Seis meses atrás, o novo coronavírus iniciava uma catastrófica onda de infecções e mortes sobre a Amazônia. A pandemia global atingiu a todos, mas fez distinções entre países, regiões, classes sociais, cor e raça. O Brasil passou a figurar entre as nações mais afetadas. A região Norte lidera o ranking de mortes por 100 mil habitantes. E entre os povos indígenas, aldeados ou não, a mortalidade pela Covid-19 chega a ser 150% maior do que para o resto da população. Esta reportagem é um balanço de tudo o que deu errado e o que não foi feito para evitar a tragédia silenciosa ainda em curso no País.
Izabel Santos, Amazônia Real, 28 de setembro de 2020
“É muito difícil perder pessoas que você conhece a história e, de repente, vão embora assim. Mesmo passados seis meses eu não consigo falar sobre isso sem as memórias. Dói demais”, desabafa Valéria Paye. Indígena do povo Katxuyana, da Aldeia Missão Tiriyó, na região do Tumucumaque, no Amapá, ela é assessora política da Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira (Coiab) e está na linha de frente de captação de dados da Covid-19. O levantamento feito pela Coiab traz um retrato mais fiel da realidade da pandemia entre os povos tradicionais.
No último boletim da Coiab, de 25 de setembro, há 24.723 casos confirmados em 132 povos. Já morreram 661 indígenas de 98 etnias. O Amazonas, primeiro epicentro da doença no Brasil, tem o maior número de indígenas atingidos pela Covid-19: 5.781 pessoas confirmadas e 200 mortos. “Não é só mais um número, são pessoas que fizeram a diferença na caminhada do movimento indígena. Por isso que arrancamos força, não sei de onde, para fazer esse processo e contribuir para melhorar o atendimento em saúde no futuro”, diz Valéria.
Lideranças indígenas históricas, como Aritana Yawalapiti, Fernando Makari e Sergio Xexewa Wai Wai e Dionito Souza Macuxi, e anciões detentores dos saberes da floresta, como Cidaneri Xavante, foram vítimas da pandemia. “Eu me apego às boas lembranças e ao legado que essas pessoas deixaram quando passaram aqui para continuar com esse trabalho”, afirma Valéria Paye.
Desde que a pandemia da Covid-19 foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março, os povos indígenas da Amazônia brasileira trataram de buscar formas para se proteger. Os que puderam se refugiaram na mata, onde acreditavam que o vírus não chegaria. Recorreram a plantas tradicionais para aliviar os mal-estares da doença e curar de outras enfermidades. Criaram restrições de viagens, proibições de entradas de não-indígenas nos territórios e instalação de barreiras sanitárias para acesso às comunidades e aldeias. Mas, historicamente, lutavam contra outro inimigo, igualmente mortal: a precariedade de atenção à saúde. Tristes lembranças da contaminação por outras doenças, como sarampo e varíola, que dizimaram populações no passado, voltaram à tona.
O primeiro caso de Covid-19 na Amazônia aconteceu em 19 março em Alter do Chão, no município de Santarém, no Pará. Dona Lusia dos Santos Lobato, de 87 anos, era uma liderança indígena do povo Borari, muito respeitada na Amazônia. A sua morte chocou os moradores da região paraense. Como ela não morava em aldeia, mas na cidade, o caso foi tratado como sendo o de uma pessoa não-indígena.
A situação dos indígenas em contexto urbano, aqueles que vivem nas cidades e fora das terras indígenas homologadas pela Funai, é preocupante. Eles não têm atendimento de saúde diferenciado e, se não puderem dispor de um plano de saúde, entram na fila do SUS como não-indígenas. O problema nesse atendimento é a diferenciação cultural.
“Os moradores aqui da comunidade têm vergonha de ir ao hospital, à UBS. Eles dizem ‘ninguém lá me entende, ninguém me escuta’, porque temos a nossa cultura, a nossa maneira de falar. Às vezes, a pessoa não entende o que a gente fala”, relata Aguinilson Tikuna, liderança e morador da comunidade Tikuna Wotchimaücü, localizada em Manaus. No início da pandemia, essa comunidade perdeu o seu vice-cacique Aldenor Tikuna. Ele morreu a caminho do hospital e seu corpo esperou por horas até ser recolhido pelo SOS Funeral.
