Qual a relação necessária entre arte e política para a construção de uma nova sociedade, proposta da breve experiência socialista de 72 dias da Comuna de Paris? Foram muitos os artistas que se engajaram na Comuna de Paris – mais de 300, segundo pesquisas – que juntos formaram a Federação dos Artistas, cujo Manifesto exigia, entre outras coisas, o luxo comunal (ou a possibilidade de cada trabalhador se dedicar ao trabalho manual e às atividades intelectuais, já não mais se dividindo em duas classes sociais) e a reconfiguração total dos modos de produção e das relações sociais. Esse manifesto foi redigido por outro artista da Comuna, Eugène Pottier, autor d’A Internacional, escrita após o fim da Comuna e desde então canção reivindicada pelos revolucionários de todo o mundo.
Beatriz Calló, Daniela Embón, Fernanda Azevedo e Fernando Kinas, integrantes da Kiwi Companhia de Teatro/Coletivo Comum. Texto originalmente publicado no livro Comuna de Paris, Estado e direito, organizado por Carla Benitez Martins, Flávio Roberto Batista e Gustavo Seferian, lançado em 2021, em comemoração aos 150 anos do assalto ao céu.
Quando Marx em uma conhecida carta a Kugelmann,datada de 12 de abril de 1871, analisa os episódios da Comuna de Paris e usa a expressão “assalto ao céu”[1] (que depois seria empregada em outros contextos de insurreição, como no maio de 1968 francês), não se tratava ali de uma simples imagem poética ou de uma formulação retórica. O que Marx fez, à sua maneira e nos limites que a época permitia, foi assinalar um movimento inédito movido por uma força que ultrapassava as denominações convencionais da política. A Comuna foi um exemplo formidável de ação política autônoma dos trabalhadores e trabalhadoras, provavelmente o primeiro em que o protagonismo das classes subalternas do regime capitalista moderno aparecia deforma tão contundente. Foi também uma demonstração da criatividade e da inteligência coletivas diante da miséria e da exploração. Foi isso e muitas coisas mais, mas também foi além, foi “um assalto ao céu”.
A interpretação que propomos aqui, passados cento e cinquenta anos dos eventos, considera que diferentes dimensões da vontade humana convergiram em uma aventura até então desconhecida de libertação individual e coletiva no ambiente do capitalismo industrial, da nascente sociedade de consumo e do liberalismo burguês. Falar em convergência significa reconhecer que a dimensão estritamente política e econômica não é capaz, sozinha, de explicar estes eventos excepcionais de 1871.
Há na Comuna uma dimensão cultural (e em menor medida artística) que associada a outras práticas sociais, permitiu a emergência de um efêmero (os famosos 72 dias), mas grandioso, novo jeito de viver a vida. É isto que o ”assalto ao céu” significa para nós. A própria expressão escolhida por Marx é um pequeno exemplo dessa tarefa que as esquerdas ainda hoje largamente ignoram: precisamos de um vocabulário novo, para pensamentos novos, para modos de vida novos. Precisamos de ousadia criativa e de irreverência (não basta assaltar o Banco da França, não fazê-lo, aliás, foi um erro da Comuna, é preciso assaltar o céu!).
Diferente do que setores das esquerdas pensam, arte e cultura, na perspectiva adotada aqui, não servem para o conforto da alma ou para aliviar as tensões do cotidiano, fornecendo alguma beleza diante da brutalidade cotidiana. A arte e a cultura podem produzir o necessário incômodo que ajuda a fermentar as mudanças sociais. Arte e cultura, portanto, parafraseando Brecht, têm como função primordial o divertimento; mas o divertimento da nossa época está relacionado ao prazer da descoberta (e da invenção) do mundo, da análise da sua mecânica e das suas determinações e também da capacidade de transformá-lo. Marx soube compreender esta situação, suas inúmeras reflexões sobre o mundo do espírito - mas também seu apreço por Balzac, suas referências ao mundo cultural grego e latino e a Shakespeare -, mostram que não associar política, arte e cultura significa desconhecer ou desprezar a complexidade da experiência humana e social. Significa não dominar alguns dos instrumentos essenciais para a transformação radical da ordem do mundo.
É verdade que foram necessárias muitas décadas para que pensadores marxistas, como E. P. Thompson e Raymond Williams, formulassem concepções segundo as quais a ideologia (enquanto produção simbólica de significados e valores, e não simplesmente como ocultamento da realidade) também é uma força material, rompendo assim com traços mecanicistas do marxismo vulgar. Thompson dirá que “não só o socialismo, mas qualquer futuro feito pelos homens e mulheres não se baseia apenas na ‘ciência’, ou nas determinações da necessidade, mas também numa escolha de valores e nas lutas para tornar efetivas essas escolhas”.[2]
Já em Marx havia a sugestão de que as ideias se transformam em força material e não são mero reflexo da infraestrutura social. Nesse modo de conceber a vida social, não há lugar para a concepção reducionista que compreende a cultura como reflexo da economia. O pensamento sobre superestrutura e base material vem ganhando, portanto, novos contornos,abandonando esquemas deterministas do tipo estrutura determinante e superestrutura determinada.[3] Isso também é um assalto ao céu, pondo o mundo de cabeça para baixo. Ou seja, o céu é a terra, e a terra é o céu. Marx certamente percebeu que era o homem que criava deus na pintura de Michelângelo da Capela Sistina.
