Investigação sobre como o governo aparelhou a PF. Indicou delegados bolsonaristas sem experiência a cargos-chaves. Desde abril, a ordem é retirar o sigilo de investigações e manter o governo informado sobre operações sensíveis
Allan de Abreu, Piauí n. 182, novembro de 2021
O semblante de Paulo Gustavo Maiurino denunciava sua irritação quando entrou no pequeno auditório da Academia Nacional de Polícia, no Lago Norte, em Brasília. Três meses antes daquela manhã de 5 de julho passado, Maiurino tornara-se o novo diretor-geral da Polícia Federal, cargo internamente apelidado de “DG” ou “Zero Um”. Na plateia, à exceção dos representantes de Rondônia e do Espírito Santo, estavam todos os superintendentes da instituição nos estados e no Distrito Federal. Era o primeiro encontro de Maiurino com seus subordinados diretos, num dia que seria tomado por reuniões e palestras. A surpresa, no entanto, veio logo no começo.
Sentado à mesa no palco, vestindo terno azul-marinho e gravata cinza-clara, o DG ouviu o discurso protocolar do ministro da Justiça, Anderson Torres, também delegado da Polícia Federal, e então pegou o microfone para fazer um discurso duro. Disse que a PF vivia uma “anarquia”. “Os diretores não sabem o que fazem os superintendentes, e estes não sabem o que os delegados fazem”, reclamou. “Só ficamos sabendo do que acontece pela imprensa. A partir de agora acabou o segredismo na Polícia Federal.”
O clima na plateia oscilava entre o espanto e o constrangimento. Se em outros órgãos públicos é natural e até esperado que o chefe conheça os atos dos seus subordinados, na Polícia Federal é o inverso: a compartimentação de informações sensíveis, como investigações contra narcotraficantes, empresários e políticos, é a principal regra não escrita da instituição. Evita vazamentos e blinda a corporação de pressões políticas e econômicas, além de proporcionar liberdade para o delegado que coordena uma operação policial. O fim do “segredismo”, portanto, era má notícia. “Eu não repassei o recado do Maiurino para os meus delegados”, disse um dos superintendentes presentes à reunião, em conversa com a piauí, na qual pediu o anonimato devido aos riscos de retaliação. “Duvido que outro superintendente tenha repassado esse recado. Eu perderia toda a credibilidade com meus delegados se eu fizesse isso.”
A ordem de Maiurino foi interpretada como o fim de uma era. “Pensávamos que a Polícia Federal possuía plena maturidade profissional, e agora vemos que não tinha. Os valores que a corporação levou anos para construir estão sendo destruídos em poucos meses”, desabafa uma delegada especializada na investigação de crimes de colarinho branco. A ideia da independência foi construída sobretudo nos anos 2010, quando a Polícia Federal ganhou um certo respeito de parte da opinião pública como uma “polícia de Estado”. Nas investigações da Lava Jato, a partir de 2014, os agentes federais empenharam-se em apurações que, afinal de contas, atingiam o coração do governo da época.
Com o fim do “segredismo”, Maiurino não escondia o desejo de controlar a Polícia Federal e direcioná-la em favor dos interesses do presidente da República. Em maior ou menor grau, todos os governos tentam interferir nos rumos da corporação. A diferença é que o diretor-geral da Polícia Federal sempre atuava como uma espécie de dique para conter as pressões políticas, à exceção da breve gestão de Fernando Segóvia, no fim do governo Michel Temer, que se revelou a mais servil a uma administração antes da posse de Bolsonaro. Tradicionalmente, o diretor-geral tinha liberdade para escolher todos os seus subordinados, o que também não é mais verdade. “A grande diferença agora é a promiscuidade política”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que se dedica ao estudo de políticas públicas sobre violência e segurança.
O resultado é visível. Há vazamentos seletivos de informações, quase sempre do interesse do governo, como aconteceu quando Bolsonaro estava empenhado em difamar as urnas eletrônicas e defender a adoção do voto impresso. A Lava Jato foi virtualmente encerrada, sob a alegação de Bolsonaro de que “não tem mais corrupção no governo”. As operações contra crimes de colarinho branco caíram 42% no primeiro semestre deste ano, em comparação com o mesmo período do ano anterior, segundo levantamento realizado pela piauí com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação. As prisões por corrupção despencaram 55%. Os agentes que não rezam pela cartilha bolsonarista são perseguidos e punidos, com destituição ou transferência. Dos 27 superintendentes, pelo menos dez foram escolhidos a dedo pelo presidente ou por seus fiéis aliados no Planalto e no Congresso. Antes, um delegado que já tivesse sido alvo de sindicância interna, sob suspeita de alguma irregularidade, jamais ascendia ao comando de uma superintendência. Hoje, os superintendentes de São Paulo, o braço mais poderoso da PF, e do Distrito Federal, a unidade que lida diretamente com a cúpula dos poderes, se enquadram nesse caso.
Paulo Maiurino, atual Diretor-Geral da Polícia Federal
Maiurino, 47 anos, é o melhor exemplo do que, jocosamente, se denomina nos bastidores da Polícia Federal como “delegado de cativeiro”. A expressão refere-se ao profissional acostumado a atividades burocráticas e sem experiência na condução de investigações relevantes. Ele é o primeiro “delegado de cativeiro” da história a comandar a instituição – todos os seus antecessores, desde a redemocratização do país, já tinham sólida carreira na PF quando foram nomeados para o cargo. Além da inexperiência, Maiurino esteve afastado da corporação nos últimos dez anos, quando ocupou cargos de nomeação política no Executivo e no Judiciário. Nesse aspecto, também é um pioneiro.
