Isabel Harari, Instituto Socioambiental – ISA, 25 de novembro de 2020
“Foi por um sopro”. É assim que os indígenas Juruna, ou Yudjá, descrevem a criação da Volta Grande do Xingu, no Pará. Foi pelo sopro do criador Senã’ã que surgiram as cachoeiras do Jericoá e os próprios indígenas, que vivem ali até hoje. Das pegadas dos primeiros humanos outros sopros fizeram surgir mais pessoas que povoaram essa região. Hoje, cinco anos após o início da operação da hidrelétrica de Belo Monte, os Juruna, povo canoeiro, não tem mais água para navegar nem peixe para se alimentar.
Com o barramento e o desvio do Xingu para a construção e operação da maior hidrelétrica na Amazônia, em 2015, a quantidade, a velocidade e o nível da água na região não derivam mais do fluxo natural do rio, mas sim da concessionária Norte Energia. A empresa controla o volume de água que passa pelas comportas da usina, descendo pela Volta Grande do Xingu. Com o risco de ter até 80% de redução de sua vazão, a região que comporta duas Terras Indígenas e centenas de famílias ribeirinhas pode entrar em colapso.
Nos três primeiros meses do ano, período de inundação do rio, a empresa liberou 34% do volume de água recomendado pela equipe técnica Ibama. Segundo parecer (saiba mais abaixo), a Norte Energia deveria garantir água suficiente para assegurar a alimentação e reprodução das espécies aquáticas: 3,1 mil m3/s de água em janeiro, 10,9 mil m3/s em fevereiro e 14,2 mil m3/s em março. Foram liberados em média, no entanto, 1,13 mil m3/s em janeiro, 1,79 mil m3/s em fevereiro e apenas 6,7 mil m3/s em março. Os dados são da Agência Nacional de Águas (ANA).
“A seca da Volta Grande é a morte de peixes, de plantas e da cultura dos povos canoeiros que vivem em sincronia com os fluxos de vazão do rio. A luta por mais água é crucial para impedir a tragédia anunciada para a Volta Grande do Xingu”, comenta Thais Mantonavelli, antropóloga do ISA e pesquisadora associada à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
No início de novembro, centenas de indígenas, ribeirinhos e agricultores protestaram contra a hidrelétrica e exigiram a liberação de água para a Volta Grande do Xingu. A vazão reduzida, associada a uma seca histórica, provocou mortandade de peixes, seca nos igarapés e impactos nas roças da região.
Em manifesto, as comunidades descrevem a situação como “catastrófica”: “centenas de famílias duramente impactadas pelo Covid-19 em sua segurança alimentar não apenas estão passando fome, mas perdendo completamente seus meios de subsistência”. (Para ler na íntegra clique aqui).
“Cinco anos após a licença de operação de Belo Monte, é preciso questionar os volumes de água que a empresa pretende liberar para a Volta Grande em contraponto à quantidade que pretende reter para fazer girar suas turbinas. O que estamos vendo é um verdadeiro roubo das águas do Xingu”, pondera Mantovanelli.
Quanto vale uma vida?
Logo após o barramento do Xingu, em 2016, 16 toneladas de peixes foram mortos e a empresa foi multada em R$27,3 milhões. Outras centenas vêm morrendo ao longo dos últimos cinco anos por conta da interrupção do fluxo migratório e da indisponibilidade de áreas de alimentação e desova. “Imagine quantos foram os peixes que deixaram de nascer”, questionou o cacique Gilliarde Juruna, da aldeia Mïratu, Terra Indígena Paquiçamba.
“Quanto vale a vida?” perguntou certa vez Dona Graça, moradora da região, enquanto alimentava as dezenas de tracajás que ela passou a criar em casa ao se negar a testemunhar silenciosamente o adoecimento e o desaparecimento desses animais devido à redução da vazão do rio Xingu. Assim como os peixes, como as Curimatás, os quelônios não conseguiram desenvolver seus ovos para a temporada reprodutiva, e muitos morreram.
Naquele ano, chamado pelos Juruna de “ano do fim do mundo”, a vazão foi de aproximadamente 10 mil m3/s, em contraposição com a média histórica anual de 23 mil m3/s para a época da cheia. Já os índices do chamado Hidrograma de Consenso, medida proposta pela empresa para reproduzir o fluxo de águas do Xingu, preveem vazões de 4 mil m3/s e 8 mil m3/s, alternadas ano a ano a partir do final de 2019, quando a última turbina da usina foi finalizada.
Preocupadas, as populações da Volta Grande reivindicam medidas para garantir a manutenção da vida no Xingu, entre elas a suspensão do Hidrograma de Consenso proposto pela empresa. No protesto realizado no início do mês, os manifestantes alertam que desde 2016 não há piracema, período de reprodução dos peixes, por conta da falta de água.
