Resolução sobre conjuntura nacional e desafio do PSOL nas eleições, da Coordenação Nacional da Insurgência (1º/9/2020)
1. A sociedade capitalista neoliberal vive a maior crise da sua História, numa confluência/convergência inédita de pandemia, depredação ambiental, que acelera o desastre climático, recessão acentuada sem chances de grandes resgates como em 2008, disputa de hegemonia e instabilidade política generalizada. Apesar de ainda castigados pelo flagelo da Covid-19 e pela crise econômica, movimentos e setores populares de várias partes do mundo insistem em heróicas resistências. Em certo sentido, tem continuidade, apesar de todas as limitações da pandemia e da repressão de governos de extrema direita e de direita, a grande onda de luta de 2019.
2. As explosões sociais no Líbano e na Belarus são expressões do momento, embora o epicentro da revolta social sejam os Estados Unidos – sacudidos pela pandemia e por mobilizações antirracistas de massas lideradas por uma comunidade afro-americana farta do racismo estrutural evidenciado na violência assassina das polícias e do sistema judicial. A explosão do movimento negro estadunidense internacionalizou-se no Ocidente e questionou, por todos o cantos do Hemisfério (incluído o Brasil, nação com maior população afrodescendente fora da África), a face racista do sistema, com suas políticas de morte.
3. Nesse cenário global se localiza o Brasil, com todas as devidas especificidades de nossa situação reacionária (de defensiva dos de baixo), sob um governo de extrema direita. Jamais, desde que se constituiu como país independente, o país viveu uma crise de tal profundidade, intensidade e duração: afinal, desde 2014, vivemos uma crise nacional no sentido leninista (que nada tem a ver com o sentido de crise revolucionária), que atravessa todas as esferas da vida social e não permite até o momento uma estabilização da situação política e social.
4. O governo Bolsonaro aprofunda esta crise, mantendo-se na ofensiva, ainda com o apoio da maior parte do grande capital, para uma política deliberadamente genocida no front sanitário (já são mais de 130 mil mortos), para uma destruição ambiental sem precedentes, para um desproteção igualmente inédita da força de trabalho (com desmonte das leis trabalhistas, dos sindicatos e associações dos trabalhadores), para a privatização generalizada de atividades antes sob responsabilidade do estado (saúde, educação, saneamento, empresas estatais em geral), para retrocessos e direitos das mulheres e da comunidade LGBTQ, e para um ajuste fiscal que, sob o facão do teto de gastos, sem precedentes no mundo, promete asfixiar estados, municípios e cidadãos.
5. Entre abril e junho passados, alcançamos o ápice da crise político-institucional, com as investidas do núcleo do governo contra governadores, prefeitos, Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Testemunhamos a ida do presidente às portas do Quartel-general do Exército em Brasília, para se juntar a uma manifestação de apoiadores de uma intervenção militar. A crise aguda e as ameaças cada vez mais explícitas à “normalidade democrática” culminaram na carta do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Heleno, que falava em “consequências imprevisíveis” caso o Judiciário insistisse na apreensão do celular do presidente. Não cremos que se tratasse de blefe. O clima de “golpe”, mais exatamente de um autogolpe de Bolsonaro, foi uma reação do bolsonarismo e militares do governo a uma situação de isolamento político, já que parte importante da burguesia e seus representantes expressavam sua discordância em relação ao governo sobre a condução do país na crise sanitária.
6. Naquele momento, houve um ensaio importante de reação tanto do movimento negro e periférico, quanto do movimento dos sem-teto, que, juntos, conseguiram chamar e liderar importantes atos de rua, apesar das limitações da pandemia. Destacou-se também naquele momento a mobilização nacional dos entregadores por aplicativos, como Rappi, Uber-Eats e I-Food. Essas mobilizações tiveram uma forte carga de oposição à necropolítica do governo federal e das suas investidas superexploradoras, autoritárias e antidemocráticas. O decisivo para a mudança de postura do governo, no entanto, foi a prisão, em 19 de junho, de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro na Alerj, numa casa de propriedade do advogado da família, Frederick Wassef.
7. Avaliamos que a partir daquele momento, dada a impossibilidade de explicação sobre o ocorrido (o que inevitavelmente levaria a uma investigação não somente sobre o ex-gabinete de Flávio mas sobre a relação de toda a família com os supostos delinquentes), Bolsonaro tornou-se refém dos setores do capital que apoiam seu projeto ultraneoliberal acima de tudo, mas o pretendem menos turbulento como administrador do estado (leia-se menos “antissistêmico”, ainda que de fachada). Objeto de uma espécie de “enquadramento” pelo Judiciário e capital apoiador, Bolsonaro incorporou o Centrão ao governo (garantindo a fidelidade de Maia a sua agenda econômica), cessou as investidas públicas contra os poderes constituídos, adotou uma linha de atenuação das declarações autoritárias e de reivindicação tanto das benesses do auxílio emergencial (que lhe foi imposto pelo Congresso e derivou em redução real da desigualdade escandalosa do país) como de finalização de obras de governos anteriores.