Nascido e criado em Marília, interior paulista, filho de um tenente-coronel da Polícia Militar e de uma dona de casa, Maiurino tornou-se delegado da Polícia Federal em 1998 (um de seus irmãos, mais velho, tem a mesma profissão). Por dez anos, ocupou cargos sem grande relevância na instituição, com exceção da chefia da Interpol no Brasil, que exerceu entre 2009 e 2010. Em seguida, trocou a Polícia Federal por postos comissionados no Ministério da Justiça e na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Entre 2015 e 2016, foi secretário parlamentar de um primo, o então deputado federal Marcelo Squassoni (Republicanos-SP). Dali, saiu para ocupar o posto de secretário de Esportes no governo de Geraldo Alckmin (2015-2018), indicado pelo primo. (Squassoni seria preso em agosto de 2019 pela PF, acusado de receber propina em um esquema de fraudes em licitações no Porto de Santos na época em que Maiurino trabalhava em seu gabinete. Maiurino não é citado no inquérito. Squassoni continua sob investigação da PF, no âmbito da Operação Tritão.)
Em maio de 2018, com a saída de Alckmin do governo paulista para disputar a Presidência da República, Maiurino deixou a pasta e caiu num limbo. Só no ano seguinte, em janeiro de 2019, foi nomeado para o Conselho de Segurança Pública, criado pelo recém-eleito governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, com o objetivo de substituir a própria Secretaria de Segurança Pública. Em paralelo, em outubro de 2019, tornou-se secretário de segurança do Supremo Tribunal Federal (STF), depois de contar com a ajuda do governador fluminense para aproximar-se do então presidente da Corte, o ministro Dias Toffoli. Os três – Maiurino, Witzel e Toffoli – têm raízes na cidade paulista de Marília.
Foram anos de prosperidade. Enquanto ocupava cargos de natureza política, Maiurino e sua mulher, a nutricionista Renata Veit, hoje assessora parlamentar na Câmara dos Deputados, investiram no mercado imobiliário na Flórida. Em 2012, o casal comprou um apartamento de 98 m² no Centro de Miami por 310 mil dólares, vendido cinco anos depois, por 355 mil dólares (o equivalente a 1,8 milhão de reais, em valores de hoje). Nesse meio-tempo, em novembro de 2016, no período em que Maiurino e a mulher trabalhavam no gabinete de Squassoni na Câmara dos Deputados, o casal investiu mais 675 mil dólares (3,5 milhões de reais) na compra de um imóvel de 102 m², numa localização privilegiada – em Miami Beach, de frente para a Baía de Biscayne. (A piauí perguntou se o imóvel no exterior foi adquirido com poupança do casal e declarado no Imposto de Renda. Por meio de nota, Maiurino respondeu que todo o seu patrimônio está “devidamente informado” à Receita Federal, “com acesso autorizado à Controladoria-Geral da União e Tribunal de Contas da União”. Não comentou sobre a origem do dinheiro.)
Quando seus amigos saíram de seus postos – Toffoli encerrou seu mandato na Presidência do STF e Witzel sofreu impeachment –, Maiurino deixou os dois cargos, mas logo conseguiu uma vaga como “assessor especial de segurança institucional” do Superior Tribunal de Justiça (STJ), então presidido por Humberto Martins, o magistrado alagoano cujo nome frequentou as preferências de Bolsonaro para virar ministro do STF. Ganhou a confiança do novo chefe, que o escalou para comandar um inquérito que investigava “suposta tentativa de intimidação e investigação ilegal” de ministros do STJ por parte dos procuradores da Lava Jato. Era uma retaliação de Humberto Martins contra o Ministério Público Federal, que, meses antes, acusara seu filho de receber 82 milhões de reais para influenciar decisões judiciais da corte em que o pai atua.
O trabalho não avançou. Quando Maiurino se preparava para pedir os primeiros mandados de busca contra os procuradores, o inquérito foi suspenso pelo STF a pedido da Procuradoria-Geral da República, para quem a investigação do STJ estava “carregada de vícios” por se basear em provas obtidas ilicitamente. A essa altura, Humberto Martins e Dias Toffoli já pressionavam o presidente Bolsonaro pela nomeação de Maiurino para a direção-geral da Polícia Federal, com as bênçãos de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara investigado pela própria PF na Lava Jato. Sem consultar o ministro da Justiça, o presidente aceitou a indicação. “Foi uma tentativa de Bolsonaro de compor com a chamada ‘ala garantista’ do STF e, de quebra, com o Centrão”, interpreta Arthur Trindade Maranhão Costa, professor da Universidade de Brasília e especialista em segurança pública.
A trajetória de Maiurino, sem a experiência de rua e afastado da corporação havia uma década, facilitou o controle de Bolsonaro sobre a PF. Não houve resistência do comando nem mesmo de boa parte da base. Em agosto passado, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública examinou as postagens de policiais nas redes sociais e identificou que 17% dos policiais federais se engajaram no que os pesquisadores chamam de “ambientes bolsonaristas”. É bem menos do que os policiais militares (48%), mas é mais do que os policiais civis (13%). “Se o petista Fernando Haddad tivesse sido eleito em 2018 e tentasse uma interferência semelhante ao que fez Bolsonaro, certamente a reação seria muito mais forte”, compara o professor Maranhão Costa.
