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Como as redes sociais alteram a disputa política

13 de setembro de 2024

Se Bolsonaro e outros líderes da extrema direita aprenderam, progressivamente, a se apropriar das redes para suas lutas ideológicas, Marçal encontra nas redes seu habitat natural, pois é um filhote desse ambiente.

 

Matheus Silveira de Souza, para o Le Monde Diplomatique

 

Se política e conflito são elementos que, com frequência, caminham juntos, fazer política com primazia é impor que o adversário desenvolva o conflito em um campo alheio, ou seja, pautar o movimento do oponente e “criar um campo específico dentro do qual o adversário é obrigado a se mover”[1]. Essa afirmação poderia ser compreendida, em 2018, como a capacidade do bolsonarismo de pautar os temas da agenda pública, entretanto, o aprofundamento da sociabilidade digital dá outro sentido para essa reflexão.

As redes sociais se transformaram na Ágora do século XXI, a esfera onde ocorre o debate público e político, de modo que a esquerda está determinada, a princípio, a disputar esse jogo em um campo que lhe é desfavorável. Não é necessário, a cada disputa, trazer o adversário para o seu campo, considerando o consenso de que as redes viraram a esfera pública da qual irão emergir os temas que pautam o debate.

Como já sabemos, as redes sociais não são uma forma de mediar conteúdo, mas elas determinam, pelo algoritmo, os próprios conteúdos que terão ou não alcance e, por consequência, quais informações devem ser produzidas caso alguém queira engajamento e atenção. Um candidato à prefeitura até pode fazer um vídeo explicando os detalhes da sua proposta de educação para a cidade, mas o algoritmo garantirá que esse conteúdo tenha um centésimo da repercussão de um corte em que o candidato ataca o oponente.

Neste ponto, vale não cairmos no fetichismo da tecnologia e nos lembrarmos que o algoritmo é programado e reprogramado por um trabalhador que, no fim das contas, obedece às diretrizes de algum bilionário do Vale do Silício. Vamos insistir no óbvio: as redes sociais não são neutras, mas moldam subjetividades, induzem emoções e criam sociabilidades determinadas por uma dúzia de indivíduos donos de monopólios de tecnologia. O termo empresas-plataformas nos ajuda a compreender que essas redes sociais são, em verdade, empresas detentoras de monopólios e responsáveis pelo controle de infraestruturas digitais.

A síntese desse fenômeno, em termos de comunicação, é a conhecida frase de que “o meio é a mensagem”. Como afirmou Bruna Della Torre em recente artigo, não temos redes sociais em situações políticas, mas situações políticas em redes sociais[2]. O alto grau de determinação das disputas políticas e eleitorais pela lógica das redes sociais faz com que pensemos não as redes sociais em um contexto político, mas em um contexto político em redes sociais.

 

Política é comunicação

É possível entender as mudanças ocorridas nas disputas políticas a partir das transformações efetuadas nos meios de comunicação ao longo do último século. O rádio como meio de comunicação em massa foi fundamental para a disseminação da ideologia fascista na Itália do século passado, acompanhado da popularização de aparelhos radiofônicos em milhares de casas. O cinema – e o próprio rádio – teve um papel fundamental para a consolidação do regime nazista. A indústria cultural norte americana é um ótimo exemplo para visualizarmos a cultura e a comunicação como formas de criação de consenso.

Podemos argumentar que os aparelhos ideológicos mudaram ao longo dos anos, e o papel que antes era desempenhado pelo rádio, pelo cinema e pela televisão, hoje é ocupado pelas redes sociais e demais plataformas. Embora essa afirmação seja verdadeira, nosso argumento pretende chegar a outra conclusão. A revolução nos meios de comunicação cria profundas transformações nas formas de se fazer política. Em outras palavras, não é apenas o surgimento de novos tipos de aparelhos ideológicos, mas a transformação da própria forma de realizar a disputa política e de quais caminhos são mais efetivos para fazê-la. O papel da Cambridge Analytica na eleição de Donald Trump em 2016, utilizando dados de milhões de pessoas para criar propagandas políticas segmentadas para grupos de eleitores específicos, ou ainda, a vitória de Bolsonaro em 2018, mesmo contando com apenas 8 segundos de horário eleitoral na TV e no rádio, são exemplos eloquentes dessas transformações.

