testemunhas de uma grande crise civilizatória que está fazendo tremer os alicerces estruturais e culturais construídos pelo capitalismo nos últimos quatro séculos. Há muitas décadas que desde diversas perspectivas do pensamento crítico vinham se levantando vozes que nos alertavam sobre a insustentabilidade a médio e longo prazo deste modelo civilizatório baseado na acumulação indefinida de riqueza em poucos oligopólios, que exige uma predação ad infinitum do planeta terra. Este modelo impôs a cultura do homo economicus como uma espécie de nova religião naturalizada. A cultura do homo economicus, muito mais que um projeto econômico ou político, tornou-se um modo de subjetivação através do qual as atuais gerações globalizam a cultura da mercantilização da vida e a descartabilidade econômica de tudo que se toca.
Dentre os vários princípios do homo economicus que a pandemia desconstruiu de modo vertiginoso, podemos destacar:
A filosofia do homo economicus propõe que todas as dimensões da vida humana podem e devem ser traduzidas em valor econômico. Para este modelo de subjetivação, tudo que fazemos na vida deve ser percebido como um investimento econômico para extrair rendimento. A vida humana é compreendida como um empreendimento econômico que deve rentabilizar cada uma de suas facetas como a educação, os afetos, as amizades, as habilidades e todos os demais aspectos vitais. Todos eles devem ser entendidos como oportunidade de interesse, negócio ou possibilidade de obter renda. A lógica das relações humanas do homo economicus é o cálculo utilitarista dos rendimentos. A vida vale tanto quanto os benefícios ou rendimentos que dela podemos obter. O ideal é nos tornar empresários de nós mesmos, fazendo da vida um empreendimento, uma empresa. O modelo de vida do homo economicus é o empresário de si, que gerencia cada circunstância de sua vida como uma oportunidade de negócio. O homo economicus aponta para a utopia final da mercantilização total da vida, tanto da vida humana quanto da vida do planeta. Tudo é suscetível de se tornar mercadoria e negócio, pois só na forma de mercadoria a vida será melhor gerida.
A filosofia do homo economicus considera que a dimensão pública da vida humana assim como suas formas comunitárias de organização são uma invenção ideológica do socialismo. Elas seriam ineficientes na gestão e seriam um lastro econômico deficitário. Por fim, tanto a dimensão pública quanto o comum são considerados quase uma aberração antinatural da economia e das relações sociais. A filosofia do homo economicus pensa que, por exemplo, a saúde, a educação, alimentação, etc., não podem ser considerados direitos humanos ou direitos fundamentais. Estes aspectos, como todos os demais da vida humana, devem entrar na lógica do mercado e serem administrados pela racionalidade do lucro, que permitirá uma melhor gestão, evitando o desperdício de dinheiro público. Na racionalidade do homo economicus, há que privatizar todas as formas comunitárias, assim como tudo o que for público deve ser desmontado e reduzido na sua mínima expressão, deixando à iniciativa privada a gestão de tudo. O homo economicus tem uma fé cega na capacidade natural do indivíduo como empreendedor e na sua motivação do interesse próprio, com sua consequente aspiração a maximizar o lucro, como motores naturais para impulsionar e gerenciar com eficiência todas as esferas da vida pública e social. Nada deve impedir a expansão do interesse próprio inerente ao homo economicus. A verdadeira liberdade é a liberdade de negócios.
Certamente que a saúde é um desses âmbitos da vida humana que, para o homo economicus, deve estar exclusivamente regido pela lógica do interesse particular e entregue à iniciativa privada. Segundo essa lógica, cada um deve cuidar de sua saúde como um investimento em si mesmo, e para tanto deve investir no plano de saúde. A saúde não é um direito, senão uma mercadoria. Por sua vez, a gestão da saúde deve ser uma lógica de mercado. Quem puder pagar, terá os benefícios e quem não pagar não tem por que ter direito àquilo que não é capaz de conseguir por si mesmo
A pandemia caiu como um raio sobre estes axiomas do homo economicus. A pandemia mostrou a ineficácia da iniciativa privada para enfrentar de forma global e em ampla escala um problema de saúde pública tão abrangente. Algumas minorias privilegiadas que têm seus bons planos de saúde sentem-se protegidas individualmente, enquanto pensam que o abandono daqueles que não podem pagar a saúde é uma consequência natural da livre concorrência, que não devemos impedir. Mas essa atitude egoísta também mostra a ignorância de quanto o individualismo é ineficaz perante a pandemia. Não é suficiente que alguns tenham plano de saúde, a pandemia atinge a todos enquanto todos não sejamos capazes de enfrentá-la de modo coletivo. Por ironia do destino ou destino da pandemia, em muitos lugares como o Brasil, o primeiro foco da pandemia se registrou entre as elites ricas, porque eles viajaram de avião aos países infectados como China, Itália, tornando-se o alvo central da pandemia e o foco de sua irradiação.