Assaltar o céu é reconhecer a possibilidade de instauração de um novo tempo (desafiando aquele de Cronos,que havia destronado o de Urano). Novo tempo que se materializa numa disposição ímpar para a transformação de praticamente todos os aspectos da vida em comum. Não por casualidade um novo calendário foi instituído durante a Revolução Francesa de 1789. Assim como também não é casual que revolucionários de 1830 tenham atirado contra os relógios dos monumentos parisienses, que representavam o tempo do trabalho alienado, instituído pela nascente racionalidade burguesa e pelo capital.
A quebra da lógica do Estado capitalista, seguindo os passos da reflexão feita por Marx no calor da hora, e a crítica global da razão liberal, são tarefas que só podem ser empreendidas com a conjugação de esforços múltiplos.Todas as experiências revolucionárias,sem exceção,enfrentaram enormes dificuldades para a superação da herança do modelo social precedente. Há um belo filme do cubano Tomás Gutiérrez Alea, de 1983, que se chama Hasta cierto punto. O título refere-se às mudanças radicais que se iniciaram com a revolução de 1959, entre elas as relações entre homens e mulheres, mas que avançaram somente até certo ponto. Imaginar que mudanças econômicas, não importa quão profundas sejam elas, como a abolição da propriedade privada dos meios de produção, resolvam num passe de mágica as conflitividades sociais e instaurem uma sociabilidade inteiramente nova, é uma ilusão que persiste no campo das esquerdas. Assaltar o céu é uma tentativa ousada, inovadora e abrangente de pôr o dedo nestas feridas, e só se consegue fazer isso reconhecendo e ativando a plasticidade humana, ou seja, mobilizando nossa capacidade de inventar e reinventar a existência em comum. Podemos chamar isso de imaginação política, e hoje ela nos faz falta.
A alteração substancial do conjunto da vida social,incluindo sua dimensão subjetiva, suas representações, hábitos e valores, não pode prescindir do campo da arte e da cultura. Equacionar a questão militar (assumindo, por exemplo, o risco da guerra civil); criar um sólido instrumento organizativo (partido político ou equivalente); romper com o ”poder dos padres”, garantindo o ensino laico e a separação entre estado e igreja; questionar as mistificações e o fundamentalismo; acabar com as ilusões patrióticas e a crença no nacionalismo burguês; reconhecer a importância do internacionalismo e fazer a crítica da empiria anticientífica, são desafios que exigem um novíssimo olhar sobre a humanidade e seu lugar no mundo. A arte e a cultura podem contribuir (talvez decisivamente) para o exercício da não repetição, para a interrupção do conhecido, para a aventura do novo. Trata-se então, sempre e ainda, de uma dialética entre as possibilidades engendradas pelas estruturas materiais e as representações capazes de recriar a vida; dialética entre os imperativos da necessidade e as aspirações utópicas transformadoras.
Os setores de direita e extrema-direita compreenderam essa intrincada dinâmica. O desenvolvimento da indústria cultural a partir da primeira metade do século 20 e mais recentemente das economias criativas, mostrou o quanto é decisivo dominar corações e mentes. E fabricar consensos, segundo a expressão de Noam Chomsky. Ou ainda, construir hegemonias, como diria Gramsci. A chamada guerra cultural atual é uma expressão dessa realidade. Um projeto socialista só merece este nome se defender e agir pela emancipação radical, questionando a exploração, a opressão, os controles burocráticos e a alienação; por isso ele é tão difícil de ser realizado. Não é possível antecipar as formas que essa emancipação tomará, nem garantir de antemão sua viabilidade, mas não nos resta outra escolha senão a aposta e a luta. Por isso é preciso fazer uma crítica global da sociabilidade reificada, da mercantilização da arte e da cultura, das transcendências mistificadoras. E também persistir na denúncia de desastres como o realismo socialista, doutrina oficial do stalinismo no campo artístico, que embotou as consciências com simplficações grosseiras, perseguições e exclusões de artistas, culto à personalidade, heroizações infantis e primarismo estético. Responder a estes desafios é o que chamamos de um verdadeiro “assalto ao céu”.
Durante a Comuna e neste século e meio, utilizando-a como inspiração, artistas e ativistas culturais se debruçaram sobre estas questões, amalgamando luta social e ação crítica no campo artístico-cultural.
2. Os artistas da Comuna
Há muitos antecedentes na história francesa que reúnem ativismo político e social e engajamento artístico-cultural. Sabemos como Baudelaire, que não viveu para participar da Comuna de 1871,envolveu-se na revolução de junho de 1848 e dos desenhos que fez do revolucionário Auguste Blanqui nos seus cadernos de notas. Antes dele, Daumier ficaria conhecido pela litografia do massacre da rua Transnonain em 1834. Também são bem conhecidas as caricaturas que zombavam dos poderosos. Mas além destas conexões imediatas, nunca deixou de existir uma relação profunda e de mão dupla entre estética e política, entre arte e intervenção social. O que não quer dizer que os artistas sempre estiveram ao lado das causas revolucionárias, ou que os lutadores políticos populares apoiaram incondicionalmente as inquietações formais e de conteúdo no campo das artes e da cultura. Longe disso!, infelizmente. As posições conservadoras de Gustave Flaubert e George Sand, por exemplo, são bem documentadas.