Quando exigiu conhecer detalhes de inquéritos em andamento na Polícia Federal, Maiurino propunha um retrocesso. Em 2008, por exemplo, o número dois da corporação, Romero Luciano Lucena de Menezes, chegou a ser preso sob a suspeita de vazar informações da Operação Toque de Midas, que investigava denúncias de fraudes em licitações e crimes tributários do grupo EBX, do empresário Eike Batista, em sua filial do Amapá. Em uma sessão de powerpoint, Menezes foi informado de que a Polícia Federal preparava uma ação contra o grupo e, três dias depois, um funcionário de Eike Batista em Macapá, muito próximo de um irmão de Menezes, chegava à sede da EBX no Rio de Janeiro devidamente alertado sobre a operação policial secreta, segundo o Ministério Público. Menezes foi preso em seu gabinete em Brasília. Denunciado à Justiça por violação de sigilo funcional, acabou absolvido.
Antes disso, em 2006, outro diretor-executivo da Polícia Federal, Zulmar Pimentel, também foi acusado de vazar o conteúdo de grampos em uma operação policial. Era uma investigação sensível para a própria PF, pois apurava a suspeita de que o então superintendente no Ceará, João Batista Paiva Santana, tinha relações promíscuas com empresários envolvidos em fraudes em licitações. Zulmar Pimentel foi afastado do cargo, mas não chegou a ser preso. Concluída a investigação do Ministério Público, ao contrário do que aconteceu no caso de Menezes, os juízes do STJ não aceitaram a denúncia contra Pimentel. Com isso, ele nem foi a julgamento. Hoje está aposentado.
Para fechar os ralos dos vazamentos, a Polícia Federal começou então a impor o que Maiurino chamou de “segredismo”. A partir de 2011, com a posse de Leandro Daiello, que ficou quase sete anos no comando da corporação, a mais longeva gestão desde a redemocratização, definiu-se que informações sobre as operações policiais passariam a ficar restritas aos diretamente envolvidos. A medida não eliminou vazamentos ou atropelos, mas reduziu bastante os riscos e deu confiança aos agentes e delegados. Nessa época, a PF começou a viver seu auge. Tinha apoio institucional e seu orçamento, de 7 bilhões de reais, era quase 70% maior do que dez anos antes. A corporação começava a colher os frutos que haviam sido plantados nos anos anteriores, a partir do primeiro mandato de Lula (2003-2006).
Sob a batuta do advogado criminalista Márcio Thomaz Bastos, que foi ministro da Justiça entre 2003 e 2007, a Polícia Federal passou a adquirir maior profissionalismo e amadurecimento institucional. Datam desse período as investigações padronizadas, as operações midiáticas e o combate à corrupção dentro da própria Polícia Federal, em que pesem os tropeços – dos quais o caso Menezes é o momento mais agudo. “A PF teve de cortar na própria carne para se tornar respeitada, investigando e exonerando os maus policiais”, analisa o delegado federal aposentado Célio Jacinto dos Santos, que estuda a evolução institucional da Polícia Federal. Mas essas mudanças não ocorreram sem percalços. No segundo mandato (2007-2010), Lula trocou o diretor-geral depois que a PF grampeou sua conversa com um de seus irmãos, investigado por suspeita de envolvimento com a exploração de caçaníqueis em Mato Grosso do Sul. No cargo havia quase cinco anos, Paulo Lacerda foi deslocado para a chefia da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Em seu lugar no comando da PF, entrou Luiz Fernando Corrêa. A troca, entretanto, não impediu a corporação de avançar.
Com seu crescimento gradual, a PF firmou-se, a ponto de conseguir, a partir de 2014, já no governo de Dilma Rousseff, emplacar a Lava Jato, a maior operação de sua história, que prendeu 295 pessoas, o próprio Lula entre elas, e cumpriu 1,4 mil mandados de busca e apreensão. A Lava Jato atiçou as ruas contra o PT, funcionando como força-auxiliar pelo impeachment de Dilma, mas a deposição da petista acabou sendo um tiro no pé. A PF começou a perder o rumo já na largada do governo de Michel Temer. Querendo controlar a corporação, Temer colocou no comando o delegado Fernando Segóvia, que duraria apenas três meses no cargo. Nesse curto período, pôs em dúvida o trabalho da PF no inquérito em que o alvo era o próprio Temer e adiantou que a investigação, então ainda em curso, acabaria sendo arquivada. Segóvia saiu desacreditado entre os delegados e agentes, que, na época, já começavam a festejar o nome de um presidenciável que lhes parecia a redenção definitiva: Jair Bolsonaro.
“Ouso dizer que, naquela época, 80% da Polícia Federal apoiou Bolsonaro, que prometia uma prática política diferente”, diz o agente Luís Antônio Boudens, presidente da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef). O entusiasmo da corporação com Bolsonaro cresceu ainda mais quando Sergio Moro, o juiz da Lava Jato, foi anunciado como ministro da Justiça, a pasta à qual a PF está subordinada. Só que, mais uma vez, deu tudo errado. Por ironia, foi justamente na gestão de Moro que a institucionalidade e a independência da Polícia Federal, construída durante os governos petistas, começariam a desmoronar. O ex-juiz deixou o cargo depois de pouco mais de um ano. E saiu denunciando que Bolsonaro interferia nos trabalhos da corporação para proteger seus filhos e amigos.
