País é a única grande economia que crescerá este ano, apesar de ser o epicentro do vírus, e seu Governo prepara um novo plano quinquenal para estimular o consumo interno.
Macarena Vidal Liy e Jaime Santirso, El País Brasil, 27 de setembro de 2020
Todas as amplas avenidas de Haitang —uma nova cidade costeira na ilha chinesa de Hainan, cujas palmeiras, hotéis de luxo e edifícios deslumbrantes lembram Miami— levam ao mesmo lugar. A um descomunal complexo de aço e vidro, com vendas duty free, onde não falta uma única empresa global de luxo. A pandemia da covid-19 esteve aqui de passagem, sem deixar outros rastros a não ser os controles de temperatura nos acessos e as máscaras que todo mundo usa. Após os meses de hiato forçados pelo coronavírus, o frenesi consumista está de volta.
É segunda-feira, mas não importa. Muitos dos milhares de turistas que lotam os corredores escolheram viajar à ilha de férias exatamente para poder comprar aqui, atraídos pelos preços sem as altíssimas taxas que o Governo chinês impõe aos produtos de luxo estrangeiros. Ante a perspectiva de uma pechincha, as precauções sobre a distância física não existem. Grupos de meninas com as unhas impecáveis se amontoam em frente às prateleiras de cosméticos —algumas delas farão bons negócios revendendo os produtos ao voltar para casa. Famílias que passeiam de sandálias conferem os detalhes de seus voos para buscar as compras no aeroporto. Mulheres com cara de concentração verificam no celular quanto economizarão antes de escolher bolsas, sapatos e brincos. A vontade de gastar é palpável.
São cenas inimagináveis neste momento em outros pontos do planeta. A economia chinesa é a grande exceção deste ano entre os principais mercados do mundo, devastados pela pandemia. O Fundo Monetário Internacional (FMI) prevê uma contração global de 4,9% em 2020, que será de -8% nos Estados Unidos e -12,8% na Espanha. Na China, no entanto, o efeito do coronavírus parece ter ficado para trás. Sua recuperação chegou antes e mais rápido do que estimavam os mais otimistas. Os técnicos do FMI preveem que seu PIB crescerá 1%. Muito longe dos 6% almejados por Pequim antes da crise, mas toda uma mudança em relação ao panorama do primeiro trimestre, quando sua economia sofreu uma contração de 6,8% —o primeiro retrocesso desde a morte de Mao Tsé-tung, em 1976. Um motivo de satisfação para os dirigentes chineses, que podem se orgulhar da gestão ante os cidadãos.
A curva do PIB já esboça a esperada recuperação em V, que até agora os outros países não conseguiram. O investimento em ativos fixos aumentou 9,3% em agosto contra 8,3% do mês anterior, e a produção industrial foi de 5,6%, em comparação com os 4,8% de julho. Os principais grupos imobiliários registraram um aumento de 30,7% na compra e venda de imóveis. E o setor automotivo, 6%. Até mesmo as salas de cinema, que em 26 de setembro ampliaram seus lugares para três quartos da capacidade, já situam sua receita em 90%. Outros indicadores também indicam uma atividade nos patamares anteriores (ou inclusive superiores) à pandemia: o consumo de eletricidade, que havia despencado com a paralisação de fevereiro e março, cresceu 0,5% nos nove primeiros meses do ano em relação ao mesmo período de 2019.
Até mesmo o consumo, que até agora avançou menos que a indústria, começa a dar sinais animadores à medida que a recuperação se consolida —e, com ela, a confiança da população. Gastos como os dos visitantes do duty free de Haitang impulsionaram as vendas no varejo pela primeira vez este ano (0,5%), após uma queda de 1,1% no período anterior. Um sinal positivo, embora a distância em relação ao setor produtivo continue aumentando.
A chave tem sido, em primeiro lugar, o rápido controle da pandemia. Após um início desastroso, o Governo decretou duras medidas de confinamento, sem precedentes na história recente e que em outro país teriam sido impensáveis até então. Em abril, quase três meses após sua imposição, o bloqueio de Wuhan foi suspenso. Neste setembro, segundo dados oficiais, todo o país completou mais de um mês sem infecções locais, o que permite uma vida praticamente normal.
