Carne, sim ou não? De razões econômicas, ambientais e de saúde à compaixão pelos animais, há décadas se acumulam os argumentos para que a população humana do planeta adote o vegetarianismo, ou até a forma mais rigorosa, o veganismo. Ou que pelo menos abra mão do bife de 500 gramas de cada dia.
Neil King entrevista Jana Rückert-John, Deutsche Welle, 17 de novembro de 2020
Por outro lado, desde a Pré-História os hábitos carnívoros estão associados a sucesso, prosperidade e potência. E há quem argumente que abandonar a carne significaria miséria e fome para toda uma parcela da humanidade envolvida na produção desse alimento. Jana Rückert-John é professora de Sociologia da Alimentação na Universidade de Ciências Aplicadas de Fulda, Alemanha. Em seu campo, ela vem estudando há anos como os humanos lidam com o que comem, e o que isso significa para a sociedade.
Em entrevista à DW, ela chama a atenção para o papel do gênero na dieta – oito em cada dez vegetarianos e veganos do mundo são mulheres, segundo estimativas – e as complexas ramificações das decisões alimentares individuais num mundo globalizado. Mas ressalta que a solução não é jogar toda a responsabilidade em cima do consumidor: "Acho problemático dizer: 'A nossa oferta simplesmente reflete as suas demandas.' Essa argumentação não vai muito longe, porque todos são constantemente bombardeados com uma ampla palheta de produtos."
Há muitas boas razões, sobretudo ambientais, para que se coma menos carne. Por que é tão difícil implementarmos isso, enquanto sociedade?
Porque a carne sempre esteve relacionada a prestígio. Historicamente, sempre foi associada a poder, força e potência, além de ser um alimento muito valioso, que segue tendo papel central em nossa dieta: todo o prato é arrumado em torno da carne.
A carne está profundamente arraigada em nossa história cultural. No passado, costumava só ser oferecida aos domingos; hoje está disponível qualquer hora, a preços irrisórios. Para muitos, especialmente em certos meios e entre uma certa idade, é muito central e importante comer carne. Nos churrascos, pode-se ver concretamente como lidamos com o fogo aberto, o qual também tem forte aliança com a masculinidade.
Como o componente masculino se manifesta?
Uma teoria diz que incorporar o animal morto confere força ao homem, é uma linha que vai até a Idade da Pedra. Achados arqueológicos levam à conclusão de que a caça era uma atividade primariamente masculina. Em parte essa mentalidade ainda se reflete hoje em dia na publicidade. Não é tão dominante nas crianças, mas começa já na puberdade, quando a masculinidade é, em parte, definida pelo consumo de carne.
Há outras diferenças entre os gêneros, em relação à carne?
As mulheres comem mais carne branca, por exemplo, porque frango é considerado mais saudável do que carne vermelha, a qual os homens tendem a preferir. As mulheres costumam gerir o corpo de modo diferente, também vão com mais frequência ao médico.
Isso explica por que a maioria dos vegetarianos são do sexo feminino?
Cerca de 80% dos veganos e vegetarianos são mulheres, o que é uma percentagem alta. As estatísticas mostram que a maioria é jovem e de nível educacional alto. Tendo dito isso, também há a parcela masculina. É interessante considerar os motivos para um estilo de vida vegetariano: tanto razões éticas quanto aspectos de saúde e meio ambiente têm um papel de destaque para as mulheres. Entre os homens, uma proporção significativa foca na saúde e boa forma física.
Muitos homens são desinteressados ou mesmo críticos em relação ao vegetarianismo. Alguns até se sentem ameaçados diante da sugestão de um dia da semana sem carne. Por que o assunto é tão emocional?
A nutrição é considerada um dos últimos bastiões da esfera privada, em que ninguém tem o direito de interferir, e isso culmina, por assim dizer, na carne, também vista como um indicador de prosperidade. Acho positivo estarmos presenciando um alarde tão grande, e que agora os carnívoros tenham que se justificar. O consumo de carne deixou de ser uma questão particular, devido a seu uso de recursos e impacto no meio ambiente – e tudo isso é à custa do Hemisfério Sul.
Carne é vendida "a preço de banana" nos supermercados alemães. Ela tem que ficar mais cara, por lei ou tributação, ou isso seria injusto com os de renda mais baixa?
É um debate difícil. Do ponto de vista sociológico, claro, tais medidas sempre geram desigualdade social. No entanto, considerando que as unidades familiares da Alemanha agora gastam uma média de 13% de sua renda com comida – nos anos 1950 ainda era cerca de 44% –, houve um declínio significativo nos gastos alimentares, em geral.
Isso também foi acompanhado por uma desvalorização da comida. Que valor ainda damos a ela, hoje? Mesmo em 2009, durante a crise financeira, realizaram-se enquetes entre as residências da Alemanha, perguntando onde ainda podiam economizar, e a alimentação estava sempre no topo da lista. Acho que devemos voltar a apreciar mais a comida, mesmo que signifique gastar mais.
Então, tudo está nas nossas mãos, os consumidores?
Por muito tempo os especialistas tentaram depositar toda a responsabilidade nos indivíduos. Acho problemático dizer: "Vocês, enquanto consumidores individuais, são responsáveis, porque são quem tem a cesta de compras. A oferta simplesmente reflete as suas demandas."
Essa linha de argumentação não vai muito longe, porque todo consumidor é constantemente bombardeado com uma ampla palheta de produtos. E se espera que o indivíduo seja resoluto e diga: "Não, não vou comprar isso, porque é ruim para o meio ambiente."
Não basta colocar tudo nas costas do indivíduo, da assim chamada prevenção comportamental. Acho que é muito mais importante abordar as estruturas de um ponto de vista sociológico.
Dito isso, também não quero absolver o indivíduo: devemos agir como consumidores responsáveis, sempre que possível. Mas precisamos de uma política de nutrição adequada, que promova os produtos certos, nos permitindo fazer as escolhas certas. Se isso é dificultado em vez de facilitado, na minha vida cotidiana, então alguma coisa está errada.