Christian Laval, Roar Magazine/Outras palavras, 24 de agosto de 2020. Tradução: Gabriela Leite.
A pandemia de Covid-19 nos relembra das características mais fundamentais da condição humana: a solidariedade que existe entre humanos ultrapassando fronteiras, entre humanos e outros seres vivos, assim como entre seres vivos e seus ambientes. Essa lembrança, que nacionalistas obtusos e lógicas competitivas já correm para abafar, nos convida a repensar como deveria ser uma instituição política global verdadeira — que aqui iremos chamar de “bens comuns globais da humanidade”.
As lições que a pandemia ensina também se aplicam aos maiores problemas que confrontam a humanidade, a começar pelo aquecimento global e o desfile de desastres que estão programados para ocorrer, e para os quais não estamos mais preparados do que estávamos para enfrentar o vírus. De maneira alguma nossas instituições econômicas e políticas nos armam para encarar o que nos espera à frente. É então mais urgente que nunca que repensemos politicamente as condições necessárias à sobrevivência da humanidade no planeta.
Solidariedade humana demonstrada pelo vírus
O vírus oferece uma demonstração perfeita àqueles que esperavam provas da solidariedade que liga os seres humanos uns aos outros e também aos não-humanos. A interligação crescente entre sociedades, com trocas econômicas, urbanização planetária e fluxos entre fronteiras, acelerou consideravelmente a difusão da epidemia. Ultrapassou os Estados, assim como as organizações de saúde subfinanciadas, que não estavam prontas para atua à altura da ocasião.
Fenômenos de pandemia tornam tangível o que sociólogos e filósofos no final do século XIX chamavam de “solidariedade”. Durkheim, eu sua tese Da Divisão do Trabalho Social, de 1893, descreveu a solidariedade como um conceito que torna possível descrever o que ata os indivíduos entre si, e distinguir as sociedades a partir do tipo de solidariedade que as caracteriza.
Na mesma época, a teoria do “solidarismo” — conhecida por ser a filosofia da Terceira República na França — colocou a solidariedade na “lei universal” que deveria inspirar a política social dos governos. O político francês Léon Bourgeois (1851-1925), pai espiritual da Liga das Nações e principal autor dessa corrente de pensamento, escreveu: “Assim as pessoas são, entre si, colocadas e mantidos em laços de dependência mútua, como também são todos os seres e todos os corpos, em todos os pontos do espaço e do tempo. A lei de solidariedade é universal.” E afeta todas as áreas da vida, a saúde, o trabalho, o pensamento, os sentimentos. Contra a leitura feita pelos liberais de Darwin, especialmente Spencer, os solidaristas franceses, apoiando-se entre outros nos escritos do criador da teoria da Evolução, sobre a cooperação na espécie humana, transformam-na em lei de solidariedade em lei de coesão e evolução.
Teóricos da saúde pública tomaram emprestado o conceito de solidariedade para transformá-la em chave operacional às políticas de sua área. Henri Monod (1843-1911), diretor da Assistência Pública e de Higiene da França, em um livro publicado em 1904, assume o argumento solidarista para encorajar a solidariedade financeira entre distritos ricos e pobres, entre cidades ricas e pobres:
A Saúde Pública é, talvez, o domínio no qual o fato social de nossa dependência mútua, da solidariedade humana, se manifesta com mais evidência. A todo momento, cada um de nós, sem perceber, influencia a saúde e a vida de outros humanos que não conhecemos, que jamais conheceremos. Seres que nunca encontramos, ou que já desapareceram há muito tempo, influenciam nossa saúde em todos os momentos, a daqueles que amamos, e as condições essenciais de nossa felicidade.
Essa solidariedade deve se estender ao mundo inteiro: “Nem é suficiente dizer que esse cuidado é um dever aos cidadãos, pois a solidariedade sanitária não conhece fronteiras”. A lucidez de Monod sobre o caráter internacional da saúde pública impressiona até hoje:
Talvez, no momento em que escrevo, uma falha qualquer de higiene, que fará algum dia vítimas na Europa, esteja sendo cometida nas margens do Ganges ou em um dos portos da Índia. Talvez alguma outra ação, esta de ordem científica, que salvará centenas de milhares de pessoas de uma doença hoje triunfante, esteja acontecendo no momento em que escrevo, em algum laboratório estrangeiro. Toda a humanidade pode sofrer pelas falhas higiênicas — já das conquistas, todos se beneficiam. A preocupação com a saúde pública, assim como o cumprimento das obrigações que essa proteção impõe, é, portanto, um dever para todas as pessoas honestas.