Mas vamos nos deter no outro campo. Em 4 de setembro de 1870, dois dias após a derrota da França para a Prússia na Batalha de Sedan, é proclamada a República Francesa. Com esse episódio e o cerco de Paris, houve a primeira tentativa de autoadministração de um grande número de artistas, que se mobilizaram como produtores autogestionários para a reorganização da Academia de Belas Artes, tirando de cena os antigos administradores imperiais. Apesar de ser composto por quase trezentos artistas,[1] quatro nomes se destacaram no círculo artístico republicano: Honoré Daumier, Philippe Burty, Eugène Pottier e Gustave Courbet.
Em uma assembleia no dia 6 de setembro de 1870, foi criada a Comissão das Artes, que tinha como objetivo supervisionar e proteger o patrimônio artístico nacional dos bombardeios prussianos.
A assembleia dos artistas decidiu por unanimidade que a administração temporária dos museus nacionais, tal como apareceu esta manhã no Journal Officiel [6 de setembro de 1870], não tem sua confiança; em consequência, ela propõe nomear um comitê central de inspeção e vigilância, a fim de proteger as obras de arte pertencentes à nação. Este comitê compreende os seguintes nomes: Courbet, presidente; pintores: Daumier,Veyrassat, Feyen-Perrin, Lansyer; escultores: Ottin, Veel, Geoffroy-Dechaume,Soitoux; gravurista: Bracquemond; Reiber, desenhista-ornamentalista; Moulin é nomeado como um substituto do Sr. Soitoux, de quem é amigo, o estado de saúde do último o força a descansar. Esta resolução será imediatamente levada a Jules Simon por Bracquemond, Courbet, Héreau.[5]
Courbet, o revolucionário de junho de 1848, é, portanto, eleito presidente da Comissão das Artes e passa a dirigir o trabalho de proteção no Louvre, Luxemburgo, Cluny e Gobelins, ele envia um grupo com o mesmo propósito a Versalhes, Sèvres, Saint-Germain e Fontainebleau.
Pioneiro do realismo francês,Gustave Courbet (1819-1877), autor da controversa obra A origem do mundo (1866),teve importante papel para trabalhadoras e trabalhadores da arte na Comuna de Paris. Próximo do anarquismo, as atividades políticas por ele realizadas durante a breve experiência socialista da Comuna evocam uma nova visão de arte e de sociedade.
Sua produção artística foi reconhecida já em 1844, quando foi aceito pela primeira vez no Salão de Paris, exposição anual organizada pela Academia de Belas Artes, com a obra Autorretrato com cão. Em 1848, o artista apresenta outras dez obras e, em 1849, o quadro Depois do jantar em Ornans é premiado. Seu trabalho chama a atenção, e provoca mesmo o escândalo, pela recusa de motivos mitológicos, históricos e religiosos (o padrão da época); ele prefere retratar pessoas simples e anônimas (como camponesas e trabalhadoras) e por apresentar cenas do cotidiano.
Declaradamente antimonárquico, suas atividades políticas começaram antes da Comuna de Paris,[6] influenciado, entre outros, pelo filósofo e ativista Pierre-Joseph Proudhon. Um de seus atos políticos foi a recusa em 1870 da Ordem Nacional da Legião de Honra – condecoração francesa, instituída em 1802 por Napoleão Bonaparte –, por se tratar de uma distinção com procedência monárquica, incompatível com seus princípios.
Como presidente da Comissão das Artes, Courbet escreve dois manifestos destinados aos combatentes: Ao exército alemão e Aos artistas alemães, que não obtiveram eco. O primeiro clama pelo desarmamento geral e o fim das fronteiras, enquanto o segundo propõe a fraternidade dos povos, representada por um monumento na Praça Vendôme, em que se possa ver a França e a Alemanha federadas. O conceito de federação estaria ligado aos escritos de Proudhon, que o associa às ideias de liberdade, república e socialismo. Além disso, na Praça Vendôme se erguia a coluna em homenagem ao Grande Exército de Napoleão Bonaparte, considerada um monumento à guerra. Courbet manifestou publicamente seu desejo de retirada da coluna da Praça e sua transferência para um museu.
A Comissão das Artes está na gênese da Federação dos Artistas, maior organização francesa da categoria na época, criada a pedido de Edouard Vaillant, eleito em março de 1871 pelo 20º distrito de Paris para o conselho da Comuna, delegado de educação e membro do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, a Primeira Internacional, fundada por iniciativa de Marx e Engels.
Durante a Comuna de Paris, Courbet para de pintar e se dedica inteiramente às tarefas dessa nova experiência político-social, a fim de retirar a arte e a cultura do habitual circuito de comercialização e torná-la acessível para todos. Ele foi eleito para o Conselho da Comuna, foi delegado da Instrução Pública, delegado na Prefeitura e presidente da Federação de Artistas que sucedeu à Comissão de Artes.
