A China está obrigando centenas de milhares uigures e membros de outras minorias étnicas a realizar trabalhos manuais extenuantes nos vastos campos de algodão da região de Xinjiang, segundo uma nova investigação feita pela BBC.
John Sudworth, BBC News, 27 dezembro 2020
Baseada em documentos disponíveis na internet e descobertos recentemente, a análise proporciona a primeira imagem clara da potencial magnitude do trabalho forçado na colheita do país que hoje responde por um quinto do fornecimento mundial de algodão, usado amplamente pela indústria da moda.
Assim como no caso da grande rede de campos de detenção em que, acredita-se, mais de 1 milhão de pessoas tenham sido detidas, as denúncias de que minorias estão sendo obrigadas a trabalhar na indústria têxtil também estão bem documentadas.
O governo chinês nega as acusações e afirma que os campos são "escolas de formação profissional" e que as fábricas são parte de um grande projeto de "alívio à pobreza", no qual a participação é voluntária.
Novas evidências apontam, entretanto, que a cada ano mais de meio milhão de trabalhadores de minorias étnicas estão sendo forçados a participar da colheita de algodão em condições precárias.
"No meu ponto de vista, há implicações em uma escala verdadeiramente histórica", disse à BBC o médico Adrian Zenz, membro da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo em Washington, nos Estados Unidos, que descobriu os documentos.
"Pela primeira vez, não só temos evidência de trabalho forçado dos uigures na indústria, na confecção de roupas, mas também na colheita do algodão, e acho que isso muda tudo", afirmou.
"Qualquer um que se preocupe com a ética da cadeia de suprimentos tem que olhar para Xinjiang, que produz cerca de 85% do algodão da China e 20% do algodão do mundo, e falar: 'Não podemos fazer mais isso'."
Os documentos, que contêm detalhes sobre políticas governamentais e informes de notícias estatais, mostram que, em 2018, as prefeituras de Aksu e Hotan enviaram 210 mil trabalhadores "por transferência laboral" para colher algodão para um organização paramilitar chinesa, o Corpo de Construção e Produção de Xinjiang.
Outros tratam de trabalhadores "mobilizados e organizados" e transportados a campos localizados a centenas de quilômetros.
Neste ano, Aksu identificou a demanda de 142,7 mil trabalhadores para seus próprios campos, o que foi suprido, em grande medida, com a "transferência de todos aqueles que deveriam ser transferidos".
As referências à "recomendação" para que os trabalhadores "desistam de atividades religiosas ilegais" indicam que as políticas foram desenhadas principalmente para os uigures de Xinjiang e outros grupos tradicionalmente muçulmanos.
Os funcionários do governo firmam primeiramente um "contrato de intenção" com as fazendas de algodão, determinando o número de trabalhadores contratados, localização, alojamento e salário. Na sequência, os trabalhadores se mobilizam para "se inscrever com entusiasmo".
Há muitos indicativos, entretanto, de que o "entusiasmo" inexiste. Um informe descreve um vilarejo onde as pessoas "não estavam dispostas a trabalhar na agricultura", o que levou os funcionários do governo a fazerem uma nova visita para realizar "trabalhos de educação do pensamento". Como resultado, 20 foram expulsos e havia um plano para "exportar" outros 60.
Acampamentos e fábricas
A China realiza há bastante tempo a realocação em massa de sua população rural pobre, supostamente com o objetivo de melhorar os indicadores de emprego, em uma campanha nacional contra a pobreza.
Nos últimos anos, esses esforços foram acelerados.
Em Xinjiang, contudo, há evidências de que a motivação é mais política e de que os níveis de controle são muito mais altos do que em outras regiões, assim como as metas que os funcionários têm de cumprir sob pressão.
Uma mudança notável na forma como a China lidava com a província remonta aos ataques violentos em Pequim em 2013 e na cidade de Kunming em 2014, atribuídos pelo governo a muçulmanos e separatistas uigures.
A resposta, desde 2016, tem sido a construção de acampamento de "reeducação", destino de qualquer um que tenha comportamento visto como pouco confiável: desde instalar um aplicativo de mensagens com criptografia no celular ou o consumo de conteúdo religioso até ter familiares vivendo em outros países.
Enquanto a China chama esses locais de "escolas para desradicalização", documentos apontam que eles são, na realidade, um sistema draconiano de confinamento que objetiva substituir identidades de fé e cultura com uma lealdade forçada ao Partido Comunista.
Mas o trabalho não se limita aos acampamentos. Desde 2018, vem ocorrendo uma grande expansão industrial, com a construção de centenas de fábricas.
A relação entre as prisões em massa e o trabalho forçado fica claro com a aparição de muitas unidades fabris dentro dos muros dos acampamentos ou próximas a eles.
