Numa entrevista ao site Truthout, Noam Chomsky fala do desprezo das superpotências pelas regras do direito internacional, das condições de saída do conflito e da razão para a China não se querer envolver na mediação.
Esquerda.net, 9 de Março de 2022
Duas semanas após a invasão russa da Ucrânia, o intelectual norte-americano Noam Chomsky afirma em entrevista ao site Truthout(link is external) que "o desprezo das superpotências pelo quadro jurídico internacional é tão frequente, que até já passa quase despercebido". E dá o exemplo da condenação de Washington pelo Tribunal Penal Internacional em 1986 pela guerra à Nicarágua, que teve em resposta uma escalada militar ainda maior. Quando o Conselho de Segurança da ONU tentou aprovar uma resolução a apelar a todos os países que respeitassem a lei internacional, sem mencionar nenhum, "os EUA vetaram-na, proclamando assim alto e bom som que são imunes à lei internacional. Ela desapareceu da história", aponta o linguista e ativista, dando os exemplos das guerras russas na Chechénia, da Turquia contra os curdos, do roubo dos fundos de reserva afegãos pela atual administração Biden, das torturas ao povo de Gaza ou do envio de um milhão de uigures para os campos de "reeducação" por parte da China. Para mudar esta situação, prossegue Chomsky, "não basta proteger as vítimas", mas sim "obrigar os poderosos a pararem os seus crimes ou, a longo prazo, fragilizando por completo o seu poder", tal como o estão a fazer "os muitos milhares de russos corajosos" que se manifestam contra a guerra de Putin.
Chomsky aborda ainda as oportunidades perdidas para evitar a guerra. Do lado dos EUA, o governo afastou "o que até altos responsáveis e diplomatas norte-americanos consideravam ser preocupações legítimas de segurança por parte da Rússia", enquanto do lado russo, Putin não quis "apelar à Alemanha e França para avançarem no projeto da 'casa comum europeia' no desenho proposto por De Gaulle ou Gorbachev, um sistema europeu sem alianças militares do Atlântico aos Urais, ou até para além, substituindo o sistema atlantista baseado na NATO e na subordinação a Washington". Em vez disso, conclui Chomsky, "Putin escolheu puxar do revólver" e o resultado é "devastador para a Ucrânia, com o pior ainda por vir", mas também acaba por ser um presente para os EUA com o reforço da NATO, ao ponto de "alguns analistas sóbrios e bem informados terem especulado se não seria esse o objetivo de Washington desde o início".
A propósito dos apelos de Zelensky para a NATO criar uma zona de exclusão aérea nos céus ucranianos, Chomsky afirma que o pedido é compreensível, mas a sua aceitação levaria "à obliteração da Ucrânia e não só". "Uma zona de exclusão aérea significaria que a Força Aérea dos EUA iria não só atacar aviões russos mas também bombardear instalações no terreno que dão apoio antiáereo ao exército russo, com todos os 'danos colaterais' daí decorrentes. É assim tão difícil perceber o que viria a seguir?", questiona. Quanto a um hipotético cenário de ocupação russa da Ucrânia, Chomsky não parece ter dúvidas de que isso faria a experiência de ocupação russa do Afeganistão "parecer um piquenique no jardim".
Muito se tem especulado sobre uma possível intervenção da China para mediar o conflito, mas Noam Chomsky não vê interesse de Pequim em envolver-se na questão. "Eles percebem tão bem como nós que houve sempre um caminho para evitar a catástrofe" e que "ainda é possível satisfazer o principal objetivo de Putin de forma a beneficiar toda a gente e sem violar direitos fundamentais. Mas também veem que o governo dos EUA não está interessado nisso", contrapõe. Por outro lado, o caminho da China passa por integrar o resto do mundo no seu sistema de investimento e desenvolvimento e em particular no Sul Global, "alvos tradicionais da brutalidade europeia e norte-americana", onde a perceção da tragédia na Ucrânia não é a mesma do que na Europa ou EUA, aponta Chomsky.