Carla Bueno e Talles Reis, A terra é redonda, 9 de outubro de 2020
O capitalismo para seguir crescendo precisa cada vez mais produzir lucros. O lucro é a aparência na sociedade de algo que está na essência do sistema: a produção de mais-valia. A origem da mais-valia está no trabalho humano, é uma fração de todo o trabalho que transforma a matéria-prima mas que não é pago para o trabalhador e trabalhadora. É isso mesmo: os trabalhadores não recebem o “valor integral” do seu salário, por isso que dizemos que o capitalismo está fundado na exploração de uns pelos outros.
Esse valor a mais, que só pode ser produzido pelo trabalho humano, no capitalismo fica com o patrão, com o dono da fábrica e das máquinas, que são os meios de produção. Os meios de produção são privados, pois são frutos de um longo processo que tem lá no seu início a criação da propriedade privada da terra, através da expulsão de muitos camponeses que viviam no campo numa época em que a terra não tinha dono. Essa expulsão dos camponeses, chamada também de ‘cercamentos’, pois os campos passaram a ser cercados, cumpriu várias funções: forneceu força-de-trabalho para as nascentes indústrias, pois os camponeses agora não tinham mais da onde tirar o seu sustento; os antigos camponeses se transformam em consumidores, tinham que comprar aquilo que antes produziam em suas terras; e, por fim, liberou vastas áreas rurais para serem incorporadas ao sistema produtivo do capital.
Essa incorporação de milhares e milhares de hectares de terras, que até então eram coletivas, juntamente com a exploração das riquezas das colônias no mundo todo (inclusive o ouro do Brasil) pelos países centrais, produziu um volume enorme de riqueza, uma quantidade de recursos que foi fundamental para o capitalismo dar um salto em seu desenvolvimento. A esse processo chamamos de acumulação primitiva ou originária. Primitiva e originária porque está na “origem” do sistema que temos até hoje.
A acumulação primitiva forneceu os recursos necessários para o desenvolvimento de máquinas, equipamentos, ferramentas. Mas ainda nos primeiros passos do capitalismo, por exemplo, com ela que foi possível criar o motor movido a vapor (a máquina a vapor) que possibilitou uma exploração maior ainda das minas de carvão e o transporte por locomotivas. O telégrafo elétrico revolucionou a comunicação, pois permitia a comunicação a longas distâncias usando o código morse, em 1830. As lâmpadas incandescentes, que temos em nossa casa, também surgiram nessa época e aumentaram ainda mais a exploração do trabalhador pois permitiram o trabalho noturno nas fábricas.
Modo de vida no campo e na cidade, produção e acesso aos alimentos
O atual modelo de produção de alimentos hegemônico na sociedade hoje é bastante recente. Data da década de 60, quando a lógica da industrialização chegou no campo brasileiro e iniciou-se a padronização da produção em torno de poucas espécies alimentares. Mas vale observar que a natureza sempre produziu alimentos, mesmo sem ou com baixa intervenção humana, até mesmo antes da humanidade estar habitando a Terra. Entre os dinossauros, hábitos alimentares já se estabeleciam entre carnívoros, herbívoros e onívoros.
Até mesmo a igreja católica já reduziu a supremacia antropocêntrica do papel do homem no desenvolvimento da sociedade. Homem e natureza, a partir da elaboração do Ladauto Si são considerados uno, ou seja, uma totalidade que precisa estar em equilíbrio. Na academia essa concepção disputa espaço há décadas também, Antonio Carlos Diegues em sua obra “O Mito Moderno da Natureza intocada” retrata bem a capacidade do homem viver em sintonia com o sistema natural. E assim foi desde o início da humanidade, o modelo de produção envolvia os homens numa relação simbiótica com a natureza.
A partir da década de 60 a lógica da transformação de tudo em mercadorias para sustentar o capital, ameaça essa sintonia de forma avassaladora. O agronegócio se impõe como modelo de produção através da monocultura (uma catástrofe para os modelos complexos e para os povos originários, guardiões da floresta), do latifúndio (legitimando a concentração de terras e de riquezas), reduzindo o trabalho humano e alienando a relação do homem com a natureza, gerando alienação também na sociedade de consumo, especialmente nos espaços urbanos.
Portanto, tem apenas cerca de 60 anos, a consolidação desse modelo do agronegócio no campo. As consequências são visíveis na violência no campo que isso gerou, expulsando famílias do campo, concentrando terras, maior acumulação de miséria no espaço urbano com a formação das favelas e o consequência muito sérias para a saúde humana e para o meio ambiente.
Ainda assim, cerca de 70% da produção de alimentos está associada a agricultura familiar que resiste nesse contexto. Porém, o acesso a esses alimentos está cheio de mediadores como a indústria que transforma o alimento natural muitas vezes numa porcaria super-processada cheia de sal ou açúcar, domesticando paladares, ou mesmo na criação de nichos de mercado para elevar preços e lucrar às custas do agricultor e do consumidor trabalhador que seguem desmonetarizados, enquanto o agronegócio desmata mais para retomar taxas de lucro em momento de crise.