No começo de abril de1871, o pintor se junta ao compositor Jean-Baptiste Clément, autor de Le Temps des cerises, ao escritor Jules Vallès e ao professor Auguste Verdure em uma comissão dirigida por Édouard Vaillant, que decidiu pelo fechamento de todas as escolas religiosas, além de tirar das salas de aula os símbolos religiosos.[7]
No Journal Officiel do dia 6 de abril de 1871, menos de um mês depois do início da Comuna, é publicado um chamamento aos artistas de Paris, assinado por Courbet:
Hoje eu apelo aos artistas, eu apelo à sua inteligência, ao seu sentimento, ao seu conhecimento. Paris os alimentou como uma mãe e lhes deu seu gênio. Os artistas, neste momento, devem, com todos os seus esforços (uma dívida de honra), contribuir para a reconstituição do seu estado moral e para o restabelecimento das artes, que são a sua fortuna.[...][8]
A Comuna publica um decreto autorizando esta reunião, que se realiza em 13 de abril e cuja ata foi publicada no Journal Officiel dois dias depois:
Ontem, às duas horas, teve lugar no grande anfiteatro da Faculdade de Medicina, o encontro de artistas provocado pelo senhor Courbet, com autorização da Comuna. O salão estava completamente cheio e todas as artes amplamente representadas. Notamos entre os pintores os senhores Feyen-Perrin, Héreau; senhores Moulin e Delaplanche, entre os escultores; a caricatura enviou Bertall, a gravura, o Sr. Michelin, a crítica, o Sr. Philippe Burty. Muitos arquitetos e ornamentistas. Uma assembleia de mais de quatrocentas pessoas. Sr. Courbet preside, assistido pelos senhores Moulin e Pottier. Este último lê, sobretudo, um relatório elaborado por uma comissão preparatória e escrito por ele. Este documento muito interessante continha considerações realmente importantes sobre as necessidades e destinos da arte contemporânea. Confie apenas aos artistas a gestão de seus interesses. É essa ideia que parece dominar o espírito do relatório do subcomitê. O objetivo é criar uma Federação de Artistas de Paris, incluindo sob este título todos aqueles que expõem suas obras em Paris.[9]
Também nessa edição do jornal, foi publicado o Manifesto da Federação, redigido durante esta mesma reunião e elaborado pelo subcomitê chefiado por Eugène Pottier (autor d’A Internacional, escrita após o fim da Comuna e desde então canção reivindicada pelos revolucionários de todo o mundo), em que se defendia o fim da interferência do governo nas artes, declarando a liberdade de expressão.
Os princípios embutidos nas propostas previam não apenas a autonomia dos artistas, mas que a arte e a cultura fossem um direito de todos e todas, na contramão da visão restritiva e elitista predominante. Para Kristin Ross, autora do livro A Luxúria Comunal: O Imaginário Político da Comuna de Paris, a visão expressa no Manifesto:
abre não apenas uma reconfiguração completa da nossa relação com a arte, mas também com o trabalho, com as relações sociais, a natureza e o meio ambiente como um todo… Significa que a arte e a beleza, sem serem privatizadas, estão integradas totalmente ao cotidiano, e não escondidas em salões privados ou centralizadas em monumentos obscenamente nacionalistas.[10]
Voltaremos ao Manifesto mais adiante. Outra figura central, considerada hoje um símbolo feminista da Comuna de Paris, foi Louise Michel (1830-1905), que reuniu ativismo político, o trabalho de professora e uma pouco divulgada produção artística como poeta.
Combatente ativa nas barricadas da Comuna, após a semana sangrenta, Louise é presa e permanece no cárcere entre 1871 e 1880, a maior parte do tempo na prisão da longínqua colônia da Nova Caledônia. Como nos seus escritos anteriores à Comuna, os poemas e textos produzidos após 1871 são uma forma de engajamento prático, onde a vida política e o trabalho de educadora estão conectados. Da prisão Louise troca cartas com escritores, como Victor Hugo, e com militantes socialistas. Além do combate nas barricadas, do trabalho pedagógico e dos discursos políticos que proferiu, sua produção artística – hinos e poemas sobre a Comuna e a militância –, é a materialização estética dos conflitos políticos de quem viveu intensamente um período excepcional de revoltas populares.
A seguir citamos um trecho do poema Chant de mort à mes frères (Canto de morte a meus irmãos), de 4 de setembro de 1871. Nele há um lamento, mas também uma convocação para a continuidade da luta:
Retornaremos, multidão imensa;
Viremos por todas as estradas,
Espectros saem das trevas,
Nós viremos, de mãos cerradas,
Uns vestidos de brancas mortalhas,
Outros ainda sangrando,
Furos de bala em seus flancos,
Pálidos com nossas bandeiras vermelhas.[11]
Em novembro de 1871, depois de assistir à execução de companheiro(a)s, entre eles seu amante Théophile Ferré, e de se oferecer para executar Adolphe Thiers, Louise Michel escreve o poema Les Œilletsrouges (Os cravos vermelhos), uma declaração de amor e de luta, e também uma despedida ao amante (que nos faz pensar nas cartas, ao mesmo tempo pessoais e políticas, de outra revolucionária, Rosa Luxemburgo):
Retornaremos, multidão imensa;
Quando ao negro cemitério eu for,
Irmão, coloque sobre sua irmã,
Como uma última esperança,
Alguns 'cravos' rubros em flor.
Do Império nos últimos dias
Quando as pessoas acordavam,
Seus sorrisos eram rubros cravos
Nos dizendo que tudo renasceria.
Hoje, florescerão nas sombras
de negras e tristes prisões.
Vão e desabrochem junto ao preso sombrio
E lhe diga o quanto sinceramente o amamos.