O trabalho, na visão do governo, parece ser um dos caminhos usados para transformar "ideias obsoletas" das minorias de Xinjiang, convertendo-as em cidadãos chineses modernos, laicos e assalariados.
A BBC tentou visitar um dos centros na cidade de Kuqa, identificado por investigadores independentes como um campo de reeducação construído em 2017.
Imagens de satélite mostram muros de segurança internos e o que parece ser uma torre de vigilância.
Em 2018, surgiu uma nova fábrica logo ao lado. Pouco depois de finalizada a construção, um satélite captou outra imagem importante.
Analistas independentes confirmam que pode ser vista uma massa de pessoas, todas aparentemente com uniformes da mesma cor, caminhando próximas umas às outras entre os dois lugares.
A reportagem filmou o perímetro do complexo enquanto era seguida por vários carros.
A fábrica e o acampamento parecem agora terem se fundido em um grande complexo industrial, coberto por lemas da propaganda do governo que enaltecem os benefícios da campanha contra a pobreza.
Em pouco tempo, a reportagem foi interpelada para que parasse de registrar as imagens.
Enquanto a equipe da BBC esteve em Xinjiang, a polícia, funcionários da máquina de propagando local e outros membros do governo impediram-a em diferentes ocasiões de filmar. E diversos grupos de pessoas não identificadas a bordo de automóveis nos seguiram continuamente por centenas de quilômetros.
Segundo os veículos de informação estatais, a fábrica de têxteis emprega até 3.000 pessoas "graças à mobilização do governo".
A partir das imagens de satélite, entretanto, é impossível verificar quem são as pessoas que aparecem no local ou qual as condições para os trabalhadores nas instalações hoje.
Os questionamento enviados diretamente à unidade não foram respondidos.
'Arraigado pensamento preguiçoso'
Apesar do vínculo entre os acampamentos e fábricas, os que não foram detidos são os principais alvos da campanha de alívio à pobreza de Xinjiang, um grupo considerado uma ameaça menor para a segurança, mas que também precisa ser "reformado".
Frequentemente oriundos de famílias camponesas ou de agricultores pobres, mais de 2 milhões foram mobilizados para trabalhar, muitos depois de terem sido submetidos a breves períodos de treinamento laboral de "estilo militar" e doutrinamento ideológico.
Até agora, a evidência disponível sugere que, assim como aqueles confinados em campos, estes também têm sido utilizados como mão de obra nas fábricas e, em particular, na emergente indústria têxtil de Xinjiang.
Em julho deste ano, o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), com sede nos Estados Unidos, concluiu que era "possível" que as minorias também tenham sido enviadas para colher algodão, mas necessitava "de mais informações" para pudesse afirmar com certeza.
Os novos documentos encontrados por Zenz não apenas fornecem essas informações, como também revelam um claro propósito político por detrás da transferência massiva de minorias aos campos.
Uma mensagem de agosto de 2016 emitida pelo governo regional de Xinjiang sobre a gestão dos trabalhadores da colheita de algodão instrui os funcionários a "fortalecer sua educação ideológica e a educação de unidade ética".
Um informe de propaganda encontrado por Zenz sugere que os campos de algodão representam uma oportunidade para transformar o "arraigado pensamento preguiçoso" dessas populações rurais mostrando-lhes que "o trabalho é glorioso", ideia que se repete diversas vezes nos documentos.
Tais frases fazem eco à visão do Estado chinês de que os estilos de vida e costumes dos uigures são uma barreira à modernização.
Outro informe de propaganda sobre os benefícios da colheita de algodão descreve o desejo de ficar em casa e "criar os filhos" como uma "causa importante da pobreza".
O Estado está proporcionando sistemas de atenção "centralizados" para as crianças, os idosos e para os rebanhos, para que todos "se liberem das preocupações de sair para trabalhar".
E há muitas referências sobre como aqueles que trabalham na colheita estão sujeitos a controles e vigilância aparentemente contrários a qualquer prática laboral normal.
Um documento proveniente de Aksu, com data de outubro deste ano, decreta que os trabalhadores na colheita devem ser transportados em grupos e acompanhados por funcionários que "comam, vivam, estudem e trabalhem com eles, implementando ativamente a educação mental durante a colheita de algodão".
Mahmut (nome fictício) é um jovem que hoje vive na Europa e não pode voltar a Xinjiang dado seu histórico de viagens ao exterior, uma das principais razões de internamento nos campos.
O contato com a família acabou ficando arriscado demais para ele.
Quando se falaram pela última vez, em 2018, ele ouviu tanto da mãe quanto da irmã que haviam sido realocadas para trabalhar.