8. A “relocalização” do governo, combinada com os efeitos objetivos do auxílio emergencial sobre as camadas mais pobres do povo, e com o total fracionamento e imobilismo da oposição, em particular no âmbito da mobilização contra Bolsonaro (que requereria algum tipo de diálogo entre PT e Ciro, por exemplo), resultou tragicamente em recuperação da popularidade do governo. Depois de ter experimentado minguados 20% de ótimo-bom na pesquisas, o governo entra em agosto com 37% de ótimo-bom e recuperação de 10 pontos percentuais em sua rejeição, segundo o Data-Folha. Sinal de que se fechava a janela de crise institucional mais aguda.
9. O novo momento veio acompanhado de uma virada na narrativa na opinião pública sobre a condução da crise do coronavírus. A pressão do empresariado e de amplos contingentes populares pauperizados cada vez mais afetados pelo desemprego e pela carestia impuseram uma reabertura mesmo em meio a recordes de mortes pela Covid-19. Governadores de estados que se colocaram contrários ao projeto bolsonarista de condução da crise acabaram seguindo pelo mesmo caminho. No caso de Witzel, a ruptura com o bolsonarismo, combinada a atos de corrupção, custou-lhe a sustentação de sua base de apoio na Alerj e o próprio cargo.
10. Nas últimas semanas, Bolsonaro lançou o programa Casa Verde e Amarela (em substituição pró-banca do Minha Casa, Minha Vida), participou de várias inaugurações de obras iniciadas nos governos anteriores, e tem tido atritos com Paulo Guedes sobre o lançamento ou não do programa Renda Brasil – que seria uma continuidade, reduzida, do Bolsa Família. Guedes tem insistido para que o governo siga como fiador das reformas ultraliberais e da agenda econômica que desde 2016 reordena o Estado brasileiro. Bolsonaro sabe que a renda emergencial tem sido um fator importante para a recomposição de seu apoio e sabe que o prosseguimento do programa coloca em xeque alguns dos pressupostos ultraliberais, a começar pelo teto de gastos.
11. Os atritos entre Bolsonaro e Guedes podem apontar para uma segunda hipótese sobre o momento atual: a de um “giro populista” do bolsonarismo, visando à reeleição. É possível que estejamos assistindo agora a uma recomposição tática do governo, em que os militares, os fisiológicos do Centrão e os fundamentalistas religiosos ganhem mais protagonismo, em detrimento da ala tecnocrata neoliberal liderada pelo Posto Ipiranga. É preciso analisar os próximos passos, sem impressionismos, para conseguir afirmar ou refutar as hipóteses que se levantam sobre o governo.
12. Seja qual for a resposta sobre a estratégia governamental na área econômica e das políticas públicas, é possível afirmar que o governo avançou algumas casas na aliança e cooptação do Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal. O discursos de apoio de ministros do STF e decisões (ou indecisões) da corte sobre casos que envolvem o governo se multiplicam, numa sinalização de cachimbo de paz. Sob o comando do bolsonarista Aras, o MP se enfraquece, num caminho de desmonte não só da Lava Jato mas da autonomia em geral das forças-tarefa regionais que investigam casos de corrupção da elite econômica e política, enquanto a PF se esforça por mostrar serviço em operações midiáticas contra o tráfico e organizações criminosas.
13. A oposição institucional e de base ao bolsonarismo – e isto inclui desde a centro esquerda de Ciro e Marina, até o PT de Lula – segue mal-localizada, perdida, fragmentada e imóvel. Não consegue a pactuação e a elaboração de uma agenda antigovernista comum, porque continua no “drive” pré-Bolsonaro e pré-pandemia, da disputa intestina sobre que tem hegemonia. E porque nunca teve ou se esqueceu da disputa nas ruas e as lutas. Institucionalizada como parte do status quo, canaliza suas energias para o calendário eleitoral e a disputa rotineira do Estado. Lula e o PT, Ciro e o bloco que o apoia,assim como Rede, não são capazes sequer de dialogar entre si, nem despertar e mobilizar as forças vivas da sociedade brasileira, muito menos de se abrir aos processos globais de recomposição de alternativas sistêmicas ao capitalismo que leva a humanidade para o abismo. A pandemia funciona, para esses agentes, muito mais como pretexto para o imobilismo.