Digam que, pelo tempo que é rápido,
Tudo pertence ao que está por vir
Que o dominador vil e pálido
Também pode morrer como o dominado[12]
3. Um manifesto para a Cultura
Apesar da maioria das fontes bibliográficas sobre as artes nos tempos da Comuna destacar o papel de Courbet, muitos outro(a)s artistas desenvolveram atividades importantes durante a Comuna, como Louise Michel, mencionada acima. Um deles é Eugène Pottier, autor do Manifesto para a Cultura, cujas ideias e atividades sobre questões de arte e educação artística estão menos documentadas do que as realizadas por Courbet, que, saliente-se, foi acusado por artistas e escritores conservadores "de ter usurpado funções públicas e ter excedido sua suposta esfera de competência ao participar dos debates políticos e discussões públicas da Comuna”.[13]
Enfim, pela palavra, pela caneta, pelo lápis, pela reprodução popular das obras-primas, pela imagem inteligente e moralizante que se pode difundir e exibir nas prefeituras das comunas mais humildes da França, o comitê concorrerá à nossa regeneração, à inauguração do luxo comunal e aos esplendores do futuro e à República universal.[14]
Assim termina o Manifesto redigido por Pottier. Enquanto o luxo burguês é a manifestação do poder dominante da burguesia, que se expressa através da apropriação de excedentes da produção, o luxo comunal pode ser entendido como a possibilidade de cada trabalhador se dedicar ao trabalho manual e às atividades intelectuais, já não mais se dividindo em duas classes sociais, diminuindo, assim, a divisão entre trabalho manual e trabalho artístico ou intelectual.[15] Instaurar a República universal (outro nome para uma sociedade que caminharia ao socialismo) necessitaria uma reconfiguração total dos modos de produção e das relações sociais. Defensor da educação politécnica, tanto manual quanto intelectual, Pottier e outros artesãos como ele reclamavam a necessidade de elevar o reconhecimento do trabalho artesanal ao do trabalho artístico. A base econômica da superação dessa divisão é compreendida na esfera social, mas teve sua vida tão efêmera quanto a própria Comuna de Paris.
A Federação tem sua sede no Louvre e, em 17 de abril, 290 artistas elegem por voto secreto um comitê (Comissão Federal), formado por 47 membros, responsáveis pela publicação do Officiel des Arts (periódico com informações para os artistas e o público em geral), organização de exposições (entre elas o Salão de Paris), conservação e administração dos museus e dos monumentos.
Outros aspectos relevantes são o fato de que a Federação não definiu critérios de julgamento de uma obra artística (recusando o cânone mercadológico de avaliação e priorizando o processo artístico) e propôs a valorização artística de edifícios públicos em todo o país, num esforço de democratização e expansão das artes, procurando integrá-las à vida cotidiana, indo além dos espaços convencionais destinados à sua apreciação.
No dia 16 de maio, a Coluna Vendôme, construída em 1806 a partir da fundição dos mil e duzentos canhões dos exércitos russo e austríaco por Napoleão Bonaparte, glorificando a vitória na Batalha de Austerlitz, foi destruída pelos communards,conforme decisão do Conselho da Comuna, a partir da proposta de Félix Pyat. A coluna foi considerada "um monumento da barbárie, um símbolo de força bruta e falsa glória, uma afirmação do militarismo, uma negação do direito internacional, um insulto permanente dos vencedores aosvencidos"[16]. Apesar de Courbet não ter sido o autor da proposta e tampouco ter estado presente na votação do Conselho (ainda não havia sido eleito), nem ter participado da derrubada da Coluna, ele foi considerado o responsável intelectual da destruição, devido a suas declarações anteriores.
No dia 21 de maio de1871, o exército francês invade Paris e inicia a chamada semana sangrenta, com bombardeios, incêndios, mortes e prisões que vão até 28 de maio, data que marca o fim da experiência socialista da Comuna de Paris. Courbet foi preso dia 7 de junho e o 3º Conselho de Guerra o condenou a seis meses de prisão.
Após a renúncia do General Thiers em 1872, o Marechal Mac-Mahon decide reconstruir a Coluna e o caso de Courbet foi reaberto, fazendo com que ele fosse responsabilizado pelos custos da nova obra. Sua propriedade e suas pinturas foram confiscadas e, impossibilitado de permanecer na França, o pintor se autoexila na Suíça em julho de 1873, onde permanece até 1877, ano de sua morte.
Não apenas a reconstrução da Coluna Vendôme, mas também a Catedral de Sacré-Coeur, construída na colina de Montmartre logo após a Comuna, não longe do lugar em que estavam os canhões mantidos pela Guarda Nacional, foram e ainda hoje são demonstrações do poder e da arrogância de classe da burguesia francesa.
Mais uma vez a reação bloqueou, de forma brutal, o caminho da inovação e da democratização no campo da arte e da cultura.
4. Brecht, Adamov e Watkins contam a Comuna
Entre os muitos artistas que se debruçaram sobre a experiência da Comuna, destacamos as obras de Bertolt Brecht, Arthur Adamov e Peter Watkins. São exemplos que reúnem inovação artística e compromisso com a transformação social. Comecemos pelo cineasta inglês Peter Watkins:
Hoje em dia, um diretor que recusa submeter-se à ideologia da cultura de massas, baseada no desprezo pelo público, que não quer adotar uma montagem frenética feita de estruturas narrativas simplistas, de violência, de ruído, de ações incessantes — em suma, que não aceita a forma única, ou o que eu chamo de “monoforma”, este diretor não pode filmar em condições decentes. É impossível.[17]
Em determinado período, suspeitou-se que Watkins, nascido em 1937, estava morto, dada a dificuldade que tinha para realizar seus projetos e o grau de marginalização a que suas produções foram submetidas pelos estúdios de cinema e pela mídia hegemônica. No entanto, sua produção iconoclasta, crítica, complexa e rebelde, o coloca entre os principais diretores das últimas décadas. Não por acaso ele decide, no final dos anos 1990, filmar a Comuna de Paris. O filme, abertamente político, convoca o coletivo e o comum, envolvendo cerca de duzentos atores e atrizes, quase todos amadores. Watkins não quer dirigir apenas mais um filme baseado em episódios históricos, ele propõe, a partir da experiência da Comuna, uma ampla reflexão sobre a memória, a organização e as ações do movimento popular e operário na Europa, mostrando seus vínculos com a situação e as lutas da atualidade. La Commune foi filmado em Montreuil (cidade do entorno de Paris), na sede da companhia teatral La Parole Errante, dirigida à época por Armand Gatti, numa parceria entre a 13 Production, uma produtora de Marselha, A Sétima Arte e o Museu d’Orsay.