"Levaram minha irmã à cidade de Aksu, a uma fábrica de têxteis", disse à reportagem. "Ela ficou lá por três meses e não recebeu nada pelo trabalho."
"No inverno, minha mãe estava colhendo algodão para os funcionários do governo; disseram que precisavam de 5% a 10% dos moradores do vilarejo e foram de porta em porta abordando as famílias. As pessoas vão porque têm medo de serem levadas para a prisão ou a outros lugares", acrescenta.
Nos últimos 5 anos, essas visitas de porta em porta se converteram em um mecanismo chave de controle em Xinjiang, com 350 mil funcionários enviados para recolher informações detalhadas sobre cada domicílio habitado por etnias minoritárias.
Aqueles convocados para trabalhar nas "equipes de trabalho nos vilarejos" estão conscientes do papel que desempenham no processo de seleção dos que serão enviados aos acampamentos.
'Completamente inventadas'
A indústria de algodão de Xinjiang costumava depender de trabalhadores que migravam sazonalmente de outras províncias da China.
A colheita é um trabalho desgastante — e, com o tempo, a melhoria dos níveis salariais e novas oportunidades de emprego em outros locais acabaram diminuindo a mão de obra disponível.
Agora, os informes de propaganda ressaltam com entusiasmo como a nova oferta resolveu o problema e tem ajudado a aumentar os ganhos dos produtores.
Em nenhum trecho, contudo, há a real explicação de por que centenas de milhares de pessoas que aparentemente não tinham nenhum interesse prévio na colheita de algodão de repente se disponibilizaram para o serviço.
Ainda que os documentos coloquem que o pagamento pode superar 5.000 RMB (cerca de R$ 3,8 mil) por mês, um dos informes aponta que, para 132 trabalhadores, a remuneração mensal era de apenas 1.670 RMB (R$ 1,3 mil).
Independentemente do nível salarial, o trabalho remunerado pode ser considerado trabalho forçado em determinadas situações, conforme a convenção internacional sobre o tema.
Em resposta às perguntas enviadas ao Ministério das Relações Exteriores da China, a BBC recebeu, por fax, o seguinte posicionamento: "Os trabalhadores de todos os grupos étnicos de Xinjiang escolhem o emprego de acordo com sua vontade própria e assinam contratos de trabalho de acordo com a lei".
A taxa de pobreza de Xinjiang caiu de cerca de 20%, conforme registrado em 2014, para pouco mais de 1% recentemente, acrescenta o comunicado.
As informações sobre trabalho forçado foram "completamente inventadas" pelo Ocidente, afirma o ministério, acusando os críticos ao país de quererem causar "desemprego forçado e pobreza forçada" em Xinjiang.
"Os rostos sorridentes de todos os grupos étnicos de Xinjiang são a resposta mais poderosa às mentiras e rumores dos Estados Unidos", afirmou o governo.
A Better Cotton Initiative, uma organização setorial independente que promove padrões éticos e sustentáveis, disse à BBC, entretanto, que as preocupações em relação ao plano contra a pobreza da China foram uma das principais razões que a levaram a deixar de auditar e certificar fazendas em Xinjiang.
"Identificamos o risco de que as comunidades rurais pobres se vejam obrigadas a aceitar empregos vinculados a esse programa de alívio contra a pobreza", afirmou Damien Sanfilippo, diretor de padrões e garantias.
"Ainda que esses trabalhadores recebam um salário decente, o que é possível, não significa que tenham escolhido o emprego livremente", acrescentou.
Sanfilippo, que ressalta que os monitores internacionais da organização também têm acesso cada vez mais restrito em Xinjiang, pontua que a decisão de interromper a certificação aumenta ainda mais o risco para a indústria global da moda.
"Até onde sei, não existe hoje uma organização ativa a nível local que possa proporcionar uma verificação para esse algodão."
A BBC perguntou a 30 marcas internacionais importantes se tinham intenção de seguir comprando produtos da China ligados à indústria do algodão após as denúncias.
Entre as que responderam, apenas quatro (Marks & Spencer, Next, Burberry e Tesco) disseram ter uma política estrita que exige que artigos procedentes de qualquer região da China não utilizem algodão proveniente de Xinjiang.
Enquanto a reportagem se preparava para sair de Xinjiang, no entorno da cidade de Korla, passamos por um local que, em 2015, era uma zona desértica.
Agora, o local é um enorme complexo com campos de aprisionamento, que, para analistas ouvidos pela reportagem, inclui diversas fábricas.
É apenas um de muitos complexos que agora brotam na paisagem e uma sombria lembrança dos limites turvos entre o encarceramento em massa e o trabalho em massa em Xinjiang.