14. As crises global e do país farão mover-se e se deslocar placas tectônicas da sociedade. A multiplicação de derrotados e excluídos pelo sistema sinaliza a possibilidade e a necessidade de mobilização das forças populares. Nada garante a consolidação da popularidade de Bolsonaro, ainda mais diante da redução à metade do auxílio emergencial e do agravamento da crise econômica. Cabe ao PSOL a tarefa de superar esse imobilismo, cobrando do restante da oposição institucional e em especial dos que se dizem de esquerda medidas e ações concretas de mobilização, de preferência em unidade de ação,ao mesmo tempo em que incentiva as lutas pela base.
Potencial e desafios do PSOL
1.O PSOL tem sido, desde 2004, um dos vetores da reorganização da esquerda brasileira. Vivemos um novo período da reorganização, que se abriu com as jornadas de junho de 2013. Mas o movimento social e a esquerda viveram uma derrota em 2016, com o golpe político jurídico-parlamentar-midiático. Abriu-se, entre 2014 e 2015, uma situação reacionária, com a direita capitaneando massas nas ruas, que possibilitou o golpe. A disputa ideológica e concreta das ruas foi ganha pela direita. A nova e reacionária conjuntura aprofundou-se com a vitória de Bolsonaro em 2018.
2. A grande contradição que herdamos do período anterior é que a experiência popular com os governos petistas foi interrompida por um golpe reacionário com apoio de massas. A saída de massas foi pela direita. O processo de conjunto, nos últimos cinco a seis anos, desgastou o PT mesmo nas bases lulistas, questionando frontalmente sua condição de partido hegemônico da esquerda no país, além de evidenciar (1) a falência histórica do modelo político-econômico petista de governança em colaboração de classes com o capital e os partidos oligárquicos, e (2) o esgotamento de seu projeto de país, baseado no desenvolvimento predatório e de reinserção privilegiada e utópica do país na ordem internacional a partir da base extrativista.
3. Simultânea e articuladamente, desde 2016, o PSOL tem se credenciado, tanto frente aos movimentos sociais de juventude, negritude periférica, mulheres e LGBTQI, quanto às bases tradicionalmente petistas de setores médios e populares. Afinal, o partido nunca fez parte dos governos petistas (tendo sido coerente oposição de esquerda), sem ter nunca se confundido com a horda direitista que tomou a ofensiva jurídico-parlamentar-midiática que conduziu o impeachment de Dilma. Isto permite que se postule como principal ferramenta partidária para um novo ciclo de reorganização da esquerda.
4. O PSOL ainda não superou seu caráter frentista. Continua sendo um guarda-chuva de tendências e personalidades/figuras públicas, sem um ambiente mais unitário e acumulador de sínteses. Sua força está num crescente peso eleitoral e na credibilidade que o faz respeitado por diversos e heterogêneos setores sociais e geracionais. Para garantir a organização, a direção política e a democracia, com sínteses reais, “desde abajo”, a construção cotidiana de núcleos de base e setoriais temáticos continua tarefa fundamental para aglutinar a militância e o ativismo de base, não organizado em tendências internas.
5. A reorganização dos movimentos sociais e da esquerda no Brasil foi retardada pelas derrotas dos últimos anos (golpe, reforma trabalhista de Temer, eleição de 2018), aprofundada sob o governo Bolsonaro. A conjuntura reacionária que persiste sob o governo neofascista, a crise global e nacional impostas pela Covid-19, tornaram ainda mais incerta a dinâmica da recomposição – apesar de episódios de resistência de massas no Brasil e da mudança positiva no cenário global com o levante antirracista. O sinal dos tempos no terreno internacional é o da instabilidade política.
É nesse quadro que devemos seguir firmes na batalha para que o PSOL continue contribuindo para a recomposição social e política dos debaixo.
6. O período atual é de acumulação de forças. O encerramento de ciclos político-sociais e a recomposição, com criação de novos instrumentos de luta e de ação política, constituem processos que costuma durar anos. A disputa das atuais forças da esquerda socialista por um lugar ao sol no novo ciclo, já em gestação, será a grande disputa desta década. A função política imediata do PSOL (derivada de seu papel histórico) é a de despertar, nos meses vindouros, a fagulha que eletrize o descontentamento e a mobilização popular contra o regime e o governo. A campanha eleitoral deve estar a serviço desta tarefa.
7. O que permitirá ao PSOL se manter e transcrescer como ferramenta importante na recomposição será sua capacidade de apresentar à sociedade um projeto programático estratégico, de transformação radical e ecossocialista do país, que seja visto como uma alternativa para as massas exploradas e oprimidas. O PSOL precisa, portanto, de uma atualização programática antissistêmica, que parta do acerto de contas com a herança da escravidão, do extermínio indígena, do patriarcado, da destruição ambiental. Um projeto que marque o divórcio da esquerda com o desenvolvimentismo depredador. E que supere a falácia da possibilidade de transformação pela via da acumulação de forças por dentro do estado. Um projeto a serviço das classes trabalhadoras que não pense o mundo d@s explorad@s e oprimid@sm como uma classe monolítica, sem diversidade, incolor e assexuada. Um projeto antirracista, ecológico, feminista dos de baixo.