“É putaria o tempo todo pra me atingir, mexendo com a minha família”, esbravejou Bolsonaro na reunião ministerial de 22 de abril de 2020, cujo vídeo escandalizou o país. Furioso, enfileirando palavrões, Bolsonaro reclamava abertamente da dificuldade de interferir na superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro. “Já tentei trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro, oficialmente, e não consegui! E isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meus, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui para brincadeira!”
Sentado a uma cadeira de distância de Bolsonaro estava Sergio Moro, o ministro que deveria ser trocado caso não fosse feita a mudança na direção da PF. De braços cruzados, olhar no horizonte, Moro ouvia calado o desabafo do presidente, como se não fosse com ele. No dia seguinte, culminando uma pressão de Bolsonaro que já durava meses, a mudança finalmente aconteceu. Caiu o diretor-geral Maurício Valeixo, que Moro trouxera de Curitiba e resistia em demitir. Graças ao vídeo da reunião, foi a primeira vez que o país teve informação direta sobre a interferência de um presidente na Polícia Federal para proteger sua família e seus amigos.
Era o desfecho de um trabalho que começara ainda no primeiro semestre do governo, em 2019. Depois de seis meses de investigação sobre o atentado a faca que Bolsonaro sofrera em Juiz de Fora, o delegado Rodrigo Morais Fernandes concluiu que a agressão fora obra isolada de Adélio Bispo, portador de transtornos mentais. Bolsonaro ficou irritado. Queria que a investigação concluísse que o atentado era resultado de um complô de militantes de esquerda. Até hoje, o presidente, seus filhos e bolsonaristas mais fanatizados insistem na tese da conspiração assassina de esquerda, ainda que a Polícia Federal não tenha obtido nem mesmo um indício nesse sentido. Ali, acendeu o primeiro sinal de que Bolsonaro queria uma polícia a seu serviço.
Em paralelo, o presidente começou a implicar com Ricardo Saadi, então superintendente da PF no Rio de Janeiro, base eleitoral de Bolsonaro. Ele tinha dois delegados informantes no braço fluminense da corporação, que se encarregavam de sabotar o trabalho de Saadi. Um deles era Rodrigo Piovesano Bartolamei, que sofreu uma sindicância sob a acusação de manipular credenciais nas Olimpíadas de 2016, no Rio. O outro era o policial Victor Hugo Poubel, que concorrera a deputado federal pelo PP e foi acusado de pedir propina de 300 mil reais para vazar informações de dentro da PF. A acusação foi feita pelo ex-governador Sérgio Cabral, em acordo de delação. (As duas investigações, contra Bartolamei e contra Poubel, acabaram arquivadas, sem apontar culpados.)
Desse ninho de policiais bolsonaristas no Rio, chegaram ao Palácio do Planalto informações de que a PF fluminense estava mexendo em interesses caros à família Bolsonaro. Dizia-se que os agentes estariam investigando o deputado federal Hélio Negão, amigo da família Bolsonaro (não estavam), e estariam apurando suspeitas de rachadinha no gabinete de Flávio Bolsonaro (também não estavam). Era intriga, mas Bolsonaro pode ter percebido naquele momento que seus amigos e sua família estavam em risco – e começou a campanha para desalojar Saadi do comando do Rio.
No dia 15 de agosto de 2019, à saída do Palácio da Alvorada, o presidente anunciou que trocaria o superintendente. “Todos os ministérios são passíveis de mudança. Vou mudar, por exemplo, o superintendente da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Motivos? Gestão e produtividade”, disse. Era lorota, e o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, fez questão de divulgar uma nota pública dizendo que a eventual troca no Rio de Janeiro não tinha qualquer relação com “gestão e produtividade”. Saadi deixou a superintendência do Rio no final daquele mês de agosto, mas Bolsonaro, já desconfiado da independência de Valeixo e irritado com a sua nota, passou a pedir sua cabeça ao ministro Moro. Em janeiro de 2020, dispensou a intermediação de Moro, ligou diretamente para Valeixo e disse, sem meias-palavras, que queria tirá-lo do cargo. Moro continuou resistindo – até a reunião do vídeo.
Os delegados que ajudaram a fritar Saadi no Rio de Janeiro foram recompensados. Poubel foi nomeado para a direção do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), na gestão do governador fluminense Cláudio Castro, aliado de Bolsonaro. Em maio passado, já na gestão de Maiurino, Bartolamei ganhou o comando da Superintendência da PF em São Paulo, a maior do país, desalojando Dennis Cali, um delegado com currículo muito mais robusto. Além dos serviços prestados, Bartolamei tinha um bom padrinho: o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), cuja sala fica no Palácio do Planalto. Heleno é amigo do pai de Bartolamei.
“Na Polícia Federal, costumava-se respeitar uma fila: chefes de superintendências maiores obrigatoriamente haviam passado por outras de menor importância, e diretores em Brasília haviam antes ocupado superintendências em estados relevantes”, diz um ex-diretor-geral da PF, que pediu para manter o anonimato para não se incompatibilizar com a cúpula atual. “Eles quebraram essa regra não escrita, com delegados de pouco currículo em postos importantes. O caso do Bartolamei é exemplar.” Procurados pela piauí, Bartolamei e Poubel não quiseram se pronunciar.