A pandemia está mostrando que a única maneira de enfrentarmos problemas e desafios globais é de forma coletiva. Para tanto, só um bom serviço público de saúde pode conseguir frear em grande escala os efeitos da pandemia. Por isso, resulta paradoxal ver como, de repente, muitos dos líderes mundiais do neoliberalismo se tornaram grandes defensores do sistema público de saúde, a começar pelo Brasil. Muitos governos neoliberais que pretendiam simplesmente esvaziar ou até acabar com o sistema público de saúde por considerá-lo uma aberração ideológica, estão sendo obrigados pela pandemia a reforçar o sistema público de saúde como a única e melhor alternativa possível para evitar uma tragédia monumental de mortes em grande escala.
Talvez um dos exemplos mais paradoxais impostos pela pandemia como lição moral e política seja o momento em que o primeiro-ministro da Inglaterra, Boris Johnson, saiu recuperado do hospital público e agradeceu ao sistema público de saúde que lhe salvou a vida, e elogiou a importância do sistema público de saúde nestes momentos. Talvez faltou complementar que várias das enfermeiras que lhe atenderam eram estrangeiras, já que ele tem uma política para expulsão compulsória dos estrangeiros.
De repente, na pandemia, irrompeu imprevisivelmente a importância do público, do comum, como a única ou a melhor alternativa para enfrentarmos esta ameaça global. Concomitantemente, vemos como os principais apóstolos do homo economicus abandonam suas crenças dogmáticas neoliberais e adotam como única solução possível em tempos de pandemia o reforço do serviço público de saúde e as formas comunitárias de enfrentar a pandemia.
Mas a pandemia também mostrou as falácias de outros muitos dogmas econômicos da doutrina do homo economicus quando observamos que os líderes neoliberais do mundo optaram por injetar dinheiro público em quantidades gigantescas, como nunca antes na história da humanidade, para reforçar as empresas privadas. Ou seja, enquanto nos tempos de bonança econômica se prega a livre iniciativa para gerar lucro aos negócios privados, em tempos de crise esse princípio do mercado neoliberal é deixado de lado e se apela ao dinheiro público como a única solução capaz de socorrer o agora denominado tecido produtivo. Na época de pandemia, como nas outras grandes crises, se afirma que as empresas também são um patrimônio comunitário e cumprem uma função social que não se pode deixar morrer. De repente, em época de pandemia, como em outras grandes crises, se abandona a doutrina do liberalismo econômico e se apela para o socorro público como única solução.
De igual forma, os governos neoliberais, totalmente contrários às políticas sociais por considerá-las a negação dos princípios fundadores da livre iniciativa do homo economicus, decidiram, inclusive, implementar uma espécie de “renda universal mínima” para todos os que não conseguem sequer ter o mínimo para se sustentar nos tempos de pandemia. A renda mínima universal é uma das reivindicações mais importantes das últimas décadas, proposta pelos movimentos sociais como alternativa solidária contra a exclusão social. Até agora era considerada uma iniciativa de caráter socialista e inaceitável para os princípios neoliberais. Mais uma vez, a pandemia não só está despindo o homo economicus de suas roupagens falaciosas, senão que está mostrando a viabilidade de alternativas políticas de caráter solidário, quando há vontade política.
3. O indivíduo como valor absoluto e a redução da alteridade do outro à lógica utilitarista do interesse próprio
Um terceiro aspecto que a pandemia está evidenciando ser falacioso é o axioma do homo economicus de que o indivíduo tem um valor absoluto, sendo a relação com o outro um desdobramento utilitário do interesse individual. Este princípio antropológico do homo economicus tem solidificado a cultura do individualismo como sendo o modo natural de existirmos no atual momento. O individualismo do homo economicus prega que a natureza individual está essencialmente eivada pelo impulso do interesse próprio que inevitavelmente nos lançaria a entender o outro como um apêndice útil para minha sobrevivência.
O modo de subjetivação individualista tem penetrado capilarmente em quase todas as dimensões da vida humana de nossas sociedades contemporâneas, ao extremo de considerarmos absolutamente natural esta visão do in-divíduo como sendo o indivisível de nós mesmos. Nos percebemos, antes de tudo, indivíduos, e os outros são satélites mais ou menos necessários para meu eu. Esta cultura individualista penetrou capilarmente no âmago da alma contemporânea, incapacitando-nos para entender que seja possível uma outra forma de subjetivação que não o individualismo.
