A total concentração da gleba digital vem levando a um cenário onde todas as terras de um país pertenciam a um único senhor. Nossa dependência generalizada de nossos senhores digitais parece ser o futuro canibal do liberalismo na era dos algoritmos. Pepe Escobar resenha o último livro de Cedric Durand.
Pepe Escobar, Asia Times / 247, 6 de dezembro de 2020. Tradução de Patricia Zimbres.
A economia política da Era Digital permanece como uma virtual terra incógnita. No livro Tecnofeudalismo, publicado há três meses na França (não há tradução para o inglês até o momento), Cedric Durand, um economista da Sorbonne, oferece um serviço de utilidade pública de crucial importância para o mundo inteiro, ao submeter a um minucioso exame a nova Matrix que controla a vida de todos nós.
Durand coloca a Era Digital no contexto maior da evolução do capitalismo, para mostrar de que forma o Consenso de Washington acabou por se metastizar no Consenso do Vale do Silício. Em uma deliciosa pirueta, ele batiza a nova onda de "ideologia californiana".
Estamos longe do Jefferson Airplane e dos Beach Boys. Aqui, temos mais uma "destruição criativa" de Schumpeter bombada a esteróides, somada a "reformas estruturais" do tipo FMI, enfatizando a "flexibilização" do trabalho e a total marquetização/financialização da vida cotidiana.
Desde o início, a Era Digital foi associada principalmente à ideologia direitista. A incubação foi trazida pela Progress and Freedom Foundation - PFF (Fundação para o Progresso e a Liberdade, que funcionou de 1993 a 2010, sendo, muito convenientemente, financiada pela Microsoft, At&T, Disney, Sony, Oracle, Google e Yahoo, entre outras.
Em 1994, a PFF realizou uma conferência pioneira em Atlanta, que acabou por levar a uma Carta Magna de importância seminal: literalmente, Cyberspace and the American Dream: a Magna Carta for the Knowledge Era (O Ciberespaço e o Sonho Americano: Uma Carta Magna para a Era do Conhecimento), publicada em 1996, no primeiro mandato de Clinton.
Não foi por acidente que a revista Wired foi fundada, da mesma forma que a PFF, em 1993, transformando-se instantaneamente no veículo interno da "ideologia californiana".
Dentre os autores da Carta Magna encontramos o futurista Alvin "O choque do futuro" Toffler e o ex-consultor científico de Reagan, George Keyworth. Antes de quaisquer outros, eles criaram o conceito de que o "ciberespaço é um ambiente bioeletrônico que é literalmente universal". Sua Carta Magna foi o mapa privilegiado para a exploração dessa nova fronteira.
Esses heróis randianos
Também não foi por acidente que a guru intelectual dessa nova fronteira tenha sido Ayn Rand, com sua dicotomia bastante primitiva entre "pioneiros" e plebe. Rand declarou que o egoísmo é bom, o altruísmo é mau e a empatia é irracional.
Quando se trata dos novos direitos de propriedade nesse novo Eldorado, todo o poder deve ser exercido pelos "pioneiros" do Vale do Silício, uma turma narcísica apaixonada pela própria imagem de heróis randianos. Em nome da inovação, deve ser permitido a eles destruir toda e qualquer regra estabelecida, em um frenesi de "destruição criativa" à la Schumpeter.
Isso nos levou a nosso ambiente atual, onde Google, Facebook, Uber e cia. conseguem passar por cima de qualquer sistema legal, impondo suas inovações como um fait accompli.
Durand vai ao cerne da questão ao tratar da verdadeira natureza da "dominação digital": a liderança alcançada pelos Estados Unidos nunca se deveu a forças de mercado espontâneas.
Ao contrário. A história do Vale do Silício é totalmente dependente da intervenção estatal - especialmente via complexo industrial-militar e complexo aeroespacial. O Centro de Pesquisas Ames, um dos principais laboratórios da NASA, fica em Mountain View, em pleno Vale do Silício. A Universidade de Stanford, também localizada no Vale, sempre foi premiada com suculentos contratos de pesquisa da área militar. Durante a Segunda Guerra, a Hewlett Packard, por exemplo, prosperou enormemente graças ao fato de seus produtos eletrônicos serem usados na fabricação de radares. Por toda a década de 1960, as forças armadas dos Estados Unidos compraram o grosso da produção ainda nascente de semicondutores.
The Rise of Data Capital, um relatório publicado em 2016 na MIT Technological Review, elaborado em "parceria" com a Oracle, mostra de que forma as redes digitais abrem acesso a um território inexplorado, repleto de recursos: "Os que chegarem primeiro e assumirem o controle conseguirão os recursos que procuram" - na forma de dados.
Então, tudo o que vai de imagens de câmeras de segurança a dados bancários eletrônicos, amostras de DNA e notas de supermercado implica alguma forma de apropriação territorial. Aqui vemos, em toda a sua glória, a lógica extrativista embutida no desenvolvimento do Big Data.
