Após a morte de um policial militar por criminosos, o Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), foi palco de uma operação policial que terminou na morte de oito pessoas - saldo até o momento. Os corpos foram retirados por moradores de um manguezal, nesta segunda (22), e, segundo eles, apresentam marcas de tortura. Mais um episódio da República Miliciana do Brasil.
Leonardo Sakamoto, UOL, 22 de novembro de 2021
"O que aconteceu foi uma chacina cometida por agentes de Estado", explicou à coluna Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.
A Justiça utilizaria a inteligência para investigar a morte do agente de segurança a fim de identificar o criminoso, processá-lo, julgá-lo e, confirmada a sua culpa, sentenciá-lo e prendê-lo. Já a vingança vem como um porrete e não pergunta o nome, só verifica o endereço. Tanto que após a morte de policiais por traficantes, comunidades ficam em pânico esperando por execuções de moradores em um número muito maior.
"Isso não começou agora, mas nunca termina. Estamos falando de histórias que se repetem há décadas. Nas chacinas de Vigário Geral [agosto de 1993, 21 mortos] e da Candelária [julho de 1993, oito crianças e adolescentes mortos], por exemplo, houve elemento de vingança", afirma Werneck
Isso não significa que os policiais que participaram da ação sejam milicianos, mas o caso segue o mesmo padrão de comportamento.
Sessões de justiciamento se contrapõem à ideia de Justiça e do que está previsto na Constituição Federal de 1988. Mas se encaixam perfeitamente na sociedade miliciana que vem sendo construída no Rio, com o apoio de governantes estaduais e do próprio presidente da República.
E em uma sociedade miliciana não há suspeitos, só culpados, que precisam ser punidos.
Logo após a Chacina do Jacarezinho, na qual 27 moradores e um agente foram mortos em uma ação violenta do poder público do Rio no dia 6 de maio deste ano, o delegado Felipe Curi, do Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE), afirmou em coletiva à imprensa: "Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante".
Cinco meses depois, o Ministério Público discordou, apresentando denúncia contra policiais por execução e manipulação da cena do crime. Por exemplo, Omar Pereira da Silva estava rendido, ferido e encurralado em um quarto de criança e foi executado sumariamente. Depois, os policiais manipularam a cena do crime, removendo o corpo sem perícia, plantando uma granada e apresentando armas que não pertenciam à vítima, para justificar a sua morte, segundo o MP-RJ.
Jurema Werneck avalia que existe uma tentativa de legitimação da violência policial quando se trata de favelas. "Se fosse em um condomínio na Barra da Tijuca, onde moram os ricos, não haveria 'suspeitos' e os nomes adotados para a operação seriam muito piores do que 'chacina' e 'massacre' ", afirmou na época do Jacarezinho.
A visão miliciana faz da Justiça algo desnecessário. Porque a própria polícia, cuja função limita-se a investigar e prender quem comete crimes, também assume o papel de acusar, julgar e executar.
E coloca o agente de segurança acima da própria lei para cumprir essa tarefa. O que justifica o "excludente de ilicitude", que daria a policiais a garantia de imunidade em mortes causadas por eles enquanto vestem o uniforme. A proposta é defendida por Bolsonaro, mas também por Sergio Moro, quando seu ministro da Justiça e da Segurança Pública.
Essa cultura antidemocrática - que visa a escantear instituições, como o devido processo legal - é anterior ao bolsonarismo, mas se alimenta ferozmente dele, feito uma porca grande e gorda que guincha alucinada para a presunção de inocência. Ainda mais no Rio de Janeiro, epicentro pulsante de uma República miliciana que vai seguir causando vítimas muito tempo depois que seu padrinho deixar a política.
"Operações policiais que terminam em mortes cujas circunstâncias indicam uso excessivo e desproporcional da força e conduta ilegal dos agentes de segurança pública são inaceitáveis e precisam ser esclarecidas à população e aos familiares das vítimas", afirmou a Anistia Internacional em nota sobre a Chacina de São Gonzalo.
Faz-se necessário resistir à normalização dessa situação, portanto, exigindo uma apuração firme e respostas convincentes. Mesmo que a civilização seja ainda uma ideia distante.