O trânsito entre os fatos históricos e o presente, sob uma ótica social crítica e propositiva, é uma constante nas obras do cineasta. O jogo entre a realidade e a ficção, outra de suas marcas, permite ao autor debater, mesmo no contexto da Comuna de 1871, a mídia contemporânea, um dos seus temas de predileção, utilizando um expediente de distanciamento que não desagradaria a Brecht: ele transporta personagens dos dias atuais para o passado distante. Foi assim no seu primeiro filme, produzido pela BBC e também em La Commune. Neste caso, um casal de repórteres da TV Comunal é projetado no século 18. Para Watkins:
não há somente o passado, um passado congelado sem relação com o mundo contemporâneo […] por isto, eu embaralho e estabeleço relações. Falar de ontem é falar de hoje. É a mesma coisa com A Comuna. Às vezes a ideia que se tem do tempo é muito convencional”.
Durante as mais de cinco horas de duração do filme, o que por si só já desafia as imposições do mercado cinematográfico, A Comuna não investe na apresentação dos tradicionais conflitos interpessoais que caracterizam a dramaturgia burguesa (tanto no cinema como no teatro), antes, procura desvendar os mecanismos sociais, apresentando criticamente as forças políticas por detrás dos acontecimentos.
Após uma apresentação, feita pelos jornalistas da TV Comunal, que antecipa a história que veremos no filme e, assim, desmistifica as surradas estratégias baseadas no supense, a câmera passeia pelo cenário, que não esconde sua realidade de cenário. Estamos no 11º distrito de Paris, onde grande parte dos acontecimentos históricos se desenrolaram, mas também estamos no galpão de Montreuil, onde durante três semanas os trabalhos de filmagem tiveram lugar, e a realidade do processo de produção do filme está, assim, incluída na própria fatura da obra. O ator que representa o jornalista apresenta o filme nestes termos:
Este é o começo do mais recente filme de Peter Watkins, A Comuna, no qual homens, mulheres e crianças, mais de duzentos atores e atrizes não profissionais, vão evoluir, cada um e cada uma segundo sua própria atualidade, seu próprio passado e seu presente, segundo sua própria ficção.[18]
O grupo de atores é formado por moradores de Paris e da periferia da cidade, incluindo imigrantes argelinos, marroquinos e tunisianos “sans papiers”, isto é, sem documentos que permitiriam sua estadia legal no país. São estas pessoas comuns que darão vida ao principal personagem da história: o povo. Embora apresentando figuras individuais, com suas histórias pessoais, este não é um filme em que o espectador entrará em contato com grandes personagens históricas, como Louise Michel ou Jules Vallès. O filme se ocupa primordialmente em fazer a crônica do período, onde todos e todas estão metidos no calor revolucionário dos debates coletivos.
Este foi o espírito da Comuna, segundo o jornalista e testemunha Prosper-Olivier Lissagaray: “É precisamente a força desta revolução ter sido feita pela média e não por cérebros privilegiados.”[19] Assim, Watkins usa como metodologia para o filme, o mesmo processo que animou os comunards: a luta contra o esquecimento deve ser feita pelas figuras anônimas que adquirem força na medida em que formam um coletivo e atuam em comum.
A narrativa fragmentária, incompleta e às vezes imprevisível do roteiro, procura, mais do que dar voz aos esquecidos da história oficial, dar conta da tarefa de acessar a memória operária e remontar sua trajetória. Para isso, atores e atrizes eram divididos em grupos e debatiam longamente sobre determinados temas com os quais os comunards se depararam e como se refletem em suas vidas concretas, na atualidade. Foi assim que um grupo de mulheres atrizes se perguntou sobre o papel das mulheres nos processos revolucionários, na atualidade francesa e nos ensaios e filmagens da obra. Ou, num caffé cenográfico, o elenco conversa sobre a revolução e a sociedade contemporânea. Ou ainda atrizes para quem foram destinadas as personagens burguesas refletem sobre a dificuldade em representar estes papeis diante do massacre das classes populares de ontem e hoje. Tudo isso, numa dança interessante entre passado e presente, vira cena e discurso politico-estético. Inspirando-se em dispositivos propostos por Brecht, são usadas cartelas com textos explicativos que reúnem o passado e o presente das condições sociais e da luta popular na França:
No total, mais de sessenta cartelas que, como atrizes do filme, desempenham pelo menos três papeis diferentes. Em primeiro lugar, elas informam um acontecimento, uma data, um decreto. Em segundo lugar, elas desafiam o espectador a construir um sentido associando os diferentes textos que lê. Por fim, elas anunciam o que vai acontecer e não será mostrado, ou mais radicalmente, aquilo que não pode ser mostrado, por motivos éticos.[20]
Mostrar os mecanismos de fabricação da obra (seus processos técnicos, suas fontes e referências) significa, para o diretor, revelar os processos de apagamento e de inversão da verdade histórica, cujos grandes responsáveis em nossos tempos são a indústria cultural e a mídia hegemônica. Assim como Peter Weiss, em suas Teses sobre o Teatro Documentário (1967), Watkins reconhece na arte o potencial e a responsabilidade para mostrar o que está oculto, assumindo o papel de ferramenta para as lutas atuais.