O individualismo pregado pelo modelo do homo economicus sustenta que cada indivíduo deve ter a capacidade de solucionar individualmente seus problemas. É a capacidade individual que possibilita a ascensão social. O outro é sempre uma oportunidade para o interesse individual. Desta forma, o outro é alguém de quem posso tirar proveito, ou alguém com que posso me beneficiar. Em qualquer caso, na relação com o outro há sempre uma dimensão de cálculo utilitarista. Em última instância, o indivíduo é o único responsável de si mesmo e por tudo que ele conseguir ser. De igual modo, a sociedade é o resultado das decisões individuais. A maximização do progresso econômico e social se consegue, por sua vez, através do equilíbrio natural dos egoísmos individuais.
A falácia individualista de nossa cultura há tempo que foi mostrada pelos pensadores da alteridade, uma vez que o indivíduo que nós pensamos ser, nada mais é que o resultado da complexa rede de relações que mantivemos ao longo de nossa existência com os outros. Não existe um in-divíduo indivisível! Somos o resultado das interações com os outros. Nos constituímos através de um processo de subjetivação em que os outros são condição necessária para nossa subjetividade. O processo de subjetivação do eu humano só é possível pela relação com os outros. O outro não é um apêndice do eu, como pensa o individualismo. O outro me constitui no modo como eu sou. O outro é condição necessária para ser o que eu sou, permanecendo em mim como parte de mim mesmo no modo como eu sou. Dentro de cada um de nós coexistem parte do pai, da mãe, de irmãos, amigos, professores, convivências, relações que tivemos ou não ao longo de nossa existência. Nosso eu é mais um caleidoscópio resultado das relações com os outros, que se costura de modo complexo ao longo dos processos de subjetivação.
A pandemia também desconstruiu muitas das falácias do individualismo do homo economicus. A pandemia está nos indicando que somos absolutamente interdependentes uns dos outros. A atitude individual tem uma imediata repercussão nos outros. Nestes tempos de pandemia vivemos a mais capilar interdependência em escala planetária que jamais se experimentou na história da humanidade. Poderíamos dizer que a pandemia nos mostrou que a fraternidade é muito mais que um ideal ético, é uma dimensão antropológica através da qual estamos inexoravelmente interligados uns com os outros.
Essa interdependência tem muitas faces. A primeira mostra que são estéreis as atitudes individualistas como solução egocêntrica para um problema global de grandes dimensões. Ninguém consegue solucionar o problema da pandemia para si mesmo nem por si mesmo. Só é possível enfrentarmos a pandemia de forma coletiva, com atitudes coletivas e de modo comunitário. A dimensão comunitária é essencial para conseguirmos enfrentar problemas globais de grande magnitude como a atual pandemia. O individualismo fica desmascarado pela pandemia como uma falácia cultural estéril.
Um segundo aspecto da radical interdependência que temos uns dos outros aparece nas consequências imediatas e em grande escala dos meus atos pessoais. Um acontecimento ocorrido numa remota região central da China, em poucos meses, colocou o planeta inteiro numa crise sem precedentes. De igual forma, a minha atitude pessoal em relação à pandemia não afeta só a mim, pois o que eu fizer pode ou não contribuir para contaminar muitos outros e talvez levá-los à morte. A pandemia espelha nossa interdependência radical de seres humanos, cuja existência, nestas circunstâncias, depende muito da atitude que outros tomem sobre si mesmos.
A máxima da pandemia cuide de si para melhor cuidar dos outros é a inversão do dogma do homo economicus: cuide de si aproveitando-se dos outros. Na pandemia ninguém pode pensar em tirar vantagem própria só cuidando de si, pois cada um de nós depende muito do comportamento dos outros. A pandemia evidenciou o princípio da responsabilidade coletiva que todos temos em relação aos demais.
A pandemia está colocando em crise nosso modelo civilizatório. Por isso, talvez seja uma das raras oportunidades que a humanidade recebeu para pensarmos a necessidade de modificar estrutural e culturalmente o atual modelo de capitalismo predador e egocêntrico. Tudo aponta que, se não formos capazes de modificar em curto prazo este modelo insustentável de utilitarismo tanatopolítico da vida, estão por vir novas e grandes crises, desta vez de caráter ecológico, a que talvez nem consigamos dar uma resposta tão eficiente. Estamos perante um tempo único, um tempo oportuno, para implementar transformações radicais na nossa forma-de-vida. É um tempo de reciclar os odres velhos que negam o valor da vida e pensar responsabilidade coletiva de novas formas-de-vida.
Castor M.M. Bartolomé Ruiz é doutor em Filosofia, professor titular do Programa de Pós-Graduação de Filosofia da Unisinos, coordenador da Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e Violência, Governo e Governança e coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq Ética, Biopolítica e Alteridade. Artigo originalmente publicado em IHU-Unisinos.