A demissão de Valeixo num dia, seguida da demissão de Moro no dia seguinte, marcou o fim do matrimônio de conveniência entre o bolsonarismo e o lavajatismo, e o início de uma interferência escancarada na Polícia Federal. Primeiro, Bolsonaro quis colocar no comando da PF o delegado Alexandre Ramagem, um amigo da família e então chefe da Abin. Quando Ramagem foi barrado pelo STF, sob o argumento de que sua nomeação feria o princípio da moralidade e impessoalidade na gestão pública, Bolsonaro optou pelo delegado Rolando Alexandre de Souza, então secretário de Ramagem na Abin.
Com o auxílio ativo do ministro da Justiça, André Mendonça, o novo diretor-geral multiplicou os inquéritos para apurar “calúnia” contra o presidente da República, com base em um artigo da Lei de Segurança Nacional, a cereja do entulho autoritário que a democracia herdou da ditadura militar – e que só seria revogado recentemente. Nos dois anos anteriores, a Polícia Federal abrira 45 investigações desse tipo. Em todo o ano de 2020, dos quais oito meses da gestão de Rolando de Souza, foram 51. O youtuber Felipe Neto foi alvo de um desses inquéritos por ter chamado o presidente de “genocida” – um “crime” que, a essa altura, talvez uns 10 milhões de brasileiros tenham cometido. Até um professor de Palmas, no Tocantins, foi investigado pela instalação de dois outdoors onde se lia que Bolsonaro “não vale um pequi roído”. (Todos esses inquéritos de “calúnia” foram arquivados.)
A gestão de Rolando de Souza foi uma festa danada. Quando a delegada Denisse Dias Ribeiro começou a pedir ao STF mandados de busca e apreensão para investigar os atos antidemocráticos liderados por Bolsonaro, o governo ficou com receio da independência da delegada – e Souza, depois de uma reunião com o então ministro André Mendonça, decidiu tirar o inquérito das mãos de Ribeiro. (O STF deu ordens para que o inquérito voltasse para ela.) Mais recentemente, Denisse Ribeiro, que ainda atua no caso, precisou trocar dois agentes de sua equipe por razões ideológicas. Um vinha protelando a análise de informações, até que a delegada descobriu que era um simpatizante do presidente. Outro procurou a delegada para pedir afastamento do caso, dizendo-se bolsonarista.
Apesar dos serviços prestados, Rolando de Souza acabou decapitado quando mostrou alguma independência funcional. Ele resistiu às pressões de Bolsonaro para substituir parte de seus diretores e superintendentes e criou atritos com o então diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF), o bolsonarista Eduardo Aggio. Numa tentativa de engrandecer o papel da PRF, Aggio vinha divulgando nas redes sociais algumas apreensões de drogas como se fossem trabalhos de inteligência de policiais rodoviários, quando, na verdade, eram da PF. Irritado, Souza passou a criticar Aggio nos bastidores, que, em reação, pediu a Bolsonaro a demissão do diretor-geral. Levou. Hoje, Souza é adido da PF na Embaixada Brasileira em Washington.
Em abril passado, Paulo Gustavo Maiurino tornou-se o quarto diretor da Polícia Federal do governo Bolsonaro – uma rotatividade só superada pelos seis diretores da corporação no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Com Maiurino, que tinha passagens pelo poder judiciário em Brasília, o governo passou a ter uma conexão inédita com pelo menos dois ministros do STF, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Nas primeiras semanas de trabalho, Maiurino desidratou o Serviço de Inquéritos Especiais (Sinq), área nevrálgica responsável por inquéritos contra autoridades com direito a foro privilegiado. Afastou dois delegados que tomaram iniciativas que irritaram os magistrados.
Um deles é Bernardo Guidali Amaral, que pediu a abertura de um inquérito para investigar Dias Toffoli, acusado de receber propina de 4 milhões de reais em troca de uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral. O STF rejeitou o pedido. O outro é Felipe Alcântara de Barros Leal, autor de um relatório que não confirmou a autenticidade dos diálogos hackeados dos celulares dos procuradores da Lava Jato em Curitiba. A decisão invalidaria o uso do conteúdo dos diálogos contra a Lava Jato, uma bandeira que tem sido empunhada pelo ministro Gilmar Mendes. O afastamento dos dois delegados foi recebido como um gesto de cortesia para com os magistrados.
Mas Maiurino foi mais longe. O delegado Felipe Leal, ao deixar o Sinq, acabou lotado na superintendência do Distrito Federal, onde o delegado Hugo de Barros Correia deu cobertura para o seu trabalho. Ali, os agentes tinham liberdade para tocar suas investigações sem se preocupar com interferências da cúpula da PF. Em outubro, porém, Maiurino tomou uma providência para acabar com tanta independência: tirou Correia do posto e, em seu lugar, nomeou um delegado indicado pelo senador Flávio Bolsonaro. O premiado é Victor Cesar Carvalho dos Santos, que já foi investigado por falsidade ideológica e lavagem de dinheiro dentro da própria PF (o inquérito acabou sem indiciamento) e carrega a fama entre seus colegas no Rio de Janeiro de ser próximo de milicianos. Era um primeiro passo de Maiurino para manter a superintendência do DF sob controle.
Maiurino também resolveu um problema que se arrastava desde o ano anterior, quando a Superintendência da PF no Amazonas apreendeu a maior carga de madeira ilegal da história do país – 226 mil m³ de tora, avaliados em 130 milhões de reais. Em governos anteriores, a operação seria motivo de comemoração, mas, no governo Bolsonaro, aliado de grileiros, garimpeiros e madeireiros, a apreensão causou profundo mal-estar. Começaram então as pressões para derrubar o superintendente no Amazonas, Alexandre Saraiva.