E assim vemos como a história se repete, talvez como farsa. O preconceito contra os poloneses de ontem espelha o rechaço aos árabes de agora. A Marselhesa e O tempo das cerejas dialogam, no filme, com uma bela canção argelina contemporânea sobre o exílio forçado. Nós nos sentimos implicados e provocados por ela. Assim como este grupo de pessoas implica-se, após as filmagens, na distribuição e exibição do trabalho, ao criarem uma associação para ampliar a veiculação do filme e as reflexões a partir dele.
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Após quinze anos de exílio, metade deles fugindo de um país a outro numa Europa acossada por Hitler e metade deles nos Estados Unidos, Bertolt Brecht finalmente retornou ao velho continente, em 31 de outubro de 1947, um dia após depor no Senado norte-americano no contexto da caça às bruxas do macartismo. Depois de uma breve estadia em Paris e quase um ano na Suíça, Brecht finalmente se instala em Berlim Oriental. Sua produção dramatúrgica a partir do retorno (Brecht morreu em agosto de 1956) foi menos intensa que nos anos de exílio, especialmente durante o período finlandês, ainda assim ele se lançou em projetos de fôlego, como a redação em 1948/49 de uma peça sobre a Comuna de Paris. Para escrever Os dias da Comuna,[21] Brecht inspirou-se em diversas fontes, particularmente na peça A derrota, do norueguês Nordahl Grieg e no livro História da Comuna de 1871, de Prosper-Olivier Lissagaray.
Brecht apresenta nesta obra um panorama que vai de 22 de janeiro de 1871 até a derrota da Comuna, no final de maio deste mesmo ano. Sua opção foi alternar histórias de pessoas comuns (sic) com episódios envolvendo figuras históricas conhecidas, como Thiers, Jules Favre e Bismarck. O evento da Comuna, além do valor em si desta primeira grande experiência revolucionária do proletariado, permitiu a Brecht abordar questões da atualidade política de então, talvez por este motivo tenha cogitado inaugurar sua companhia teatral com esta peça. O projeto não prosperou em função da censura das autoridades da Alemanha oriental e da URSS. Uma peça sobre revolução, e num país ocupado por forças estrangeiras, era perigosa demais para a burocracia stalinista. O texto só chegou aos palcos após a morte do autor. Vivendo sob o regime de Stalin, Brecht foi ao mesmo tempo crítico e conivente com a repressão, o controle político-social e a censura da URSS e da Alemanha Oriental. Suas ambiguidades e contradições, que ficaram mais evidentes durante o levante operário de 1953, estão, de alguma maneira, presentes na peça Os dias da Comuna. A epígrafe deste artigo é um exemplo mais ou menos cifrado dessa desconfortável situação vivida por Brecht.
Em 1960, outro grande dramaturgo apresentou sua versão sobre a Comuna de Paris. Arthur Adamov escreveu, a partir de uma detalhada pesquisa documental, Le Printemps 71 (A Primavera 71). A obra, mais enfaticamente do que faz Brecht, propõe o trânsito entre a pequena e a grande história, justapondo os grandes episódios da Comuna com cenas da vida cotidiana, a partir de personagens fictícias. Como em Brecht, a peça não pretende ser apenas um retrato histórico fiel aos eventos (embora Adamov desse muita importância a este aspecto), mas tirar, a partir da leitura marxista, lições para a luta política e revolucionára em outros contextos (em Adamov há claras menções ao gaullismo). Na ocasião de uma montagem francesa, Adamov escreveu:
A Comuna é o evento, se não o mais prodigioso (17 de outubro, certamente!), pelo menos o mais precursor dos tempos modernos. [...] Mas este evento, quem pode, na França, vangloriar-se de realmente conhecê-lo? Sem dúvida, alguns historiadores e alguns militantes, aqueles que, todos os anos, caminham até o Muro dos Federados para saudar Varlin, Rigault, Ferré […] Para dizer a verdade, não sabemos nada sobre a Comuna, pela boa e simples razão de que a burguesia fez de tudo para que não se saiba nada. Seus manuais quase não a mencionam.[22]
Tanto Adamov quanto Brecht, abordam temas que não perderam sua atualidade, como o papel da imprensa (a Comuna não proibiu a imprensa de oposição), o uso da força revolucionária (pelo decreto 47, publicado em 5 de abril de1871, a Comuna poderia fazer refém toda pessoa suspeita de cumplicidade com o governo de Versalhes e para cada comunardo executado, três reféns seriam fuzilados) e a questão democrática (direito de circulação; ocupação do Banco da França; eleições livres etc.). Brecht investiga prioritariamente os mecanismos sociais, políticos, econômicos e culturais que permitiram a emergência e também levaram à derrota da Comuna, enquanto Adamov valoriza aspectos mais subjetivos (embora fatos históricos sejam apresentados de forma farsesca em cenas de transição, que ele chama de guignols), e celebra a luta do proletariado, destacando, mais do que seu homólogo alemão, a participação das mulheres. Em Adamov, A Comuna aparece encarnada em uma personagem feminina, inspirada nos retratos de Louise Michel.[23]
As obras de Brecht e Watkins, e em menor medida a de Adamov, apresentam uma característica decisiva para a compreensão das relações entre arte e política. A singularidade consiste, para além das escolhas temáticas, que colocam a classe trabalhadora e as camadas populares como protagonistas, no método utilizado, o materialismo histórico e dialético. Embora num contexto social em que o marxismo lutava para se afirmar, Hobsbawm sugere que algo similar ocorreu no mundo da pintura no século 19:
Os Impressionistas foram importantes não pelos motivos populares que retratavam – danças populares, visões das cidades e as cenas das ruas, teatros, corridas e bordeis da sociedade burguesa – mas por suas inovaçõesde método.[24]
O que estava em jogo neste caso era a ”representação da realidade”, que poderia confirmar o status quo, questioná-lo pela raíz ou apenas se conformar com uma crítica de superfície. Estas são possibilidades que ainda hoje balizam as complexas relações entre arte e política.