Durand nos traz o exemplo do Android para ilustrar a lógica extrativista em ação. A Google fez com que o acesso ao Android fosse gratuito para todos os smartphones, a fim de conquistar uma posição de mercado estratégica, derrotando o ecossistema da Apple e tornando-se assim o ponto de entrada padrão à Internet em praticamente todo o planeta. É assim que um imensamente valioso império de propriedades online é construído.
O ponto-chave é que fosse qual fosse a empresa original - Google, Amazon, Uber – todas as estratégias de conquista de ciberespaço apontavam para o mesmo alvo: assumir o controle dos "espaços de observação e captura" de dados.
Sobre o sistema de crédito chinês …
Durand traz uma análise finamente calibrada do sistema de créditos chinês, um sistema híbrido público/privado lançado em 2013 durante a 3ª Sessão Plenária do 18º Congresso do PCC, com o lema "valorizar a sinceridade e punir a insinceridade".
Para o Conselho de Estado, a autoridade governamental suprema na China, o que realmente importava era incentivar comportamentos vistos como responsáveis nas esferas financeira, econômica e sociopolítica, e punir os que não eram. O ponto central é a confiança. Pequim define o sistema como um método para o aperfeiçoamento da economia de mercado socialista, que melhora a governança social".
O significado do termo chinês – shehui xinyong – praticamente se perde nas traduções ocidentais. Muito mais complexo que "crédito social", ele traz mais a ideia de "confiabilidade", no sentido de integridade. Ao contrário de ser orweliano, do que é acusado no Ocidente, as prioridades do sistema incluem o combate à fraude e à corrupção nos níveis nacional, regional e local, às violações das regras ambientais, ao desrespeito das normas de segurança alimentar.
O gerenciamento cibernético da vida social vem sendo seriamente discutido na China desde a década de 1980. Na verdade, desde a década de 1940, como podemos ver no Livro Vermelho do Presidente Mao. O sistema pode ser visto como inspirado no princípio maoísta das "linhas de massa", como em "começar com as massas para retornar às massas: coletar as ideias das massas (que são dispersas e não-sistemáticas), concentrá-las (em ideias gerais e sistematizadas), para depois voltar às massas para difundi-las e explicá-las, assegurando que as massas as assimilem e as traduzam em ação, verificando na ação das massas a pertinência dessas ideias".
E, da mesma forma que no feudalismo, os feudos dominam seu território prendendo os servos à terra. Os senhores ganhavam a vida lucrando do poder advindo da exploração de seus domínios, o que implicava um poder ilimitado sobre os servos.
O que significa concentração total. Peter Thiel, um defensor incondicional do Vale do Silício, sempre insistiu que a meta do empreendedor digital é exatamente contornar a concorrência. Tal como citado em Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World (Quebradeira: Como uma Década de Crises Financeiras Mudou o Mundo), Thiel declarou: "Capitalismo e concorrência são antagônicos. Concorrência é para perdedores".
O que nos confronta agora, portanto, não é apenas um choque entre o capitalismo do Vale do Silício e o capital financeiro, mas sim um novo modo de produção: a sobrevivência do capitalismo rentista na forma de um turbocapitalismo, onde os gigantes do Silício tomam o lugar das grandes propriedades feudais e também do Estado. Essa seria a opção tecnofeudal, tal como definida por Durand.
Blake encontra Burroughs
O livro de Durand é de extrema relevância, por mostrar que a crítica teórica e política da Era Digital ainda é rarefeita. Não existe uma cartografia precisa de todos aqueles circuitos marotos da extração de receita. Nem ainda uma análise de como eles lucram no cassino financeiro - em especial os mega-fundos de investimento que facilitam a hiperconcentração. Ou como eles lucram com a exploração pesada dos trabalhadores na gig economy, ou economia dos bicos.
A total concentração da gleba digital vem levando a um cenário, como lembra Durand, já antes sonhado por Stuart Mill, onde todas as terras de um país pertenciam a um único senhor. Nossa dependência generalizada de nossos senhores digitais parece ser 'o futuro canibal do liberalismo na era dos algoritmos".
Haveria saída possível? A tentação é radicalizar – cruzando Blake e Burroughs. Temos que expandir nossa área de compreensão - e deixar de confundir o mapa (mostrado na Carta Magna) com o território (nossa percepção).
William Blake, em suas visões proto-psicodélicas, tratava de libertação e subordinação - retratando uma deidade autoritária impondo conformismo por meio de uma espécie de código-fonte concebido para influenciar as massas. O que soa como uma proto-análise da Era Digital.
William Burroughs criou o conceito de Controle – um conjunto de manipulações incluindo a mídia de massa (ele ficaria horrorizado com as mídias sociais). Para derrubar o Controle, temos que ter a capacidade de invadi-lo e desorganizar seus principais programas. Burroughs mostrou que todas as formas de Controle têm que ser rejeitadas - e derrotadas: "As figuras de autoridade aparecem como realmente são: máscaras mortas e vazias manipuladas por computadores".
Esse é nosso futuro: ou hackers ou escravos.