8. É necessário construir no partido o entendimento de que a superação do petismo se dará pela negação dos modelos desenvolvimentistas, extrativistas e produtivistas que esgotam o planeta e esgotaram a própria esquerda em sua capacidade de apresentar uma solução sustentável para o colapso. Ou seja, um projeto de poder que pressuponha não apenas a revolução no aparelho de estado, mas no aparelho produtivo e tecnológico. Que represente uma mudança civilizacional, com o incentivo à outra lógica de produção e consumo – para a satisfação das necessidades reais e materiais da existência, apostando na racionalidade democrática das massas populares, com valores de solidariedade e respeito ao equilíbrio ecológico da natureza.
9. O objetivo e desafio são, portanto, que o partido possa vir a ser uma referência de projeto totalizante para os movimentos sociais, como portador de um modelo de sociedade alternativa igualitária e profundamente democrática. Guardadas as devidas limitações daquela experiência, foi o que o PT conseguiu ser nos anos 80 e 90, quando era a referência para a maior parte dos movimentos, lutas sociais, classes trabalhadoras urbanas, campesinato pobre, intelectualidade e progressistas do país, pois seu programa, mesmo com a concepção equivocada de transformação por dentro da institucionalidade, apontava para a mudança, para uma disputa de hegemonia na sociedade.
10. O período aberto com o golpe de 2016 e reafirmado na eleição de Bolsonaro torna ainda mais desafiadora a tarefa do partido: ajudar a superar o projeto de colaboração de classes petista, se construindo e se inserindo como parte fundamental da luta d@s explorad@s e oprimid@s contra a onda reacionária que se expressa no governo de extrema direita e na forte presença das forças reacionário-conservadoras em todas as esferas da sociedade.
11. O PSOL precisa ser um espaço plural, aglutinador, participativo; orgânico e ao mesmo tempo aberto a todos os setores dispostos a construir um partido socialista, independente e democrático. O PSOL precisa adotar funcionamento e instâncias que simultaneamente (a) respeitem a pluralidade de posições e culturas da esquerda e (b) incentive a paciente busca de sínteses, ao invés da permanente confrontação de posições. As decisões precisam ser compartilhadas e novas sínteses ,construídas de baixo para cima, de modo a contribuir para que os que lutam se auto-organizem e vejam no partido uma referência.
O quadro eleitoral
1. O ano de 2020 está marcado pela pandemia, uma avassaladora crise sanitária, que sob a condução do governo Bolsonaro, transformou-se num genocídio. Bolsonaro foi derrotado na sua ofensiva golpista de abril-maio, mas a sua mudança de tom, a aliança formal com o Centrão e a capitalização do auxílio-emergencial, combinadas com o imobilismo da maioria da oposição e suas principais lideranças, o fizeram recuperar parte da popularidade perdida.
2. Lula e o PT, de um lado, Ciro e seu bloco de outro, não são capazes nem de conversar, nem despertar as forças vivas da sociedade brasileira (mobilizar), muito menos de dialogar com os processos globais de recomposição de alternativas antissistêmicas. Assim, pedidos formais de impeachment puderam se acumular na gaveta de Maia sem serem apreciados. E o cenário de conjunto ofereceu a Bolsonaro espaço para se recompor junto com o Centrão, a representação mais parasitária das oligarquias brasileiras. Apesar de tudo, a indisposição com Bolsonaro na sociedade cresceu, há lutas sociais e greves importantes.
3. Este cenário de impasse vai canalizar a disputa política para o terreno das eleições municipais de novembro. Com a responsabilidade que tem, o PSOL deve enfrentar a direita e a extrema direita, buscando se credenciar como principal referência da esquerda. Para isso, seus objetivos na campanha eleitoral devem partir de fortalecer e nacionalizar a bancada com centro nas capitais e nas cidades mais importantes do país, acumulando assim para (a) superar a cláusula de barreira de 2022, que será maior em relação à última eleição; (b) ir ao segundo turno no máximo de cidades, como portador de ideias e identidade que canalizem o sentimento de oposição e indignação; (3) sair das eleições como principal partido de uma esquerda com pés no presente e olhos no futuro, com novas posições nos parlamentos, para que, com a próxima retomada das lutas, dispute também, nas lutas, nova localização no movimento social.
Coordenação Nacional da Insurgência, 1º de setembro de 2020