“Belo Monte e os impactos da usina querem nos matar aos poucos assim como estão fazendo com o rio e com os peixes. Os estudos do empreendedor são mentirosos. Nós somos os conhecedores e as conhecedoras. Nós estamos dizendo que o Hidrograma de Consenso não é suficiente para a vida, essa quantidade de água não gera a vida. Nossos conhecimentos precisam ser respeitados pelas autoridades. Estamos desamparados”, dizem em carta endereçada aos órgãos de licenciamento do empreendimento.
Guerra pela água
Em 2018, na iminência da implementação do Hidrograma de Consenso, os Juruna lançaram uma publicação com os resultados de quatro anos de monitoramento independente, realizado em parceria com o ISA e universidades públicas. No livro, eles comprovam que os volumes mínimos do Hidrograma não são capazes de assegurar as condições necessárias para manutenção e reprodução da vida na Volta Grande do Xingu e alertam para o risco de desaparecimento de espécies de plantas e animais, algumas delas endêmicas da região.
Em 2018, junto com a publicação, os Juruna lançaram um vídeo alertando para as consequências da implementação do Hidrograma de Consenso. Assista:
Os Juruna não estão sozinhos. Dezenas de pesquisadores e pesquisadores das mais variadas especialidades compõem o alerta pela defesa da vida no rio Xingu. Eles pedem a revisão do Hidrograma de Consenso e a elaboração de uma proposta que garanta a sustentabilidade da Volta Grande.
Os indígenas têm mostrado em suas pesquisas colaborativas e monitoramentos independentes que mesmo o volume de 14 mil m3/s de vazão, acima do proposto pela Norte Energia, não é capaz de proporcionar o alagamento das ilhas aluviais como a “Ilha do Zé Maria”, importante local de reprodução, alimentação e abrigo dos peixes.
“Não viemos monitorar nossa própria morte, nosso desaparecimento ou o desaparecimento do rio. Nosso monitoramento serve para muita coisa, serve principalmente para não aceitar o Hidrograma de Consenso”, conta Natanael Juruna, professor e pesquisador indígena em seminário na Universidade Federal do Pará em 2018.
“Esse cálculo foi chamado, no processo de licenciamento ambiental, de Hidrograma de Consenso, mas de consenso essa matemática não tem nada, melhor seria chamar de ‘Hidrograma de Conflito’. Trata-se de um esquema hidrológico que estipulou, sem a participação dos povos e comunidades tradicionais, os volumes mínimos de água a serem liberados para a Volta Grande, em contraste com a defesa de volumes máximos de aquisição de lucro com a geração de energia. É uma guerra por água”, aponta Carolina Reis, advogada do ISA.
Batalha judicial
Em setembro do ano passado, o MPF enviou recomendação ao Ibama pedindo a retificação da Licença de Operação da usina e a revisão do Hidrograma de Consenso. “No presente momento, há elementos mais do que suficientes para se supor que o que ficou conhecido como ‘Hidrograma de Consenso’ é um arranjo, que sustentou complexo esquema criminoso para viabilizar a construção da UHE Belo Monte, no interesse de um cartel de empreiteiras e de integrantes de partidos políticos na obtenção de vantagem indevida, com riscos ao meio ambiente e aos recursos federais aplicados”, diz o documento, elaborado com base em estudos de um painel de especialistas de diversas áreas. (Para ler na íntegra clique aqui).
No final daquele ano, em dezembro, o Ibama emitiu parecer técnico que concluiu ser impraticável a implantação do Hidrograma A, que prevê a vazão de 4 mil m3/s. Seguindo o princípio da precaução, o parecer recomendou que a partir de 2020 fosse aplicado um hidrograma provisório até que as informações complementares solicitadas à Norte Energia fossem apresentadas e avaliadas pelo o órgão licenciador. Essa é a recomendação que a empresa violou ao liberar um volume de água aquém do necessário no início do ano.
Em setembro, sem ter apresentado os estudos que pudessem comprovar a validade ecológica dos volumes propostos, a Norte Energia entrou com um mandado de segurança na Justiça contra o Ibama pedindo o retorno ao Hidrograma de Consenso original. A solicitação foi negada em decisão de primeira instância e a empresa recorreu.
Por meio de um parecer, o MPF pediu que a Justiça não acolha os recursos da empresa e reafirmou a necessidade de implementação de um hidrograma que respeite o princípio da precaução. “Não existe nenhuma garantia de que a fauna aquática e as florestas aluviais consigam resistir, nos curto e médio prazos, ao estresse hídrico proposto. Ou seja, um ecocídio poderá acontecer, diz o texto”. (Para ler na íntegra clique aqui).