Para José Luis Fiori, a catástrofe administrativo deste governo de militares e o fracasso de sua política externa sugerem que qualquer negociação a respeito do futuro do pais deveria começar por dois pontos: a devolução dos militares aos seus quartéis e funções constitucionais; e colocar uma pá de cal na vergonhosa política externa deste governo, começando por um novo tipo de relacionamento com os Estados Unidos.
José Luis Fiori, IHU-Unisinos, 13 de fevereiro de 2021
“Aliás, não existe caso mais exemplar do fracasso desta crença na superioridade do juízo militar do que passou com o próprio ex-Comandante em Chefe do Exército que autoconvencido de sua “genialidade estratégica” e de sua grande “sabedoria moral”, decidiu avalizar em nome das FFAA, e tutelar pessoalmente a operação que levou à presidência do país um psicopata agressivo....”
J.L.Fiori, “Sob os escombros, as digitais de um responsável”, Jornal do Brasil, 1 de janeiro de 2021.
Com a confissão pública de uma das partes, dispensam-se novas provas e argumentos, e só pessoas menos informadas podem seguir negando o envolvimento direto dos militares brasileiros na operação jurídica e midiática, nacional e internacional, que bloqueou a candidatura e prendeu o ex-presidente Luiz Inácio da Silva em 2018, instalando em seguida, na Presidência da República, um indivíduo que faz que governa o país há dois anos, em meio aos escombros de uma administração calamitosa.
Essa conspiração foi ficando cada vez mais transparente com a divulgação das conversas gravadas – verdadeiramente “obscenas” – entre os juízes e procuradores de Curitiba”, apesar de que isto não fosse uma surpresa para os analistas mais atentos que já haviam diagnosticado há muito tempo o verdadeiro papel dos “curitibanos” [1]. Mas agora as coisas mudaram de patamar, com a divulgação da entrevista do Gal. Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército ao tempo da “operação Bolsonaro”, que foi concedida ao diretor do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, e que agora foi publicada no livro General Villas Boas: conversa com o comandante, editado por Celso Castro.
Na entrevista, o general explica com suas próprias palavras seu papel e o de seus oficiais do Alto Comando do Exército, na redação e divulgação da sua famosa postagem nas redes sociais, do dia 3 de abril de 2018, em que ele pressiona explicitamente o Supremo Tribunal Federal a não aceitar o habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula. Diz ele, textualmente, que “recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20 horas” [2]. Deixa claro e explícito que atuou como Comandante em Chefe de uma instituição do Estado, com apoio de sua alta oficialidade, ao fazer uma intervenção anticonstitucional em uma decisão exclusiva do Poder Judiciário. E consta que também fez saber ao amedrontado presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Dias Toffoli, que dispunha de 300 mil soldados para fazer valer a sua opinião. E não há dúvida de que a divulgação, neste momento, dessa entrevista também tem a função política de advertir os atuais comandantes das FFAA, de que não tentem lavar as mãos e se afastar do governo porque todos estão comprometidos com o que passou, e com o que poderá passar daqui para a frente.
A “culpa” é um fenômeno psicológico e jurídico de natureza eminentemente individual, e é muito difícil ou mesmo incorreto atribuir culpa ou punir povos, nações, classes sociais ou instituições. Por isso também me parece incorreto falar da culpa das FFAA brasileiras – como uma instituição – pela “operação Bolsonaro”. Hoje, o foco do debate é outro, inteiramente diferente, e o problema central é o despreparo ou incompetência dos militares para o exercício de funções políticas e técnicas de governo, para as quais não foram preparados nem treinados em suas escolas de guerra. Porque a cada dia que passa aumenta ainda mais a distância entre as expectativas depositadas por certos setores da população brasileira no “mito salvacionista” das FFAA e o desempenho concreto, real e frustrante da maioria dos 6.200 oficiais da ativa e da reserva que ocupam postos-chave em vários níveis do governo Bolsonaro. Fica cada vez mais claro que, por mais bem-intencionados que sejam alguns desses senhores, a grande maioria deles não foi preparada nem capacitada para exercer funções e administrar políticas públicas que não aparecem em seus manuais.
