Provavelmente, será o último grande trabalho do IPCC que chega a tempo de orientar nossas sociedades a intervir para evitar o descalabro. Alguns acreditam que a direção traçada no relatório é clara, mas lendo o resumo para os responsáveis pelas políticas, a sensação que nos passa é muito mais a de uma civilização que cambaleia instável. No novo contexto, é normal que uma parte da comunidade científica se rebele e passe à ação; isso é mais do que desejável.
Juan Bordera, Antonio Turiel, Fernando Valladares, Marta García Pallarés, Javier de la Casa, Fernando Prieto e Ferran Puig Vilar, Ctxt /IHU-Unisinos, 8 de abril de 2022. A tradução é do Cepat.
O registro da vergonha. Este relatório é uma ladainha de promessas climáticas quebradas. Sem uma rápida e profunda redução das emissões de gases do efeito estufa em todos os setores, será impossível evitar o desastre climático para o qual nos dirigimos rapidamente. As e os ativistas climáticos, às vezes, são representados como radicais perigosos, mas os radicais realmente perigosos são os países que estão aumentando a produção de combustíveis fósseis.
Estas declarações – que poderiam ser de qualquer porta-voz de um movimento social – são apenas algumas das frases mais contundentes que o secretário-geral da ONU, António Guterres, manifestou a propósito da oficialização da última parte do relatório climático mais importante do mundo, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
Neste caso, trata-se do grupo III. O responsável em propor um plano concreto de mitigação, ou seja, para reduzir as emissões e buscar soluções viáveis (tecnológicas, econômicas e sociais) para a maior crise que o ser humano já enfrentou. A ciência nunca foi tão clara: temos que reduzir drasticamente as emissões para termos chances de manter a estabilidade climática que nos permita viver neste planeta.
Contudo, o Sumário para Formuladores de Políticas (SPM), que será a único a ser lido pela grande maioria dos responsáveis políticos e líderes empresariais das mais de 2.900 páginas do relatório, não está à altura da ciência que o sustenta, nem do desafio decorrente das mudanças climáticas, da crise ecológica e da transição energética.
Este documento é a único que não é estritamente científico, pois o protocolo estabelecido pela Organização das Nações Unidas permite que os países, pressionados em muitas oportunidades por seus lobbies empresariais, recomendem mudanças e negociem linha a linha o conteúdo do documento. Estamos, sem dúvida, diante da parte do relatório na qual mais aparece a duplicidade de almas, com as luzes e as sombras, o verdadeiro caráter – extremamente bipolar – do processo de redação do IPCC.
Após uma fase final de revisão do relatório, que demorou vários dias a mais do que o esperado e sua publicação até foi adiada devido à luta para modificar o resumo, uma coisa fica clara e cristalina: a maquiagem que os lobbies e governos aplicam ao resumo do relato, durante o processo – também relatada pela BBC –, é infelizmente e inquestionavelmente real, e a revolta de uma parte da comunidade científica frente a esta situação não apenas está mais do que justificada, como também, dada a inação, é imprescindível para tentar solucionar a situação.
Há alguns meses, graças a um grupo de cientistas rebeldes (Scientist Rebellion), conseguimos publicar o vazamento do primeiro rascunho desse grupo III e o impacto internacional foi imediato: The Guardian, Der Spiegel, CNBC, Yale University… Dezenas de meios de comunicação, de mais de 35 países, ecoaram a mensagem do alerta vermelho documentado pelo IPCC.
Para dar título aos artigos, os jornalistas costumavam escolher entre duas das pérolas incluídas naquele primeiro rascunho, que as mãos dos cientistas mal haviam tocado. Uma delas, que as emissões devem atingir o pico em 2025 e cair rapidamente, permanece intacta na versão final do resumo para os políticos. O outro grande título, que todas as usinas de carvão e gás existentes devem ser fechadas em aproximadamente uma década, desapareceu completamente do resumo.
Mas não é a única coisa que mudou. Comparando as duas versões, as surpresas são imensas. Encontramos muitos exemplos de mudanças que suavizam um relatório que, se peca por algo desde o início, é pela grande moderação. E acima de tudo, se algo mudou, é o mundo. Os trabalhos analisados no compêndio têm uma data máxima: outubro de 2021.
Desde então, sofremos os primeiros choques graves de uma crise de energia e da cadeia de abastecimentos que há anos vinha se plasmando. Iniciou uma guerra que talvez tenha mudado a política e a economia para sempre, e cada vez mais vozes alertam que estamos às portas de uma grande crise alimentar. Quando tudo se acelera, a vigência das análises se torna ainda mais efêmera.
Provavelmente, este é o último grande trabalho do IPCC que chega a tempo de orientar nossas sociedades a intervir e evitar o descalabro. Alguns acreditam que a direção traçada no relatório é clara, mas lendo o resumo para os responsáveis pelas políticas, a sensação que nos passa é muito mais a de uma civilização que cambaleia instável, enquanto vai dando solavancos. Uma civilização que se sustenta graças a um petróleo cada vez mais escasso, que deve ser progressivamente abandonado, e a uma geleira que está em fase de derretimento cada vez mais acelerada. Tanto a estabilidade climática como a energética dependem de nossa capacidade em aceitar esta situação.