Além disso, para insuflar a nova vida na economia em coma que a China apresentava em março, Pequim adotou uma série de medidas de apoio ao setor produtivo. A prioridade era proteger o emprego, fundamental para um Governo que tem na estabilidade social sua principal meta: passou-se de um desemprego oficial de 5,2% nas áreas urbanas para 6% (ou seja, cinco milhões de pessoas perderam seu posto de trabalho). As cifras reais poderiam ser muito maiores, já que os dados oficiais não levam em conta o desemprego entre os milhões de imigrantes rurais do interior da China, a mão de obra que alimenta as fábricas da próspera zona costeira.
Assim, o Governo aplicou a mesma fórmula à qual havia recorrido no passado: crédito e subsídios às empresas, estímulos que priorizam o investimento do setor público em áreas como logística e infraestrutura, grandes geradoras de postos de trabalho. Qu Hongbin, economista-chefe do banco HSBC para a China, calcula que no segundo semestre do ano o gasto em infraestrutura crescerá 15% em relação ao ano passado. A fórmula agravou desequilíbrios que já existiam. Como em outros países, as famílias de menor renda sofreram mais o impacto da crise: só 20% dos oficialmente desempregados receberam seguro-desemprego; as pequenas empresas enfrentam maiores dificuldades que as grandes, sobretudo no setor de serviços. “A diferença de renda e consumo entre os residentes mais abastados e aqueles de renda média e baixa está aumentando drasticamente”, alertava no mês passado, num discurso, Wang Xiaolu, subdiretor do think tank Instituto Nacional de Pesquisas Econômicas da China.
O resultado, ao menos até agora, é uma recuperação econômica desigual, muito mais apoiada na produção que no consumo. Este setor poderia demorar a retomar os níveis anteriores, já que as famílias de mais baixa renda ainda não se recuperaram do impacto inicial da pandemia. De fato, o aumento das vendas no varejo foi impulsionado pelos produtos mais caros e não essenciais, como cosméticos, joias e eletrônicos, ao passo que alimentos, roupas e outros artigos de uso cotidiano têm se mantido estáveis. Se dos resultados de agosto for eliminado o aumento na compra de veículos, as vendas no varejo entram em crescimento negativo (-0,6%).
Embora assimétrica, tudo indica que a recuperação continuará nos próximos meses. Ma Jun, assessor do Banco Popular da China (PBOC, o banco central) prevê um crescimento de 6% do PIB no quatro trimestre, além de uma normalização das políticas macroeconômicas no primeiro trimestre de 2021. “As pessoas subestimam o poder que os responsáveis políticos na China têm para estimular a demanda e gerar a reativação”, disse numa videoconferência Mark Williams, economista-chefe para a Ásia da consultoria Capital Economics. “A China voltará a algo parecido com o normal mais rápido do que muitos esperam, e já estamos nesse caminho”, prevê.
Dentro da China, as cifras reforçaram a mensagem do Governo, que diz que “o modelo chinês é melhor do que qualquer outro. Portanto, devemos intensificá-lo, continuar com esse modelo dirigido pelo Estado”, completa Williams.
Justamente essa remodelação do peculiar sistema de capitalismo de Estado chinês será uma das prioridades da gestão governamental no futuro imediato e no médio prazo. No próximo mês, o Comitê Central do Partido Comunista realizará sua sessão plenária anual. Lá serão traçadas as diretrizes do XIV Plano Quinquenal que dirigirá a segunda economia do mundo entre 2021 e 2025; do plano “Padrões da China 2035”; e de outros projetos com os quais Pequim deseja ser, em 15 anos, um país de “riqueza e poder”. O mantra dessa reunião essencial, a portas fechadas num hotel do norte de Pequim, será “circulação internacional” ou “dupla circulação”. Esse conceito, do qual ainda pouco se sabe, veio à tona pela primeira vez numa reunião do Politburo em 14 de maio presidida por Xi Jinping. Nela, foi enfatizada a necessidade de “explorar completamente a enorme escala de mercado da China e o potencial da demanda nacional, para estabelecer um novo padrão de desenvolvimento que inclua circulação dual entre o interior e o exterior, numa complementação mútua”.
Alicia García-Herrero, economista-chefe para a Ásia do banco de investimentos francês Natixis, explica que essa teoria “se baseia, por um lado, em manter a integração com o resto do mundo; e, por outro, em aumentar a fortaleza do consumo interno, reduzindo ao mesmo tempo a dependência das importações”, sobretudo de tecnologia e outros produtos manufaturados de alta qualidade. “Em suma, protecionismo econômico”, conclui.
