Formados em nível de pós-graduação, indígenas produzem pesquisas a partir de suas próprias questões, crenças e seus costumes.
Keka Werneck, Amazônia Real, 9 de novembro de 2021.
Há 25 anos, a bakairi Darlene Yaminalo Taukane quebrou um paradigma. Foi a primeira mulher indígena a obter o título de mestre em Educação no Brasil. Aos 60 anos, ela está aposentada, realizada por sua trajetória e feliz ao ver que, hoje, há muitos professores indígenas com mestrado e doutorado. Darlene se alegra ao saber que alguns deles gerenciam escolas, outros podem resgatar a língua, que antes eram forçados a não falar. E muitos viraram ativistas do movimento indígena, engajados com a preservação do meio ambiente.
“O que percebi ao longo da minha caminhada como estudante é que a sociedade, as escolas e mesmo as universidades não têm preparo suficiente para ensinar com a interculturalidade dos povos originários”, analisa, em entrevista à Amazônia Real. Darlene lembra, em seu percurso acadêmico e no dos que vieram depois dela, que o indígena numa pós-graduação acaba aprendendo mais os saberes dos não indígenas do que conhecendo e valorizando seus próprios saberes.
Nessa crítica a esse ambiente hostil, a bakairi Darlene inclui a inexistência de intercâmbio de conhecimentos no ambiente universitário. “Mas a gente sobrevive e, mesmo assim, nós nos formamos. Por isso, é importante a pós-graduação, porque é onde os alunos indígenas vão buscar conhecimentos de seus povos, para repassá-los. Por muitos e muitos anos, outros contaram sobre nós, os indígenas, agora é a nossa vez.”
Assim como a educadora, cresce a cada dia o número de indígenas que assumiram o protagonismo como pesquisadores de suas próprias crenças e costumes, no ainda excludente mundo acadêmico. O Brasil é um dos três países com menor número de doutores no mundo, de acordo com o Relatório “Education at a Glance” de 2019, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A entidade aponta ainda que o acesso a mestrado no País é 16 vezes menor do que em países ricos. É dentro dessa já desigual estatística que os indígenas disputam as parcas vagas em cursos de pós-graduação das instituições de ensino superior.
No mestrado, Darlene estudou a história do ensino escolar de seu povo Kurâ Bakairi, desde a submissão ao Serviço Proteção aos Índios (SPI), por meio das missões norte-americanas, passando pela Fundação Nacional do Índio (Funai), até que professores da etnia conduzissem o processo. “Foi quando a educação escolar passou a ser ministrada na língua materna e a ter mais afetividade e acolhimento das dificuldades na alfabetização”, pontua.
Depois do mestrado na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a educadora virou referência e, como servidora da Funai, começou a dar aula nos programas de formação de professores indígenas em Mato Grosso, São Paulo, na Bahia e em outros estados. Darlene mora em Paranatinga (MT), cidade mais próxima da aldeia onde nasceu, a Pakuera. “A partir do estudo, a gente percebe como foi o processo de ser colonizado, entende desde a forma geográfica de localização de nossas casas, a distribuição de alimentos, a gente começa a entender a vida e a política de cada povo.”
Radialista e doutora
A radialista Naine Terena, de 41 anos, é doutora e já fez dois pós-doutorados. Ainda no mestrado, por atuar no teatro e querer conhecer o corpo indígena, ela decidiu pesquisar na Universidade de Brasília (UnB) a “dança da ema”, uma tradição em sua aldeia, a Limão Verde, em Aquidauana (MS). “Este é um animal sagrado para os terena e faz 13 movimentos coreográficos diferentes, mas não se trata apenas do animal em si, é o espírito, é mais amplo”, resume. Naine entrevistou tios e tias, demais parentes e anciãos, para realizar sua pesquisa.
No doutorado na PUC-SP, Naine fez uma pesquisa-ação sobre tecnologias audiovisuais nas escolas indígenas – Ensino Infantil e Fundamental. No pós-doutorado, fez ainda mais duas pesquisas também sobre tecnologias, na UFMT e na Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat). Ela rebate, de imediato, quando questionam se os indígenas podem ou não usar tecnologias.