No processo, entre a versão do resumo vazada em agosto e a finalmente publicada, as mudanças mais notáveis são as seguintes:
- Desaparece a menção ao fechamento de usinas de gás e carvão, em uma década. Os lobbies da indústria fóssil conseguiram abrandar o tom geral do resumo dirigido contra sua própria indústria. Sabe-se que o atraso na publicação do relatório ocorreu principalmente por esse motivo. Os países interessados – com destaque para o papel da Arábia Saudita – pressionaram para eliminar tal recomendação;
- Diminui-se o tom em relação à responsabilidade dos 10% mais ricos. No resumo vazado, apontava-se que poluem 10 vezes mais que os 10% mais pobres;
- Desaparecem muitas das referências às emissões diretas da aviação, da indústria do automóvel e do consumo de carne. De fato, a palavra meat desaparece do novo resumo. Estas emissões estão refletidas no relatório recém-publicado associadas a outras do setor e, portanto, sua importância se dilui;
- No primeiro rascunho, alertava-se a respeito dos “interesses criados” como um dos fatores que impossibilitavam o avanço da transição energética. Essa menção, que, sim, aparece no relatório, saiu do sumário, justamente, vítima desses mesmos interesses criados que pressionam os governos. Quem disse que não há poesia nos relatórios científicos?;
- Elimina-se do relatório uma das frases que mais contestava o tecno-otimismo absolutamente predominante: “o custo, o desempenho e a adoção de muitas tecnologias individuais progrediram, mas as taxas de implementação de mudanças tecnológicas são atualmente insuficientes para alcançar objetivos climáticos”. Uma afirmação que colidia completamente com a lógica dos mercados de carbono voluntários e as grandes empresas;
- Sobre o mecanismo de Captura e Sequestro de Carbono, a Arábia Saudita, novamente, junto com outros países como o Reino Unido, batalhou para fortalecer esse ponto polêmico que permite continuar como se nada estivesse acontecendo, demonstrando uma absoluta frivolidade. O tecno-otimismo imperante acredita que uma tecnologia a ser desenvolvida virá magicamente em socorro e permitirá inclusive “continuar utilizando combustíveis fósseis”. Foi introduzido muito material sobre essas tecnologias para justificar a ideia de emissões líquidas zero que tem pouca base científica e que, no entanto, sustenta a tese central do relatório;
- Desaparece do resumo qualquer tímida menção aos problemas com os materiais necessários para a transição energética, que são indispensáveis para o desenvolvimento das energias renováveis, baterias e carros elétricos. No primeiro rascunho, estavam presentes;
- Desaparece também a menção à democracia participativa como uma das principais ferramentas para desatravancar e acelerar uma transição para a qual quase não resta tempo;
- Desaparece completamente o ponto que afirmava que “os ambiciosos objetivos de mitigação e desenvolvimento não podem ser alcançados por meio de mudanças graduais”. A maquiagem é completada com as referências que buscavam ressaltar que não é o suficiente mudanças individuais e graduais.
Felizmente, analisando o relatório completo – livre de pressões –, sim, podemos encontrar um caminho que nos conduz a nada mais e nada menos do que a uma revolução em nossos sistemas energéticos e socioeconômicos, deixando entrever a emergente aposta de uma parte da comunidade científica no decrescimento. É o único caminho que nos resta para enfrentar as múltiplas emergências em que nossas sociedades estão imersas.
A palavra “decrescimento” – cada vez menos tabu – é mencionada 28 vezes no relatório completo, frente a zero no resumo para os políticos. A frase que se referia ao caráter insustentável da sociedade capitalista também é mantida, demonstrando a impecabilidade do relatório.
Pela primeira vez, o IPCC ecoa o que a sociedade civil vem alertando há anos, e alerta, em seus capítulos 14 e 15, sobre o obstáculo apresentado pelo Tratado da Carta da Energia (TCE) e seu mecanismo de Resolução de Litígios entre Investidores e Estados (ISDS) para o desenvolvimento de políticas de mitigação das mudanças climáticas. É que, após passar despercebido por três décadas, hoje este acordo internacional para o setor energético segue protegendo os investimentos em combustíveis fósseis e permitindo que investidores e multinacionais – justamente aqueles que nos levaram a essa encruzilhada – possam processar os Estados quando consideram que legislam contra os seus interesses econômicos, presentes ou futuros. Os números falam por si: só na Europa, a infraestrutura fóssil protegida pelo tratado chega a 344,6 bilhões de euros.
A questão é: podemos abandonar os combustíveis fósseis, sem antes abandonar o TCE? E por que isto não foi incluído no resumo para os políticos?
A essa altura, não basta mais incluir menções corajosas em relatórios cujos resumos são posteriormente minados pelos lobbies. Não só é normal que uma parte da comunidade científica se rebele e passe à ação, é mais do que desejável. É justamente o que precisamos para provocar um debate que parecemos evitar. Esse debate, o elefante na sala, é que precisamos mudar o modelo socioeconômico, e rápido. Precisamos agir, arriscar, para talvez, com sorte, inspirar a sociedade para que volte a se mobilizar. Precisamos abandonar os combustíveis fósseis antes que eles nos abandonem.