À primeira vista, o novo modelo não é uma proposta muito inovadora. Desde os tempos de Hu Jintao e Wen Jiabao (2002-2012), fala-se da necessidade de um novo modelo de crescimento que coloque mais ênfase no consumo interno e menos nas exportações. Afinal, o gasto dos consumidores nacionais só representa ainda 38,8% do PIB chinês, em comparação com 66% nos Estados Unidos.
Mas esta não é simplesmente uma mudança superficial. A estratégia da “circulação internacional” é também uma reação às condições externas atuais: à relação cada vez mais ácida com os EUA, a uma guerra comercial que —embora esteja agora em pausa forçada— pode voltar a qualquer momento, e a um desacoplamento tecnológico cada vez mais acentuado. As relações outrora cordiais com certos parceiros econômicos, com a União Europeia (UE), Austrália e Índia, pioraram de maneira notável, se é que não se tornaram completamente hostis. Uma situação bem diferente da que a China enfrentava na crise de 2008, quando o multilateralismo ainda era a palavra da moda.
“No cenário internacional, o mundo começou a ser mais cauteloso ante o auge da China. A confrontação atingiu um nível inédito durante a pandemia por causa de incidentes relacionados com Hong Kong e com o Mar da China Meridional. Por isso, o Governo prevê que deve lidar com um ambiente internacional cada vez mais hostil”, afirma o catedrático Xu Bin, da escola de negócios CEIBS de Xangai.
“Desta vez, frente aos tempos de Hu e Wen, a noção é garantir que uma maior parte do aumento da demanda seja coberta com a produção interna em vez das exportações. Nesse sentido, a estratégia da circulação dual é um corolário do Made in China 2025, o programa prévio do Governo para melhorar a capacidade tecnológica chinesa, já que tornou possível substituir os produtos mais caros somente graças aos avanços nos setores-chave”, diz García-Herrero num comunicado da Natixis. Isso, segundo a especialista, gerará preocupação na Coreia do Sul, no Japão e na Alemanha, importantes fornecedores de bens intermediários ao gigante asiático.
Porém, enquanto procura fazer evoluir suas próprias empresas e setores, a China mantém importantes laços (e dependência) com firmas estrangeiras para cobrir suas necessidades básicas —da alimentação à tecnologia. Somente em Xangai, a atividade dessas empresas contribui com 25% do PIB e um terço da arrecadação de impostos. E boa parte da recuperação chinesa neste ano se deve à fortaleza de suas exportações durante a pandemia. Uma guinada para algo parecido com a autarquia significaria um desastre econômico, do qual Pequim —e o cérebro por trás da nova política, o vice-primeiro-ministro e homem de confiança de Xi para a nova política, Liu He— tem plena consciência. O Partido reiterou, uma e outra vez, que o processo de abertura de sua economia ao exterior não vai parar; continuará avançando. “Tenho afirmado em várias ocasiões que a porta aberta da China não será fechada. Ela se abrirá cada vez mais”, declarou Xi durante um encontro com empreendedores. Enquanto se aguardam maiores detalhes e a sessão do próximo mês, a estratégia da “dupla circulação” levanta uma série de questões. Entre elas, o que Pequim fará exatamente para incentivar o consumo interno.
Em alguns campos, começa a haver novidades. As autoridades chinesas apresentaram, por exemplo, ambiciosos planos para criar zonas livres de impostos em todo o país, similares às de Haitang, para colocar ao alcance dos bolsos mais humildes produtos de luxo até agora proibitivos. Hainan, a ilha onde fica Haitang, deve se transformar numa zona especial de livre comércio. Xi mencionou também a necessidade de melhorar as cadeias logísticas dentro do país para unificar o mercado interno.
Mas tudo isso praticamente se reduz a meras anedotas ante o grande problema central: estimular o consumo, um desafio que exige profundas reformas estruturais para que os imigrantes rurais e as camadas menos favorecidas obtenham maior renda. Cerca de 130 milhões de pessoas (quase 10% da população chinesa) vivem em relativa pobreza —ganham menos que 40% da renda média, o que equivale a menos de 5.000 yuans (cerca de 4.000 reais) por ano— segundo as pesquisas do professor Li Shi, da Universidade de Zhejiang. Cerca de 270 milhões de imigrantes rurais carecem de autorização de residência interna nas cidades onde moram, o que impede seu acesso completo a serviços sociais básicos como educação e saúde. É fundamental solucionar o desemprego: embora este tenha diminuído desde os piores dias da pandemia, até agosto apenas oito milhões de postos de trabalho foram criados este ano, dois milhões a menos que no ano passado. O desemprego entre os jovens continua aumentando.