O então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, chegou a viajar até Santarém, no Pará, para “vistoriar” a apreensão. Criticou o trabalho da Polícia Federal e defendeu a imediata liberação da carga. Alexandre Saraiva não gostou da reação de Salles e, numa entrevista à Folha de S.Paulo, disse que na PF “não vai passar a boiada”. Fazia uma referência provocativa à fala de Salles na reunião ministerial gravada em vídeo, quando este propôs “passar a boiada” contra a legislação ambiental, aproveitando que a imprensa, naquele momento, voltava suas atenções para a pandemia. O fato é que Alexandre Saraiva resistiu durante meses – até a chegada de Maiurino. Duas semanas depois de sua posse, o diretor transferiu-o do Amazonas para uma delegacia no interior do Rio de Janeiro.
Como havia indícios de que Salles estava envolvido no contrabando de madeira extraída na Amazônia, a PF continuou a investigação. Em maio, no segundo mês da gestão de Maiurino, agentes deflagraram a Operação Akuanduba, que cumpriu mandados de busca em endereços do ministro do Meio Ambiente. Na manhã da operação, o delegado Luís Flávio Zampronha, braço direito de Maiurino, pediu cópia do inquérito do caso Salles. O delegado Franco Perazzoni, um dos que coordenavam a Operação Akuanduba, informou que o inquérito continha informações sensíveis contra o ministro e a cúpula do Ibama, o instituto que cuida do meio ambiente, e se recusou a atender o pedido. À noite, a cúpula da PF vetou a ida de Perazzoni para a chefia do combate ao crime organizado no Distrito Federal, uma promoção que já estava acertada. (Semanas depois, outro delegado da Akuanduba, Rubens Lopes da Silva, perderia a chefia da Divisão de Repressão a Crimes contra o Meio Ambiente. Foi transferido para combater o narcotráfico em Curitiba.)
Com as perseguições se proliferando, o delegado Felipe Leal, que continuava seu trabalho na Superintendência do DF, resolveu pedir formalmente à direção-geral da PF informações sobre três atos administrativos: a exoneração de Alexandre Saraiva do Amazonas, o veto à transferência de Perazzoni para o Distrito Federal e o cancelamento de uma promoção de Rodrigo Fernandes, o delegado que investigara o atentado contra Bolsonaro e concluíra não ter sido um complô da esquerda. Leal tinha base para seus pedidos. Ele era responsável pelo inquérito que investiga a interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro Sergio Moro. Era natural que quisesse detalhes sobre movimentos que, suspeitava-se, vinham da engrenagem bolsonarista de perseguição política.
Resultado: Leal perdeu a função. Assim que soube do pedido de Leal, Maiurino acionou seu amigo Dias Toffoli, no STF, e pediu que ele interferisse junto ao ministro Alexandre de Moraes, responsável pelo inquérito da denúncia de Sergio Moro. Meses antes, Alexandre de Moraes dera ordens à Polícia Federal para que Felipe Leal fosse mantido à frente da investigação, mas, desta vez, diante do pedido de Toffoli, recuou de pronto. No dia 27 de agosto, decidiu que os pedidos de Leal não tinham relação com o objetivo do inquérito sobre interferência de Bolsonaro e determinou que o delegado deixasse a investigação. Indagado sobre o assunto, Toffoli mandou sua assessoria dizer que “jamais conversou sobre o assunto” com Moraes. Moraes, por sua vez, não quis se manifestar. Maiurino também preferiu ficar em silêncio. O único a falar sobre o assunto é o delegado Leal. “Estou convicto de que nada fiz de errado”, diz ele.
O afastamento de Leal parece não ter sido punitivo o suficiente. A subprocuradora-geral da República, Lindôra Araújo, muito próxima de Bolsonaro, pediu abertura de inquérito para investigar o delegado por “abuso de autoridade” (porque teria fugido ao objetivo inicial do inquérito) e “violação de sigilo profissional” (por ter supostamente vazado informações da investigação). O procurador-geral da República, Augusto Aras, que tem sido sistematicamente acusado de nunca tomar providências a respeito de denúncias contra Bolsonaro e seus aliados, dessa vez foi ágil: um dia depois da abertura do inquérito contra Leal, visitou Maiurino na sede da PF em Brasília, e falaram sobre o assunto.
O episódio contribuiu para mostrar que nem tudo está dominado na Polícia Federal. O tratamento dado ao delegado Leal fez com que 1 079 policiais, dos quais dois terços são delegados, assinassem uma nota pública de repúdio à perseguição e em defesa da independência da corporação. “Seremos eternamente avessos a qualquer tentativa de sufocar a nossa atuação policial, na certeza de que nossos trabalhos contribuem para o engrandecimento e evolução da sociedade brasileira”, diz a nota. Duas semanas depois da divulgação da nota, a delegada Graziela Costa e Silva, que coordenou a produção do abaixo-assinado, teve sua promoção negada pela direção-geral da PF. A Associação dos Delegados da Polícia Federal, entidade próxima a Maiurino, não quis se manifestar sobre o assunto.
O histórico de ingerência na PF, ao mesmo tempo que aumenta a presença do bolsonarismo na corporação, também provoca repúdio. Luís Boudens, o presidente da Fenapef, estima que, desde as eleições de 2018, a adesão ao presidente caiu pela metade. “Hoje, o apoio a Bolsonaro é bem maior entre os agentes do que entre os delegados”, disse ele, em entrevista por videoconferência no início de agosto. Atualmente, são 11,5 mil policiais federais, dos quais a maioria – 6 mil – são agentes. Um deles é Danilo Campetti, que até hoje é aclamado pelos bolsonaristas nas redes sociais pelo fato de ter escoltado Lula, então preso, até o velório de seu neto em São Bernardo do Campo, em 2019.