“Poder ou não poder está dentro do campo dos estereótipos. Como somos colonizados, o indígena na verdade não pode nada. Sendo assim, tudo é uma conquista dia a dia, uma luta por respeito, incluindo o reconhecimento de sua intelectualidade”, afirma Naine. “Este é um 4º momento da história indígena, em que agenciamos nossas próprias ações, e sim utilizamos tecnologia, temos carro e somos indígenas da mesma forma.”
Ela é referência internacional como pesquisadora e já visitou como convidada três países para eventos e atividades de formação: Portugal, Suíça e Estados Unidos. Tanto Darlene quanto Naine constam na Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira, que possui mais de 220 mil verbetes.
Educação bilíngue
A iny – karajá/javaé Severiá Maria Idioriê, 59, tem uma história de vida peculiar. Nasceu em uma aldeia, da qual não sabe o nome, à beira do rio Araguaia. Aos 7 anos, foi embora para cidade com uma freira franciscana de São José dos Bandeirantes (GO), deixando para trás a mãe muito triste. Um ano depois, sua mãe faleceu na aldeia de sarampo e em seguida o pai também. Duas irmãs de Severiá ficaram com famílias evangélicas e três irmãos foram criados em abrigo. “Já eu (órfã), a mãe da freira me criou”, relata.
“Minha vontade sempre foi de estudar e voltar para a aldeia. Tentei Direito, mas não passei e optei por Letras, escrevia bem, lia bem. Aos 25 anos, casei com um xavante e fui fazer meu ‘mestrado’ (da vida real), primeiramente, no território Xavante de Pimentel Barbosa, em Canarana (MT)”, lembra Severiá. Naquela época, já se envolveu com educação, cultura e meio ambiente. Com a crescente formação acadêmica de indígenas e o aumento de representantes indígenas nos eventos referentes aos povos indígenas, ela decidiu ingressar no mestrado acadêmico na UFMT em Educação.
“De 2014 a 2016, estudei a importância da língua A’uwe/Xavante na formação de professores xavantes. Identifiquei, com a minha pesquisa, como é importante para o indígena ser bilíngue, para afirmar e valorizar nossa identidade. É por meio da língua que cada sociedade organiza sua visão de mundo com conhecimentos cosmológicos próprios. É ela que mostra como é esse indivíduo, seu mundo, e como ele se organiza coletivamente”, diz Severiá.
Em entrevista à Amazônia Real, ela destaca que a antiga política educacional para povos indígenas tinha como objetivo formá-los para o mercado de trabalho. “Após vários anos de luta, conseguimos assegurar na Constituição Federal de 1988 o direito a uma educação pensada e coordenada pelos povos indígenas, com autonomia para decidir métodos que fortaleçam e valorizem seus modos próprios de vida, além de projetos societários que possibilitem uma convivência com os não indígenas”, explica.
Severiá cita a Lei 11.645/2008, que estabelece diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e cultura afro-brasileira e indígena”. Porém, ainda não é devidamente cumprida. “Nós somos cidadãos brasileiros. Podemos contribuir com o desenvolvimento do país e as universidades devem se preparar melhor para nos receber, para receber quilombolas. Tudo isso melhora e diversifica a intelectualidade brasileira.”
Liderança carismática
Makaulaka Mehinako foi o terceiro xinguniano a obter o título de mestrado. Estudou, na UnB, a língua Imiehünaku (Mehinaku), de família linguística Aruak. Chegou a morar quase dois anos em Brasília, experimentando uma mudança de vida drástica. Depois do mestrado, voltou para a aldeia Kaupüna, no Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso, onde é professor da rede estadual de ensino, uma liderança carismática. A aldeia possui cerca de 300 indígenas.
“Apesar de somente nós falarmos a língua Aruak, ela não corre risco de extinção, é uma língua forte e representa nossa resistência”, diz Makaulala, que é casado e tem quatro filhos. Ele explica que os povos indígenas são muitos e cada um deles tem sua própria língua. Um xavante, por exemplo, não entende a língua Mehinaro e os Mehinaro não entendem outro idioma. “Não entendem nada mesmo”, reforça o professor.
Nascido e criado na aldeia, onde o modo de externar conhecimento é por meio da oralidade, Makaulaka aprendeu a ler e escrever a língua portuguesa somente aos 14 anos. “Nisso um professor reconheceu que eu tinha capacidade intelectual e foi me incentivando”. Valeu a pena e agora Makaulaka está trabalhando para publicar os verbetes da língua Aruak, pela primeira vez.