Talvez por isso, embora o vírus tenha obrigado Pequim a abrir mão de um de seus grandes objetivos para este ano —dobrar a renda média em relação aos patamares de 2010 (o que deve ser alcançado em 2021)—, o Governo chinês mantém o segundo objetivo: eliminar até o fim do ano a pobreza rural, que em dezembro de 2019 atingia oficialmente 5,5 milhões de pessoas. Uma meta que ganhou um novo impulso nesta segunda metade de 2020.
Mas os especialistas advertem sobre as dificuldades na hora de conciliar objetivos a priori contraditórios. “Fomentar o consumo, ou a circulação interna, depende de políticas que aumentariam os salários e benefícios dos trabalhadores, mas de uma forma que comprometeria a circulação internacional, ou seja, diminuiria a capacidade e a competitividade das exportações. A estratégia da circulação internacional é, de fato, incompatível”, escreveu George Magnus, pesquisador associado do Instituto da China da Escola de estudos Africanos e Orientais (SOAS) de Londres, no blog da instituição.
Nesta remodelação da economia, é fundamental também potencializar o setor privado, que, segundo informou em agosto o primeiro-ministro, Li Keqiang, criou 90% dos novos empregos este ano. Muitas empresas ainda estão acostumadas a produzir em massa e quase não investem em inovação, design e marketing. Ainda não se sabe como esse apoio será realizado. Na semana passada, porém, o Partido Comunista Chinês emitiu uma série de diretrizes para o “desenvolvimento saudável do setor privado”, que prometem ajuda para essas empresas e, ao mesmo tempo, promovem um maior papel do Partido nesse sentido. A Frente Unida do Trabalho, o braço do Partido encarregado das relações com empresas e entidades sociais, deverá “estar ciente do desenvolvimento e da demanda das firmas privadas”, informou a agência estatal Xinhua.
A tecnologia chinesa será impulsionada à luz das intensas disputas com os EUA pela supremacia no setor. O veto ao fornecimento de componentes para a Huawei já começou a estimular o desenvolvimento de uma indústria própria de semicondutores. O que parece ficar mais distante é a perspectiva de reformas liberais, do tipo exigido por Washington na guerra comercial. Com o impulso para desenvolver o mercado interno e a fomentar a recuperação , “é ainda menos provável que vejamos as reformas pelas quais os EUA têm pressionado, para conseguir mais liberalização” diz Williams, o especialista da Capital Economics.
Em agosto Xi Jinping visitou a siderúrgica Magang, uma das mais antigas do país e que, após sua fusão com a rival Baowu em 2019, tornou-se uma das maiores estatais chinesas. Foi a quinta visita do líder chinês a uma companhia pública este ano, num sinal de apoio ao setor estatal que confirmou a visão que Xi tem dessas organizações como vetores de inovação. “As empresas privadas continuam sendo bem-vindas. De fato, a China precisa mais do que nunca de sua inovação e seu potencial de crescimento. Mas, no núcleo do sistema econômico, permanecerá uma base de indústrias estratégicas e politicamente controladas”, disse na época o analista Nils Grünberg, do think tank alemão Merics.
O bom desempenho da economia chinesa se reflete na evolução de sua divisa. Desde maio, o renminbi (moeda oficial chinesa) subiu 5% em relação ao dólar. Hoje, 6,75 yuans compram uma unidade de seu equivalente norte-americano. É o nível mais alto desde o começo de 2019. “Com a China rumo a uma recuperação mais pronunciada que a de outros países, sua posição externa mais sólida em uma década e seus títulos domésticos excepcionalmente atraentes para os parâmetros globais, ainda há margem para muitos avanços”, previu um relatório recente da Capital Economics. Essa revalorização vai baratear as importações e atenuar a inflação. Isso estimulará o consumo interno, uma das métricas mais importantes para alcançar uma plena recuperação. Trata-se de uma situação bem diferente da vivida em agosto do ano passado, quando, nos dias mais quentes da guerra comercial, a China optou por desvalorizar sua moeda, superando a barreira dos 7 yuans por dólar pela primeira vez em 11 anos – o que levou os EUA a qualificar o gigante asiático de “manipulador de divisas”. Essa cifra, contudo, aproximou-se mais do valor de mercado do renminbi, que durante anos se manteve acima de sua taxa real de câmbio devido à ação governamental.