Por coincidência ou não, dias antes do afastamento de Leal do inquérito, o deputado Arthur Maia (DEM-BA), relator da reforma administrativa na Câmara, achou que era o caso de legislar sobre o funcionamento interno da Polícia Federal. Inventou dois jabutis, como são chamados os penduricalhos sorrateiramente enfiados num projeto que, no mais das vezes, trata de assuntos inteiramente diferentes. Um dava ao diretor-geral da PF o poder de escolher os delegados para os inquéritos da corporação, algo que nunca ocorreu desde o fim do regime militar – e que, se já estivesse em vigor, dispensaria Maiurino de recorrer ao STF para derrubar Leal do inquérito sobre as ações do presidente dentro da PF. O outro concedia ao diretor-geral direito a foro privilegiado. Bombardeados pela oposição, os dois jabutis caíram.
A interferência política na polícia é um fenômeno mundial, mas sua intensidade e abrangência têm relação direta com a maturidade institucional de um país. Em nações mais sólidas, são interferências pontuais ou limitadas à cúpula do organismo de segurança. “De modo geral, países latinos são mais propensos a aceitar a interferência política nas forças de segurança pública do que aqueles fundados no direito anglo-saxão”, compara Philip Stenning, professor-adjunto do Instituto de Criminologia da Griffith University, na Austrália. Mas até isso é relativo. Em maio de 2017, o então presidente Donald Trump ignorou o mandato de dez anos do diretor do FBI, a polícia federal norte-americana, e demitiu James Comey no seu quarto ano no posto. Naquele momento, o FBI avançava na investigação sobre como a Rússia interferiu na eleição dos Estados Unidos de modo a favorecer Trump.
O caso brasileiro é um pouco diferente na abrangência e na natureza. A máquina bolsonarista dentro da PF não se limita ao jogo de pressões sobre a cúpula, mas chega ao ponto de mudar diretorias regionais e, até mesmo, delegados e agentes. É uma tomada ampla da estrutura. O delegado Felipe Leal, antes de ser afastado da investigação sobre Bolsonaro, produziu um relatório parcial mostrando que o presidente atuou diretamente para afastar a delegada Carla Patrícia Cintra Barros da Cunha da chefia da Superintendência de Pernambuco. A razão? Os bolsonaristas diziam que a delegada tinha “ligações” com o governo local, comandado pelo PSB, legenda de oposição ao presidente. Na ocasião, o ministro Humberto Martins, do STJ, e o presidente da Câmara, Arthur Lira, ambos alagoanos, estavam incomodados com a presença do delegado Daniel Grangeiro em Maceió. Grangeiro andara investigando um desembargador próximo de Martins e ainda acusara Lira de fazer “rachadinha” quando era deputado estadual em Alagoas. Martins e Lira se uniram para derrubar dois coelhos numa cajadada só: conseguiram deslocar Grangeiro para o Recife, e, em seu lugar, entrou o delegado Sandro Luiz Valle Pereira, simpático à turma. Ficou tudo em casa.
Excepcional na abrangência, a natureza da dominação bolsonarista na PF também é um caso à parte. No livro Governing the police (Governando a polícia), que Philip Stenning publicou em 2016, pode-se observar que os casos de interferência tendem a se concentrar em impedir, ou retardar, investigações incômodas. Na PF de Bolsonaro, no entanto, já se chegou ao ponto de usar a estrutura para criar investigações com o objetivo de favorecer interesses do governo. O caso das urnas eletrônicas é o mais recente.
No dia 17 de junho passado, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, deu uma entrevista à emissora de tevê CNN Brasil e, a certa altura, desafiou Bolsonaro a apresentar provas de suas insistentes alegações de fraude nas urnas eletrônicas. Duas horas depois, segundo o jornal O Globo, a direção-geral da PF disparou um e-mail para todas as 27 superintendências determinando que recolhessem cópias de denúncias de fraude recebidas pela corporação desde a implantação das urnas eletrônicas, em 1996. Era a PF sendo convocada para produzir provas para o presidente. Até hoje, a informação não foi nem confirmada nem desmentida.
Na segunda quinzena de julho, o novo ministro da Justiça, Anderson Torres, reuniu-se no Palácio do Planalto com dois peritos da corporação, segundo noticiou na época a Folha de S.Paulo. Os peritos tinham participado, em nome da PF, dos testes de segurança nas urnas nos três últimos pleitos. Seis dias depois desse encontro, em 29 de julho, Bolsonaro fez uma live para atacar as urnas eletrônicas e contou com a presença do ministro Torres. Na live, o ministro leu trechos das auditorias dos peritos, nos quais, no entanto, não havia qualquer sugestão de fraude. O governo usava os documentos da PF para confundir e, quem sabe, convencer a plateia de que havia algo errado nas urnas.
Uma semana depois, veio o pior. A PF vazou para o deputado bolsonarista Filipe Barros (PSL-PR) os documentos de uma investigação que tramita em sigilo no Tribunal Superior Eleitoral. A investigação supostamente comprovava fraude nas urnas eletrônicas. Em entrevista à rádio Jovem Pan, Barros disse que teve acesso aos documentos por meio do delegado Victor Neves Feitosa Campos, responsável pela investigação. Horas depois, Bolsonaro divulgou cópia dos documentos sigilosos no Twitter. Em vez de fraude, os papéis comprovavam apenas a tentativa de um hacker de acessar a rede interna do TSE, e não fraude na urna eletrônica. A lambança resultou em um inquérito para investigar o vazamento dos documentos secretos – por parte de um deputado, um delegado e do próprio presidente da República.