Encontramos a mesma ideia de interdependência provada pela doença em Charles Nicolle (1866-1936), especialista em doenças infecciosas, que escreveu nos anos 1930: “O conhecimento sobre doenças infecciosas ensina os humanos que são irmãos e irmãs em solidariedade. Somos família, porque corremos o mesmo risco, e vivemos em solidariedade porque o contágio chega até nós por nossos parceiros seres humanos”. E, ao falar de pesquisa em medicina, exclamou: “Que resultados frutíferos quando, a partir de esforços compartilhados, as pessoas se unem!”
As realizações institucionais acompanharam essa consciência crescente nos círculos científicos. Em 1851, a primeira reunião internacional para discutir a guerra contra a peste e a cólera, doenças que causaram estragos entre 1830 e 1847, foi realizada em Paris. Do final do século XIX em diante, Monod defendeu uma organização internacional que enfrentaria não apenas essas epidemias “clássicas”, mas todas as doenças. Foi fundada em Roma, em 1907, com o nome de Escritório Internacional de Higiene Pública.
A internacionalização da saúde pública recebeu um novo ímpeto com a criação do Comitê de Saúde da Liga das Nações em 1921 e, sobretudo, com a Organização Mundial de Saúde, constituída em 1946, e que entrou em operação em 1948.
Um confinamento de Estado-nação
Diante dessas observações de desenvolvimento do conceito de solidariedade e da institucionalização da saúde pública global, podemos nos perguntar como diferentes países responderam à epidemia de covid-19 em 2020.
Em poucas palavras, a resposta econômica, política e científica provou-se desastrosa em muitos aspectos. Primeiro e principalmente porque revelou o quanto estávamos desarmados por décadas de políticas de saúde pública guiadas pela austeridade e lucratividade. Mas também, não podemos deixar de ver a quase absoluta prevalência da lógica de Estado-nação no enfrentamento à crise de saúde. Cada Estado respondeu aos problemas apresentados por ela como se fosse uma ilha: cada um capaz de lidar com a crise de seu jeito, independentemente dos outros.
Testemunhamos muito rapidamente o fechamento de fronteiras, as definições estritamente nacionais de estratégias a serem seguidas, a mobilização e requisição de recursos — algumas vezes em detrimento de outros países — e até a eventual difamação ou denúncia de medidas tomadas nos outros lugares.
Acompanhada dessa cacofonia política geral, que demonstrou a crise geral do “multilateralismo” no front da saúde, estamos testemunhando a maior confusão científica e administrativa, tanto a nível nacional quanto internacional. Até na União Europeia, as agências nacionais de medicamentos jogaram cada uma um jogo diferente, sem coordenação de metodologias e, em cada país, cada laboratório, cada indústria tentou ultrapassar as outras.
Como pode ser possível que as grandes lições de solidariedade do final do século XIX, começo do XX, tenham sido esquecidas tão rapidamente? Como podemos entender o espasmo que amarrou nossos governos, a ponto de que por tempo demais a gravidade da situação foi, pura e simplesmente, negada? Há muitos fatores, mas vamos focar em dois deles, um no nível nacional, outro no global.
Responsabilidade cívica, interesse próprio e coerção estatal
Em face de uma pandemia causada por um vírus tão contagioso como o da covid-19, a única solução, de acordo com epidemiologistas, é cortar todas as possíveis correntes de transmissão de humano para humano. Quer dizer, fazer um chamado à responsabilidade coletiva de cada indivíduo. Isso não significa que cada pessoa deveria proteger meramente a si mesma, mas uma proteção mútua que cada um garante ao outro, em uma relação de reciprocidade.
Quando falamos de “saúde pública”, muitas vezes não conseguimos perceber que, nessa expressão, “público” não pode de maneira alguma ser reduzido ao “Estado”. “Público” aqui se refere não só a ele, mas à coletividade constituída por todos os seus cidadãos. No entanto, os governos de maneira geral não foram capazes de compreender que o principal trunfo em uma luta contra uma doença tão contagiosa está no que pode ser chamado de cívico, ou coletividade, de responsabilidade.