“Após a morte do Aldenor, recebemos visitas, atendimento e formação. Mas precisamos de acompanhamento. Aqui não temos nenhum agente de saúde indígena contratado pela prefeitura ou por alguma ONG, e essa é uma necessidade de todas as comunidades indígenas em Manaus”, protesta Aguinilson.
Em 5 de maio, durante o auge da pandemia em Manaus, o então ministro da Saúde, Nelson Teich, visitou a capital amazonense e foi recebido com protestos de Vanda Ortega, enfermeira do povo Witoto, e outras duas mulheres. Vanda mora no Parque das Tribos, uma comunidade indígena urbana da zona oeste de Manaus, onde vivem cerca de 5 mil pessoas, entre as quais indígenas de 30 etnias. O local de difícil acesso ofereceu facilidades para a chegada da Covid-19. Os indígenas vivem sem infraestrutura, como água encanada e energia elétrica. No bairro, só há uma rua asfaltada.
Depois do protesto de Vanda, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) entrou em acordo com a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam) e disponibilizou cerca de 50 leitos exclusivamente para indígenas no Hospital Nilton Lins. A Prefeitura de Manaus deslocou uma UBS móvel para o Parque das Tribos. E, a partir daquele momento, os indígenas puderam ser atendidos no hospital de campanha, sem a necessidade de encaminhamento. Mas a UBS móvel permaneceu apenas nos meses de abril e maio.
“As pessoas que adoecem precisam ir lá fora [da comunidade] buscar atendimento. Não temos um diálogo para a consolidação de uma UBS dentro da comunidade. Nossas ruas continuam esburacadas, não temos água encanada, mas há uma promessa de que em 50 dias teremos água na torneira. Também não temos luz elétrica para toda a comunidade e ainda não ouvi nenhum compromisso em relação a isso. Então pouca coisa mudou para nós até agora”, diz Vanda.
A comunidade Wotchimaücü reivindica uma “casinha de saúde indígena” nos moldes de uma UBS, mas permanente e que respeite as práticas culturais indígenas e com colaboradores indígenas. “As universidades e as ONGs têm informação para isso e tem muito indígena formado para trabalhar, médicos, advogados, psicólogos, enfermeiros. São eles que podem trabalhar da saúde indígena”, sugere Aguinilson.
Desde 2005, já morreram 12 pessoas na comunidade Wotchimaücü, entre elas uma criança com rotavírus e outra em decorrência de um abscesso na mão. “Por que isso acontece na nossa comunidade se estamos inseridos na capital onde tem hospitais como o 28 de agosto, João Lúcio, Delphina Aziz, Platão Araújo, e outros tipos de pronto-socorro? Nenhum prioriza o atendimento ao indígena, que fica na fila e passa por toda uma questão burocrática”, diz a liderança Tikuna.
As dificuldades enfrentadas pelos indígenas que vivem no contexto urbano foram apenas um indicativo do drama enfrentado pelos povos aldeados. Para lideranças ouvidas pela reportagem da Amazônia Real, a pandemia avançou rapidamente entre os povos indígenas porque não houve uma estratégia de prevenção por parte da Sesai, e nem a escuta das organizações na elaboração do plano de enfrentamento à doença.
“A gestão da Sesai, que hoje é feita por um militar [Robson Silva], deixou [a assistência] muito à mercê dos próprios povos indígenas. Não deu prioridade para a elaboração de um plano emergencial, um plano de atendimento dos povos indígenas na Amazônia, de acordo com a sua realidade, sua logística. Demorou muito. E não nos chamou para fazer esse plano. Então o atendimento chegou tarde”, critica o vice-coordenador da Coiab, Mário Nicácio.
A Sesai está ligada ao Ministério da Saúde e nasceu como fruto da luta do movimento indígena. Criada pela Lei nº 12.314/2010, ela herdou atribuições da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Faz parte de um subsistema do Sistema Único de Saúde (SUS), responsável por gerir os 34 Distritos Sanitários de Saúde Indígena (Dsei) espalhados pelo Brasil. São nos Dseis que ocorre a assistência em saúde para os mais 800 mil brasileiros registrados como indígenas, de mais de 300 etnias identificadas no território nacional, e que vivem em terras homologadas. A secretaria exclui do seu atendimento os indígenas que moram em áreas urbanas e que não são considerados “aldeados” pela lei.