Ameaças permanentes à saúde humana e ao meio ambiente
O produto do agronegócio gera diversas contradições na saúde humana e no meio ambiente. Em primeiro lugar podemos destacar o desmatamento de florestas com a justificativa da agricultura e da necessidade de alimentar a nação, sendo que já sabemos que as áreas agricultáveis que temos já abertas no Brasil são mais do que suficientes para alimentar todo mundo e até mesmo para exportar.
Foi nesse contexto que a exploração dos biomas brasileiros aconteceu sem base sustentável e tensionou o olhar do mundo todo para a preservação da Amazônia que teve, segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) um incremento de 278% no desmatamento de 2018 a 2019. Também preocupa a situação dos outros biomas, o Cerrado possui 7,7% de cobertura original, Mata Atlântica com 12,5%, Semiárido com 40% e os pampas que também ja perdeu mais de metade da sua cobertura vegetal.
O uso indiscriminado de agrotóxicos também é outro indicador da gravidade do problema que estamos vivendo. Alimentos com resíduos de agrotóxicos, até mesmo os industrializados, são consumidos em larga escala e consolida a disputa de projetos no prato de comida de todos os seres humanos. Hoje, a informação de que possamos estar nos alimentando de algo que pode nos gerar um câncer ou doenças psicossomáticas como a depressão, gera receios na população urbana que se mobiliza por alimentação saudável abrindo espaço para a Agroecologia se consolidar como modelo hegemônico.
Até mesmo alguns setores do agronegócio, já assumem uma nova roupagem, que sabemos que não resolve o problema na raíz, já que ainda que não consideram o tema da Reforma Agrária como saída para o desenvolvimento justo, mas já percebem a necessidade de produzir de maneira mais complexa para não gerar um desequilíbrio e um passivo ambiental tão devastadores.
Catástrofes ambientais e a dizimação de seres humanos
As consequências do modelo são bem visíveis e fáceis de identificar. A temperatura tem aumentado ano a ano e, no Brasil, as chuvas estão irregulares, temporais cada vez mais frequentes paralisam as grandes cidades do país. As florestas estão sendo destruídas, junto com muitas espécies de plantas e animais se extinguindo. As grandes cidades também sofrem a crise ambiental e seus problemas se misturam a tantos outros: a falta de acesso à água potável e ao saneamento; as enchentes; os deslizamentos de encostas; a concentração imobiliária de um lado e a favelização de outro; a expulsão dos trabalhadores e trabalhadoras do centro da cidade e da proximidade de seu local de trabalho; a violência urbana, entre tantos outros.
No Brasil, tivemos vários exemplos recentes da consequência desse modelo de desenvolvimento. Os crimes da Vale em Mariana e Brumadinho mataram mais de 300 pessoas. O vazamento de óleo que atingiu as praias brasileiras, o fogo destruindo a Floresta Amazônica para a expansão do agronegócio e agora essa doença viral, o coronavírus que paralisou o mundo por meses, isolando seres humanos de relações comunitárias.
Necessária mudança de modelo de produção
Com as diversas catástrofes que estamos presenciando no Brasil já é possível afirmar que essa ruptura com esse modelo de desenvolvimento construído até hoje é fundamental. Não apenas na agricultura, mas na extração de riqueza da natureza feita como um todo, na mineração, na produção de energia, no consumo de combustíveis fósseis, pois se consagraram todas as consequências ambientais e humanas já alertadas há muito tempo.
David Harvey pesquisou o capitalismo contemporâneo e descreveu a “acumulação por espoliação”, uma forma de acumulação primitiva, ainda mais violenta e agressiva. Nessa acumulação o capital desenvolvido, maduro, já próximo do seu fim, ataca desesperadamente as últimas reservas de riquezas (as florestas, a energia dos mares, o código genético dos seres vivos, entre outras) para tentar seguir existindo. Pois ao se apropriar de recursos já existentes na natureza, ele aumenta a sua taxa de lucro extraordinário, fruto da especulação fundiária, subordinando outros setores do capital a essa dinâmica.
As pistas de como fazer essas mudanças são construídas cotidianamente, pelo campesinato, pela universidade e até mesmo pelas organizações ambientais, algumas muito sérias que se dedicam a pensar as transformações. É preciso combinar tecnologia e ciência com o modo de vida ancestral no campo, pois as transformações não se darão apenas na base da enxada, já que o tempo de destruição do capital nos exige mais agilidade.
Porém para essa mudança ser estrutural, só é possível com um Estado forte que olhe para as necessidades de um projeto de nação. Nosso atual impasse é político e não técnico, pois ao mesmo tempo que a crise ambiental se consagrou a olhos nus, o fascismo e a mudança de regime político também nos ameaça como sociedade. É preciso envolver toda a sociedade na compreensão dessa crise, na necessidade de outro modelo para produção de alimentos, tomar o poder político deve ser nosso horizonte e construir um novo projeto de desenvolvimento calcado na dignidade da classe trabalhadora que tudo produz. Como sintetizou bem o papa Francisco garantindo Terra, Trabalho e Pão acima de tudo e todos. Portanto, abençoados por Deus, seguimos com nosso plano de Plantar Árvores e Produzir Alimentos Saudáveis como uma semente humilde de transformação profunda deste modelo.
Carla Bueno é engenheira agrônoma formada na ESALQ-USP e Talles Reis é mestre em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe (IPPRI/UNESP). Ambos são militantes do MST.