Profundamente mal orientado por décadas de dogmas utilitários, normas neoliberais e demandas individualistas, o discurso da maior parte dos governos não conseguiu encontrar as palavras necessárias para dizer que a solidariedade social é a primeira linha de defesa contra a epidemia — que o sentimento e a consciência do destino de todos nós na mão de cada um de nós é a única vacina que temos disponível agora.
Ao invés disso, esses governos usaram as palavras mais inadequadas: falar do óbvio interesse próprio de cada um de nós, ou sobre a nossa responsabilidade individual que carregamos frente aos riscos. Os governos agiram como se a sociedade fosse uma mistureba de átomos isolados, como se cada indivíduo tivesse que se proteger dos outros. É “para si mesmo” que cada um deve manter distanciamento, usar máscaras individuais, lavar as próprias mãos — não para proteger a comunidade como um todo.
Se nossos governos não foram capazes de declarar com clareza e encorajar a co-responsabilidade de cada um de nós em nosso destino coletivo, é provavelmente porque eles acham muito difícil imaginar outras relações entre indivíduos que as de rivalidade, competição e confronto de interesses.
“O mundo não está preparado”
Os países responderam com uma abordagem do “cada um por si” e a OMS não foi capaz de coordenar esforços efetivamente. A análise mais convincente dessa falta de poder foi feita pela especialista em pandemias Suerie Moon, co-diretora do Global Health Centre no Instituto de Pós-Graduação em Estudos Internacionais e de Desenvolvimento, em Geneva: “A experiência dessa crise nos mostra como é duradouro o princípio da soberania estatista nos assuntos mundiais”.
No entanto, a OMS não pode levar a culpa por não ter antecipado perfeitamente o risco. O Grupo de Monitoramento de Preparação Global, um escritório ligado à OMS e mais especificamente responsável por dar respostas a pandemias, avisou o mundo alguns meses antes de o vírus aparecer: “Se é verdade dizer que ‘o que é passado é prólogo’, significa que há uma ameaça muito real de uma epidemia veloz e altamente letal de um patógeno respiratório que poderá matar de 50 a 80 milhões de pessoas e destruir até 5% da economia mundial. Uma pandemia global nessa escala poderá ser catastrófica, criando um caos generalizado, instabilidade e insegurança. O mundo não está preparado.”
O Grupo de Monitoramento de Preparação Global lançou esse relatório em setembro de 2019.
Para os bens comuns globais
Se a consequência dessa crise deveria ser o “retorno ao Estado-nação” e o “renascimento da soberania de Estado”, então teremos de lidar com um dos mal entendidos mais sérios da história. A única maneira de andarmos para frente é considerar a saúde como um bem comum global.
O que isso significa?
O Comum é o que uma decisão coletiva “faz ser comum”. Fazer ser comum é transformar um recurso, um serviço ou um espaço acessível a uma comunidade, baseado no reconhecimento de um direito das pessoas. A vacina é um “bem comum” com base no nexo que é politicamente estabelecida entre ela e um direito fundamental à saúde para todo ser humano. Mas isso não é suficiente para definir um bem comum global, já que fica imediatamente aparente que as condições institucionais ainda precisam ser criadas para que essa decisão seja adotada e implementada.
Precisamos de uma organização política para saúde global diferente da OMS. Sua dependência dupla de Estados e de fundos privados não dá a ela a autoridade e os meios que deveria ter para cumprir sua tarefa de cooperação. É, então, necessário imaginar uma instituição de saúde global cujas deliberações e decisões constituirão padrões mundiais imperativos.
Essa instituição cosmopolítica (importante: não “interestatal”) iria federar todas as instituições de saúde sem fins lucrativos nacionais, regionais e locais, e mobilizaria pesquisadores de todos os países. Poderia ter as mesmas missões de informação, notificação e cooperação que são oficialmente atribuídas à OMS hoje, mas diferente desta, iria ter autoridade a nível nacional e local para mobilizar os meios necessários para acolher o direito fundamental das populações à Saúde.
A pergunta que essas consequências da globalização abre é se a humanidade do futuro será capaz de estabelecer novas instituições que entregarão a elas os meios para enfrentar os riscos que o capitalismo predatório deixou para trás. Os Bens Comuns da Saúde /global são parte disso.