O setor turístico tem importância relevante contando com milhares de trabalhadores(as) em seus diferentes seguimentos – alojamento, alimentação, cultura e lazer, transporte e agência de viagens. Entretanto, boa parte dos empregos gerados no setor se caracteriza pela precariedade, considerando a baixa remuneração, a pouca qualificação, as elevadas jornadas de trabalho e a alta rotatividade1.
Nas últimas três décadas o setor passa a incorporar novos modelos de negócios digitais alterando a forma como as empresas se relacionam com os(as) turistas e como estes(as) vivenciam suas viagens. Os meios digitais acompanham os(as) turistas nas três fases da viagem: antes, com a procura de informações sobre os destinos e sua posterior compra a partir de plataformas digitais; durante, com o aumento da conectividade nos destinos turísticos via, por exemplo, a Internet das Coisas (IoT-T); e, depois da viagem, com o compartilhamento das experiências, avaliações e sugestões em redes sociais e nas plataformas das empresas2.
Para as empresas do setor de turismo, o principal benefício da Internet das Coisas é o acesso às informações dos(as) viajantes que, a partir da construção de um grande banco de dados, criam perfis que sistematizam gostos, preferências e padrões de consumo, permitindo ao destino desenvolver ofertas orientadas a esses(as) clientes. Para os(as) turistas, se por um lado o mecanismo de captação de dados pode facilitar o acesso ao que está sendo oferecido, por outro, pode limitar suas experiências e escolhas aos eventos e serviços que as empresas julguem estar de acordo com o perfis criados pelos algoritmos, além de colocar em risco a privacidade dos seus dados e de serem bombardeados(as) com informações e notificações ao longo de todas as fases da viagem.
Além dessas inovações, desde meados dos anos 2000, são criadas diversas plataformas digitais que levam o mercado laboral do setor a passar por uma nova onda de precarização, não apenas em função da entrada de plataformas de trabalho por demanda, específicas do setor, mas, também, de plataformas de trabalho de outros setores (como de entregas), assim como das plataformas da chamada economia de compartilhamento e de intermediação3.
No que se refere às plataformas de intermediação (como Expedia, Booking, Decolar, Trivago, Hoteis.com, Tripadvisor, e Rappi Travel), nelas os(as) turistas fazem todo o trabalho anteriormente realizadas pelos.as trabalhadores.as nas agências de viagens: reservar bilhetes de avião, hotéis, alugar carros, comprar pacotes de viagem, além de qualificar suas experiências com esses serviços. Como consequência, há uma redução do número de agências de turismo, gerando desemprego em diversas localidades.
As plataformas da economia de compartilhamento que funcionam a partir de trocas monetárias no setor de hospedagem (como Airbnb, Niumba, TripAdvisor e Booking.com) estão se expandindo rapidamente por todo o mundo e abrindo concorrência desleal, sobretudo, com os médios e pequenos estabelecimentos, devido aos melhores preços ofertados. Como consequência há o fechamento deste tipo de estabelecimento e uma redução do faturamento do setor hoteleiro em geral, pois muitos estabelecimentos buscam reduzir ao máximo suas tarifas para tentar competir com essas plataformas. Diante deste cenário, o Fórum Econômico Mundial de 2018 estimou que a redução na demanda poderia diminuir o crescimento global de empregos no setor hoteleiro de 4,3% para 3,0%, o que equivale a 1 milhão de empregos a menos em todo o mundo até 20254.
As plataformas de trabalho por demanda também estão afetando o mercado de trabalho do setor de forma negativa. Dentre aquelas que impactam diretamente o setor de hoteleiro, há plataformas como a Brigad (https://www.brigad.co/) que atua em alguns países da Europa, oferecendo trabalho de recepção, cozinha, governança, serviço de quarto, entre outros. Como em outros setores, é a plataforma que define os(as) trabalhadores(as) que farão parte da “equipe” e os.as que serão demitidos (desligados). No que se refere ao preço do trabalho, a plataforma o define, informa à empresa hoteleira contratante e fica com 25%.
Com uma pontuação máxima de cinco estrelas, se o(a) trabalhador(a) tiver uma qualificação menor do que quatro, ele(a) é excluído(a) sem nenhum aviso prévio ou possibilidade de argumentar contra a “demissão”. Mais uma vez, como em outros setores onde as plataformas estão presentes, não se sabe se o que pesa mais nessa “avaliação” é a reclamação de um(a) contratante ou o fato dos(as) trabalhadores(as) recusarem trabalho ou não estarem disponíveis 24 horas por dia. Ou, ainda, a situação de haver muito mais trabalhadores(as) registrados(as) nas plataformas do que demanda por trabalho.
Em 2018 a Uber lançou nos EUA a Uber Worksque, assim como faz a Brigad, possibilita aos bares, hotéis e restaurantes não mais contratarem os(as) trabalhadores(as) diretamente e de maneira formal, mas via plataforma. Promovendo, assim, a substituição de pessoas com vínculo empregatício por falsos(as) independentes sem nenhum direito garantido. Isto porque, em ambas as plataformas, os(as) trabalhadores(as) devem estar cadastrados(as) como profissionais autônomos(as) ou independentes, explicitando que não há nenhuma relação empregatícia, nem com a plataforma, nem com a empresa contratante.