Em plena pandemia, e quando o mundo entra num retrocesso econômico de alarmantes dimensões, a China, principal potência exportadora do mundo, não apenas conseguiu manter, mas também aumentou seu volume de vendas ao exterior. Em agosto, a exportação de bens atingiu 235,3 bilhões de dólares (cerca de 1,3 trilhão de reais), alta de 9,5% em relação ao mesmo mês do ano passado. Foi o terceiro nível mais alto desde o início dos registros – e o maior desde novembro de 2018, antes do auge da guerra comercial com os EUA. Mas não foi uma anomalia: um mês antes, as cifras eram similares. Um crescimento interanual de 7,2% para as exportações, uma contração de 1,4% para as importações. Com esses dados, a China alcançou um superávit de conta corrente formidável: 58,9 bilhões de dólares (327 bilhões de reais). Apesar dos debates sobre a possibilidade de um desacoplamento ao menos parcial das duas economias, especialmente na área estratégica, e apesar das tarifas que pesam sobre a maior parte dos produtos chineses como resultado da guerra comercial, mais da metade do superávit corresponde ao seu comércio bilateral com os EUA: 34,2 bilhões de dólares (190 bilhões de reais), a segunda maior marca na história do intercâmbio entre os dois países. Vários fatores permitiram que a China continuasse com seu forte volume de vendas. Por um lado, a pandemia desatou a demanda de produtos de proteção médica, assim como de bens de consumo eletrônicos, tanto para responder às necessidades do teletrabalho como para lidar com o isolamento nas famílias confinadas. Ao longo da crise, o gigante asiático manteve um alto nível de produção para manter o emprego, na medida do possível. Por outro lado, a reabertura da atividade econômica em outros mercados asiáticos gerou um acúmulo na demanda que agora precisa ser satisfeito. Além disso, a paralisação da produção de outros países fez com que empresas que talvez teriam se abastecido em outros lugares recorressem ao país presidido por Xi Jinping para realizar suas compras. “A pandemia destacou o grau de dependência dos EUA e do resto do mundo em relação às exportações chinesas”, afirma Mark Williams, economista-chefe para a Ásia da Capital Economics. “A China exporta os produtos que todo o mundo tem comprado nos últimos meses: equipamentos médicos, máscaras, equipamentos de proteção individual (EPIs) e, claro, artigos eletrônicos que muita gente necessita para trabalhar de casa. Assim, desde abril vemos essas cifras de exportações realmente muito altas.” O aumento é ainda mais notável porque as exportações haviam caído gradualmente como porcentagem do PIB chinês. Se em 2006 chegaram a 35%, em 2019 a proporção baixou para 17%. A grande dúvida é se, apesar de formarem a “circulação externa” da nova estratégia de crescimento chinês, as exportações continuarão com o mesmo ímpeto nos próximos meses. O consumo interno ainda é fraco na China, como indicam as frágeis cifras de vendas no varejo e suas importações. As compras feitas à UE diminuíram 6,8% em agosto, enquanto as aquisições do Japão e da Coreia do Sul caíram 1,4% e 4,1%, respectivamente. “Com Pequim usando os investimentos e as exportações para tentar criar mais empregos, o resto do mundo terá que absorver o excesso chinês” de produção, diz numa análise o Merics, think tank alemão especializado em China. “Mas isso pode não ser sustentável durante muito tempo, já que a demanda não é forte em outros lugares, e outros Governos podem ser tentados a dar assistência às suas indústrias nacionais através de medidas comerciais para apoiar o emprego”, completa. O próprio Xi, durante sua visita a Anhui em agosto, afirmou que a China “encara um clima externo em que o mercado global diminui”. Um editorial da publicação cantonesa Revisões do Sul, distribuída pela agência Xinhua, dizia que “Pequim não desiste do comércio internacional, mas, quando a demanda externa é dizimada pela Covid e o protecionismo, a ‘circulação interna’ é o caminho a seguir para que a economia chinesa continue avançando.” As promessas de Pequim de prosseguir com sua abertura ao exterior, no entanto, são recebidas com crescente frieza entre os empresários – e os Governos – estrangeiros. As companhias “de fora” quase não conseguem ter presença em setores como energia e finanças. Há um “cansaço das promessas”, o cansaço de esperar por reformas e por uma abertura que igualem as condições de jogo no apetitoso mercado chinês, diz o presidente da Câmara de Comércio Europeia na China, Joerg ¬Wüttke. Embora Pequim tenha aberto gradualmente alguns setores, lamenta a instituição, isso foi feito tão tarde que o mercado já estava ocupado.