A barricada, dirá Eric Hazan, é também um dispositivo teatral, onde se encenam e também se afrontam diferentes visões de mundo. Michael Löwy considera que as fotos das revoluções possuem “uma poderosa carga utópica”.[25] Talvez possamos falar, nos exemplos analisados, em dispositivos teatrais utópicos. No final das contas, permanece atual o desejo expresso no Manifesto por uma arte revolucionária independente, escrito por Trotsky e Breton no final dos tumultuados anos 1930, ”o que queremos: a independência da arte - para a revolução; a revolução - para a liberação definitiva da arte.”[26]
Beatriz Calló, Daniela Embón, Fernanda Azevedo e Fernando Kinas, integrantes do Coletivo Comum, companhia teatral baseada em São Paulo. Este texto foi originalmente publicado no livro Comuna de Paris, Estado e Direito, Editora RTM, 2021
Notas
1. Karl Marx e Friedrich Engels, La commune de 1871, Paris,10/18, 1971, p. 129.
2. E. P. Thompson, A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 212.
3. Citamos, a título de exemplo, as seguintes obras: Marx eEngels, Cultura, arte e literatura - Textos escolhidos, São Paulo, Expressão Popular, 2012; Marx e Engels, Sobreliteratura e arte, São Paulo, Global, 1980; Raymond Williams, Cultura e Sociedade, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969; Raymond Williams, Cultura e materialismo, São Paulo, Unesp, 2011; Raymond Williams, Política do modernismo, SãoPaulo, Unesp, 2011; Terry Eagleton, A ideologia da estética, Riode Janeiro, Zahar, 1993; E. P. Thompson, Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional, São Paulo,Companhia das Letras, 2005; Terry Eagleton, A ideia de cultura, São Paulo, Unesp, 2005; Leandro Konder, Osmarxistas e a arte, São Paulo, Expressão Popular, 2013; Daniel Bensaïd, Espetáculo, fetichismo, ideologia, Fortaleza, Plebeu Gabinete de Leitura, 2013.
4. Cf. SÁNCHEZ (1997).
5. Idem, ibidem, p. 32 – notas do autor, tradução nossa.
6. Cf. FERRUA (2003) e TASLITZKY (1971).
7. Cf. ROSS (2016).
8. Journal Officiel de la République Française - édition du matin – nº96, 6 de abril de 1871, tradução nossa.
9. Idem. Nº 105, 15 de abril de 1871, tradução nossa.
10. ROSS, Kristin. Lujo comunal: El imaginário político de la Comuna deParís. Madrid: Akal, 2016.
11. Tradução de Carlos MoacirVedovato Junior, “Louise Michel: entre amusa e a metralha.” In https://www.revistas.usp.br/nonplus/article/view/99149. Acesso em: 10.01.2021.
12. Idem.
13. Kristin Ross, Lujo comunal: El imagináriopolítico de la Comuna de París. Madrid: Akal, 2016, p.58.
14. Journal Officiel de la République Française - édition du matin – nº 105, 15 deabril de 1871, tradução nossa.
15. Cf. Ross (2016).
16. Journal Officiel de la République Française - édition du matin – nº103, 13 de abril de 1871, tradução nossa.
17. Peter Watkins, in https://diplomatique.org.br/a-comuna-de-paris-chega-as-telas/, acesso em 8 jan. 2021.
18. Christian Milovanoff, in https://www.cairn.info/revue-la-pensee-de-midi-2000-3-page-128.htm#re2no2, acesso em 8 de jan. 2021.
19. Idem.
20. Idem.
21. Bertolt Brecht, Teatro completo 10, São Paulo, Paz e Terra, 1993.
22. Folheto sobre Le Printemps 71, para as apresentações no Théâtre Gérard Philipe, 14 AC 55(Arquivos municipais de Saint Denis).
23. Para uma comparaçãoentre as peças de Brecht e Adamov, ver o artigo de DanielMortier, Théâtre, Histoire et Politique: La Commune de Parisreprésenté parBrecht et par Adamov. In MORTIER e FERRÉ (orgs.), Littérature, Histoire et politique au XXe siècle : hommage à Jean-PierreMorel, Paris, Le Manuscrit, 2010.
24. Eric Hobsbawm, A era do capital. 1848-1875,SãoPaulo, Paz e Terra, 1988, p. 303.
25. Michel Löwy, Revoluções, São Paulo, Boitempo, 2009, p. 19.
26. Breton e Trotsky, ”Poruma arte revolucionaria independente.” In: FACIOLI, Vicente (org.). Breton & Trotsky, São Paulo, Paz e Terra/Cemap, 1985, p. 46.
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