Roberto Schwarz analisa Memórias póstumas de Brás Cubas e argumenta que a forma utilizada por Machado de Assis explicita o próprio conteúdo do romance[3], ou seja, parte central do conteúdo está guardado na própria forma como o autor o desenvolve. Pois bem, as redes sociais impõem uma determinada forma a partir da qual podemos nos comunicar que, em última medida, determina o próprio conteúdo da nossa comunicação.

 

Economia da atenção: cortes, memes e outras formas de se comunicar

Qual foi a última vez, caro leitor, que você assistiu um filme nas plataformas de streaming sem pausá-lo para mexer no celular? Quantas vezes, no último ano, você parou um texto curto no meio ou não conseguiu terminar de assistir um vídeo de 5 minutos no Youtube, pois, aparentemente, há algo mais urgente – e mais curto – para ser visto? Se um corte de 15 segundos me garantirá uma boa dose de dopamina, não há por que perder tempo com vídeos longos ou textos extensos.

A atenção virou um recurso escasso em nossos tempos. Nunca tivemos tanta informação disponível e, ao mesmo tempo, nossa atenção nunca esteve tão dispersa. As empresas-plataformas possuem técnicas sofisticadas para capturar nossa atenção, extrair nossos dados e monetizá-los. O objetivo das redes sociais é nos manter engajados pelo máximo de tempo em seus conteúdos, dispondo, para tanto, de um detalhado mapa de nossas preferências.

Novas formas de comunicação como cortes e memes são uma síntese da nossa época de atenção fragmentada. A monótona estabilidade do mundo fordista, em que um indivíduo passava a vida toda no mesmo emprego, parece não combinar com a hiper aceleração da sociedade subordinada às plataformas digitais. Talvez não seja uma coincidência que a instabilidade laboral do neoliberalismo – em que o sujeito-empresa deve investir a todo momento em novas qualificações e buscar novas oportunidades de empreender – combine tão bem com a sociabilidade criada pelas empresas-plataformas.

A ascensão meteórica de Pablo Marçal na disputa pela prefeitura de São Paulo não pode ser explicada ignorando as determinações das redes sociais na formatação do debate público e a imposição da lógica da economia da atenção em nossas interações sociais. Se Bolsonaro e outros líderes da extrema direita aprenderam, progressivamente, a se apropriar das redes para suas lutas ideológicas, Marçal encontra nas redes seu habitat natural, pois é um filhote desse ambiente. A própria tática de criar competições com prêmios em dinheiro para que milhares de pessoas criem e divulguem cortes com suas falas é algo que Marçal copiou de Andrew Tate, influenciador, ícone de movimentos masculinistas e preso por tráfico humano e exploração sexual de mulheres. Em 2022, após ter criado esse sistema de cortes, Tate foi o nome mais pesquisado no Google no mundo todo.[4]

O discurso de Marçal é uma mistura de elementos do mundo coach, fundamentalismo religioso, antissistema e empreendedorismo. Como sabemos, Marçal não é o responsável pelo sucesso desse tipo de discurso, mas é apenas o efeito colateral de um fenômeno mais amplo, ou seja, seu discurso só tem eco porque encontra um terreno fértil cultivado por décadas de hegemonia neoliberal. É evidente que esses problemas possuem como raiz comum elementos do capitalismo e que não é a primeira vez que surgem personagens grotescos e eloquentes na cena política. Entretanto, seria um equívoco ignorarmos as transformações realizadas pelas redes e plataformas digitais que impõe novas dinâmicas às disputas que ocorrem em nosso sistema social.

Originalmente postado em: https://diplomatique.org.br/como-as-redes-sociais-alteram-a-disputa-politica/

Matheus Silveira de Souza é mestre em Direito pela USP e doutorando em Sociologia pela Unicamp. É militante da Insurgência, em São Paulo.

 

[1] OLIVEIRA, Francisco de. Política numa era de indeterminação: opacidade e reencantamento. In: OLIVEIRA, F. de; RIZEK, C. (org.). A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007.

[2] DELLA TORRE, Bruna. Tecno-Apocalipse: teses para a Era das Redes Sociais, Blog da Boitempo, 2024.

[3] SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2000.

[4] ICL Notícias. Disponível em: https://iclnoticias.com.br/joao-cezar-relacao-pablo-marcal-e-andrew-tate/