“A pandemia chegou para escancarar essa situação [precária], a falta de estrutura do subsistema [a Sesai] que nunca se organizou para dar um atendimento diferenciado aos povos indígenas”, acrescenta Valéria Paye, assessora da Coiab. “Há quase 20 anos existindo, de fato, nunca incorporou as especificidades dos povos indígenas. O subsistema é engessado e não permite a adequação para um atendimento melhor.”
É nesse contexto precário que a pandemia se disseminou entre os indígenas. Os povos mais afetados são os Xavante, no Mato Grosso, e os Kokama, no Amazonas. Até o dia 21 de setembro, morreram 74 pessoas entre os Xavante e 57 entre os Kokama. O número de óbitos por 100 mil habitantes entre os indígenas também é elevado.
De acordo com o estudo “Não são números, são vidas!”, publicado em 22 de junho e realizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e a Coiab, a mortalidade entre os indígenas era 150% mais alta do que a média nacional, e 20% mais alta do que a registrada na região Norte, a mais elevada entre as cinco regiões do país. A taxa de letalidade, que é número de óbitos pelo número de casos confirmados, também é maior que a média brasileira: entre os indígenas ela é de 6,8%, enquanto entre os não indígenas é 5,0% e na região Norte, 4,5%.
Para a Coiab, não há dúvidas: a doença chegou nas aldeias por negligência da Sesai que não se preocupou em testar indígenas que voltavam para as comunidades após tratamento de saúde na cidade nas Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) e, tampouco, profissionais de saúde que iam prestar atendimento nas aldeias.
“As Casais foram os centros de disseminação da doença [Covid-19]. As pessoas que estavam nas Casais, em tratamento de outras doenças, eles [os servidores das Casais] não tiveram o cuidado de mandar os parentes fazerem todos os testes para retornar [às comunidades]. Como também muitos profissionais não fizeram exames para entrar nos territórios indígenas para fazer atendimentos. Na Amazônia, a gente não tem nenhuma dificuldade de falar isso”, diz Valéria Paye.
As Casais são locais de atendimento e acompanhamento com equipes multidisciplinares de saúde indígena, que ficam localizadas em municípios de referência dos Dseis. Nesses locais, os indígenas que moram nas aldeias e precisam se deslocar para a cidade em busca de atendimento de alta complexidade recebem alojamento, alimentação, marcação de consultas, exames e internações hospitalares. Normalmente, os pacientes vão para o local na companhia de parentes ou acompanhantes. Após o tratamento, retornam ao local de origem.
“Não houve o cuidado de fazer exames nas altas de parentes que saíram de dentro desses espaços. Não houve um cuidado para fazer o retorno dessas pessoas”, enfatiza Valéria. “A Casai de Manaus foi um grande centro que espalhou a doença, já que é um espaço que recebe pessoas do Amazonas e de Roraima”, acrescenta a assessora política da Coiab. No início da pandemia, a agência Amazônia Real revelava a negligência nesse atendimento.
O primeiro caso oficial de contágio do novo coronavírus entre indígenas no Brasil foi registrado em uma aldeia do município de Santo Antônio do Içá, no Amazonas, distante 878 quilômetros de Manaus em linha reta, em 1º de abril. A doença chegou ao local, acessível apenas por barco ou avião, levada por um médico do Dsei Alto Solimões em 18 de março. O profissional havia chegado de viagem da região Sul do país e, sem apresentar sintomas, não foi testado e nem ficou em quarentena antes de entrar na Terra Indígena Lago Grande onde realizou atendimentos a indígenas.
Uma agente indígena de saúde da etnia Kokama, de 20 anos, que teve contato com o médico testou positivo após apresentar tosse seca. Na ocasião, ela e outras 26 pessoas ficaram sob monitoramento durante 14 dias.
“Para o nosso desespero, isso aconteceu em vários lugares. No Vale do Javari, foi um, que apesar de ter um coordenador indígena, a orientação [de testar todo mundo antes de entrar na terra indígena] não era essa, aí a doença entrou e quem que levou a doença, não é?”, lembra Valéria. “Estamos falando de locais de difícil acesso, onde só se chega de avião.”
Na prática, as medidas de auto-isolamento adotadas pelas comunidades, até mesmo de se refugiar nas matas, apenas adiou a proliferação do novo coronavírus. “Infelizmente a gente se deparou com essa situação que parecia, ou parece, que a intenção é que, de fato, a doença chegue às comunidades e que contamine. É uma verdadeira política de genocídio”, resume Valéria Paye.