O delegado Luís Zampronha, braço direito de Maiurino, também participou do esforço coletivo para desmoralizar as urnas eletrônicas. No fim de setembro, entregou ao senador Esperidião Amin (PP-SC) um relatório produzido por três peritos da PF no qual se defendia, entre outros pontos, que o TSE transferisse a coordenação da segurança da transmissão dos resultados das urnas para a Abin de Alexandre Ramagem. Hoje, esse trabalho é feito por empresas privadas. O relatório tinha tarjas pretas em diversos trechos, segundo reportagem da Folha. Um deles, porém, pôde ser decifrado – e estava sob a tarja porque seu conteúdo não interessava ao governo. Dizia que o modelo de transmissão de votos das urnas era “bastante robusto” e que não havia comprometimento da segurança do processo de votação “nem tampouco ameaça à integridade e sigilo dos dados transmitidos”.
Por três semanas, entre o fim de agosto e o início de setembro, tentei entrevistar o diretor-geral da PF, Paulo Maiurino. A assessoria da corporação informou que o DG “não deu e nem pretende dar entrevistas durante sua gestão”, mas pediu que as perguntas fossem encaminhadas por escrito. Em uma relação de quinze perguntas, a piauí pediu detalhes sobre o fim do “segredismo” e a interferência nas investigações, as manobras de retaliação, a influência de Bolsonaro e aliados na corporação e a pouca experiência de Maiurino. Um mês depois, a assessoria mandou uma nota sucinta: “Os temas mencionados nas perguntas são uma coletânea requentada de ataques pessoais perpetrados contra o diretor-geral por um punhado de adversários anônimos.” Em seguida, lamentava que “uma revista conceituada como a piauí dê guarida a fontes ‘encapuzadas’ para patrocinar insinuações sem fundamento na realidade e, com isso, alimentar intrigas de pessoas com interesses não declarados”. Completava dizendo que “o diretor-geral é delegado aprovado em concurso público, com 23 anos de carreira, marcada por experiência em grandes investigações e em gestão de segurança pública”.
A direção da PF não disse palavra sobre os afastamentos, os boicotes, as indicações políticas, as perseguições. Uma das mais recentes aconteceu por vingança pessoal do presidente. Seu rancor nascera na manhã de 28 de outubro de 2018, quando, logo depois de votar na eleição que o consagraria, Bolsonaro retornou para sua residência no condomínio Vivendas da Barra, no Rio. Ao seu lado, no banco traseiro, estava o delegado Antonio Marcos Lourenço Teixeira, que comandava sua segurança. A multidão cercou o carro, e Teixeira deu ordens para que as travas das portas permanecessem acionadas, mas Bolsonaro mandou o motorista destravá-las – e saiu ao encontro da multidão. Ao chegar na casa de Bolsonaro, Teixeira estava furioso e censurou o motorista por ter desobedecido sua ordem. Bolsonaro interferiu:
– Quem mandou ele abrir a porta fui eu, tá ok?
– Mas se acontece algo com o senhor, a responsabilidade é minha – retrucou Teixeira. – E quem manda nele sou eu, não o senhor.
Bolsonaro não perdoaria. Pediu que Teixeira fosse excluído de sua segurança, o que aconteceu. Não teve mais notícias do delegado até que, durante as manifestações golpistas do Sete de Setembro passado, Bolsonaro foi informado de que a segurança do prédio do STF fora feita pelo Comando de Operações Táticas (COT), que estava agora sob o comando de Teixeira. Bolsonaro pediu que Maiurino o afastasse. Foi prontamente atendido. Teixeira continua no COT, mas agora sem ocupar cargo de chefia.
Boa parte dos desafetos do bolsonarismo está hoje num limbo administrativo, com exceção de Ricardo Saadi, que deixou a superintendência do Rio de Janeiro por exigência de Bolsonaro e, meses depois, tornou-se oficial de ligação na Europol, a polícia europeia, na Holanda. O delegado Rodrigo Fernandes, que investigou o atentado contra Bolsonaro, foi exonerado da chefia de inteligência da PF em Minas Gerais. Seu nome foi vetado para a coordenação-geral de inteligência da PF. Até o início de outubro, Fernandes permanecia sem nenhum cargo. Franco Perazzoni continua na chefia da Operação Akuanduba, mas não tem função definida na corporação. A delegada Carla Cunha, ex-superintendente de Pernambuco, está gozando um período sabático ao final do qual não está definida que função vai exercer. Hugo Correia está sem cargo definido desde que foi afastado da Superintendência do DF. O delegado Felipe Leal, retirado do comando do inquérito sobre as interferências de Bolsonaro na PF, ainda espera uma definição sobre o cargo que deverá ocupar. É possível que seja enviado para uma delegacia na Paraíba. Maurício Valeixo, o ex-diretor-geral da PF, tentou ir para uma adidância da PF na Embaixada Brasileira em Lisboa, mas seu nome foi vetado pelo general Walter Braga Netto, a pedido de Bolsonaro. Hoje, Valeixo está em Curitiba, sem ocupar um cargo formal, à espera da aposentadoria.