No Brasil, desde 2018, várias plataformas começam a ser criadas no seguimento de bares, restaurantes e eventos, como a MyStaff (https://www.mystaffapp.com.br). Como todas as plataformas de trabalho, ela se autodenomina como “intermediadora do relacionamento” entre os(as) “prestadores(as) de serviço” – como garçom, garçonete, manobristas, seguranças, auxiliares de limpeza, hostess, barmans e cozinheiros(as) – e os estabelecimentos. Neste seguimento, no Brasil, observa-se que há grande heterogeneidade no que se refere às regras definidas pelas plataformas para o pagamento por parte dos contratantes e para a remuneração dos(as) trabalhadores(as).
As empresas-plataforma de trabalho por demanda, oriundas de outros setores, também contribuem para o desemprego e a precarização laboral no setor de turismo. As plataformas de entrega (como Uber Eats, Glovo, Rappi ou Ifood) destroem postos de trabalhos no setor hoteleiro, pois os serviços de quarto não conseguem competir com a diversidade e os preços por elas oferecidos. Além disso, a iFood está prejudicando a operação dos pequenos restaurantes5 em função de concorrência desleal e dumping, levando muitos a fecharem. Se os restaurantes não aderem às condições da plataforma, esta tira sua visibilidade, levando a perda de clientela. Sem contar que a plataforma fica com 27% do preço do pedido e impõe promoções desvantajosas aos estabelecimentos. Plataformas de transporte individual de passageiro, por sua vez, estão reduzindo a renda dos mensageiros e porteiros dos hotéis – que antes recebiam gorjetas para chamar táxis -, e mesmo gerando desemprego6.
Assim, de uma forma, geral, verifica-se que o mercado de trabalho no setor de turismo, considerando seus diversos subsetores, está sendo amplamente afetado tanto pelas plataformas de trabalho por demanda, de intermediação como de compartilhamento, gerando uma nova onda de precarização, a “precarização uberizada”7. Elas acabam por destruir empregos diretos e formais, gerando baixos rendimentos e total insegurança.
Finalmente, no contexto da pandemia, com o isolamento social e consequente aumento das interações sociais mediadas pela internet, observa-se uma intensificação do processo de plataformização do trabalho no setor de turismo, assim como em outros setores da economia. Processo este que, em realidade, já se mostrava presente, sobretudo desde 2016 em meio à crise econômica e política. Como visto na primeira publicação desta série, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua (PNADC), no período entre 2012 e 2019 houve um aumento de 9,1% dos(as) trabalhadores(as) potencialmente ocupados(as) em plataformas de trabalho apenas nos “Serviços de Alojamento e alimentação”.
Considerando, ainda, que o processo de inovação e digitalização da economia segue livre desorganizando o mundo do trabalho e destruindo direitos e empregos, tal contexto exige do poder público e dos atores sociais ações imediatas que regulem os diferentes tipos de plataformas. No caso do mundo do trabalho, no Brasil, a Consolidação das Leis Trabalhista – CLT (mesmo após a reforma de 2017), assim como a Constituição Federal, cumprem integralmente esse papel, além das convenções e acordos coletivos das diferentes categorias profissionais. Em síntese, se o mercado continuar a orientar o desenvolvimento tecnológico e se apropriar dos seus frutos, os resultados seguirão no sentido da precarização do trabalho e da vida.
Notas
1 Cañada, E. (2017). Un turismo sostenido por la precariedad laboral. Papeles de Relaciones Ecosociales y Cambio Global, 18(140), 65-73.
2 Ávila, A. L., Lancis, E., García, S., Alcantud, A., García, B., & Muçoz, N. (2015). Informe destinos turísticos: construyendo el futuro. Sociedad de la Información a la Sociedad Estatal para la Gestión de la Innovación y las Tecnologías Turísticas, S.A. (SEGITTUR), Madrid. Disponível em: https://www.segittur.es/wp-content/uploads/2019/11/Libro-Blanco-Destinos-Tursticos-Inteligentes.pdf. Acesso em: 20/01/2022.
3 Para ter acesso ao estudo completo: Cardoso, A. C. M. e Oliveira, M. C. B. (2020). A E-Economia e suas Empresas-Plataforma: modus operandi e precarização do mercado de trabalho no setor de turismo. Anais Brasileiros De Estudos Turísticos – ABET, 10(1, 2 e 3). Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/abet/article/view/30151 . Acesso em: 20/01/2022.
4 Banco Mundial (2018). Tourism and the Sharing Economy: Policy & Potential Susteinable Peer-to-Peer Accommodation. The World Bank Group: Washington
7 Cardoso, A.C.M.; & Almeida, P. F. (2020). O “Breque dos Apps” contra o falso discurso de autonomia e flexibilidade por parte das plataformas. Escuta, Revista de Política e Cultura. Disponível em: https://revistaescuta.wordpress.com/?s=Ana+claudia+moreira+cardoso. Acesso em: 20/01/2022.