Pinturas corporais na academia
A jornalista Helena Indiara Ferreira Corezomaé é repórter da TVCA, afiliada da Rede Globo em Mato Grosso. Ela nasceu na aldeia Umutina, em Barra do Bugres, do povo também conhecido como Balatiponé. Como outros indígenas, Helena sentiu vontade de pesquisar sobre a própria cultura.
“Fiz mestrado em Antropologia Social na UFMT. Estudei as pinturas corporais do meu povo e identifiquei algumas feitas por nossos ancestrais e outras novas, por jovens. O trabalho de revitalização na comunidade se iniciou em 2000, antes disso muitos não tinham conhecimento sobre as pinturas e seus significados. Então, catalogá-las e mostrar os seus significados têm uma importância grande para meu povo”, explica.
Helena considera importante recontar a história de seus povos a partir da perspectiva dos próprios indígenas e acredita que eles não só podem estudar em universidades como estar em todos os espaços sociais. Ela defende as políticas afirmativas para abrir esse caminho, como a de sobrevagas. Se um curso tem 30 cadeiras, a instituição abre outras para o assento de alunos indígenas.
“São muito importantes. Hoje nós temos uma médica indígena, que é a Nalva Paresi, e ela se formou assim, a única indígena médica em Mato Grosso. A outra está para se formar também é uma indígena do Xingu que participou do Programa de Inclusão Indígena, o Proind, pela Universidade Federal em Rondonópolis. Temos um único indígena que é advogado, que também é do Xingu e ingressou na universidade por meio de ações afirmativas, pelo programa Proind, fez faculdade em Barra do Garças. Sou a única indígena jornalista em MT, também entrei na faculdade através da política de sobrevagas. Então a gente vê os alunos que participaram de ações afirmativas, em suas comunidades ou fora delas, sempre atuando em prol dos povos indígenas”, diz.
Seleção aprimorada
A Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt) celebra esse movimento de busca dos indígenas por mestrado e doutorado. “É superpositivo conciliar conhecimento tradicional, milenar, com o acadêmico. É mostrar também a riqueza desse conhecimento. Indígenas ocupando o seu lugar de fala, não apenas no lugar de investigado ou objeto de pesquisa. Se temos indígenas pesquisadores, todos obtêm benefícios, especialmente a academia pela pluralidade e diversidade que ela terá de fato”, avalia Eliana Xunakalo, assessora institucional da Fepoimt.
A coordenadora da Questão Indígena da UnB, Cláudia Renault, afirma que a instituição está buscando alternativas de gestão compartilhada junto aos estudantes, como a Resolução Cepe 44/2020, que define a forma de seleção de negros, indígenas e quilombolas.
“Uma seleção em que podem ser avaliadas com suas peculiaridades, como por exemplo a língua. Muitos falam melhor a nativa e na hora da entrevista isso pode se tornar uma barreira por estar dentro de uma universidade que antes não tinha esse olhar”, explica.
Renault cita que de 96 cursos de pós-graduação da UnB em 16 deles já há algum tipo de ação afirmativa pró-indígenas, como sobrevagas, favorecendo a entrada em cursos em que antes não se via diversidade. Ela cita a capacidade intelectual dos alunos como a doutora em Direito pela UnB Samara Pataxó, que se destacou, em setembro, fazendo a sustentação oral no STF, na causa do marco regulatório.
“Que estes mestres e doutores possam voltar para suas terras e defendê-las, assim como fez a Samara”. Ou então ganhar o mundo. “Temos estudantes que hoje trabalham na ONU, nas Nações Unidas, são jovens indígenas brasileiros.”
O coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Contexto Indígena Intercultural da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), Adailton Alves da Silva, entende que o protagonismo dos alunos indígenas como pesquisadores é fundamental, promovendo uma ciência que muitas vezes é negada pela academia.
“Isso cria uma rede de conhecimentos cada vez maior e a ciência brasileira ganha. O Brasil tem uma dívida muito grande com os povos indígenas. Abrindo as portas (das universidades), todos temos a ganhar com a diversidade de conhecimento e concepções sobre a relação do ser humano com o meio ambiente”, explica. A Unemat tem políticas afirmativas pró-indígenas (5% de cotas) em todos os cursos e mestrado específicos para os povos há 20 anos.