A começar pelo caso patético do próprio presidente, que é capitão da reserva, e que fez sua formação intelectual na escola militar, assim como seu ministro da Saúde, que ainda é general da ativa. O presidente não consegue formular uma ideia que tenha início, meio e fim, e parece que tampouco consegue dizer uma frase que não tenha inúmeros “palavrões” e obscenidades [3]; e seu ministro da Saúde não sabe onde fica o Hemisfério Norte, não conhecia o SUS, e ainda não conseguiu entender o que seja uma pandemia, ou ter alguma ideia de como planejar uma campanha nacional de vacinação. Estes dois exemplos ultrapassam qualquer limite e já foram muito comentados pela imprensa nacional e internacional. E o que dizer do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, sempre tão agressivo e mal-humorado, que não conseguiu identificar um pacote de 39 quilos de cocaína dentro do avião do presidente da República que lhe toca proteger; ou do “ministro astronauta”, da Ciência e Tecnologia, que está simplesmente acabando com a pesquisa científica no Brasil; ou ainda do ministro de Minas e Energia, que não conseguiu prever nem sanar o problema do apagão energético em Amapá e Roraima, nem tampouco impedir o aumento do preço da energia, que está onerando pesadamente o orçamento doméstico dos brasileiros, e assim por diante, com uma lista interminável de militares da ativa e da reserva que foram alçados a suas posições governamentais graças – em última instância – à ingenuidade do homem comum desesperado e desamparado que acabou depositando suas esperanças na superioridade técnica e moral desses senhores de farda ou de pijama. Pessoas que até podem ser homens de boa vontade e boas intenções, mas que foram treinados para tratar de canhões, navios, cavalos, ou aviões de guerra, muito mais do que de ciência, educação, saúde, arte, infraestrutura, ou mesmo de tecnologias de ponta, para não falar do seu mais absoluto despreparo com relação à vida política dos partidos e dos demais poderes da República, com seus respectivos deveres e obrigações.
Assim mesmo, deve-se reconhecer que a maior derrota do governo atual, no tempo recente, não foi obra direta de nenhum desses militares e veio do campo da política internacional, sob responsabilidade de um homem do Itamaraty. Hoje todos já sabem que o atual chanceler vê o mundo contemporâneo como uma grande batalha final e apocalítica entre a civilização judaico-cristã e as demais “forças do mal” ao redor do mundo, tendo os chineses à frente de todos. E ele sempre se considerou um soldado a mais das “tropas do bem”, comandadas por Donald Trump, na guerra global em defesa da fé cristã e dos valores e arquétipos da civilização ocidental. Por isso mesmo, e pelo tamanho do despropósito, os chineses parecem nunca lhe terem dedicado maior atenção, e como são pragmáticos, apenas esperam que o tempo o devolva ao seu merecido anonimato anterior à sua surpreendente nomeação como ministro. Os europeus, pelo seu lado, também já colocaram o Brasil e seu ministro de Relações Exteriores em stand by, ao excluírem o Brasil de todas as iniciativas e reuniões sobre a questão climática e sanitária, e suspenderem seus acordos comerciais com o Mercosul até que Brasil mude sua política ambiental. São todos “gatos escaldados” e estão apenas esperando que esse senhor saia da chancelaria.
O problema mais grave e uma das mais recentes derrotas do Brasil, além da saúde e da economia, veio do campo da política externa, e da própria América do Sul. Tudo começou há mais tempo, dois anos atrás, e mais precisamente, dois dias depois da posse do novo ministro das Relações Exteriores do Brasil, quando o ministro compareceu à reunião do Grupo de Lima do siaem 4 de janeiro de 2019, ocasião em que foi “portador” da nova estratégia americana desenhada por Mike Pompeo com vistas ao cerco e à derrubada do governo venezuelano de Nicolás Maduro, que havia sido reeleito no ano anterior com o apoio de 67,8% dos votos, e que tomaria posse para seu novo mandato no dia 10 de janeiro. Logo antes de viajar, o chanceler brasileiro reuniu-se em Brasília com Mike Pompeo, chefe do Departamento de Estado norte-americano, que havia estado com o presidente da Colômbia a caminho de Brasília, e que também se reunira com o ministro das Relações Exteriores do Peru na capital brasileira antes de participar, por teleconferência, da reunião do Grupo de Lima, do qual os EUA não participam oficialmente.
A nova estratégia era clara e agressiva e visava à derrubada imediata do governo de Nicolás Maduro, envolvendo inclusive a possibilidade de uma invasão militar do território venezuelano. O novo chanceler brasileiro foi colocado à frente dessa operação, que começou com a autoproclamação e o reconhecimento imediato, pelo Brasil e pelos EUA, de Juan Guaidó como presidente da Venezuela, no dia 23 de janeiro de 2019; seguiu-se a fracassada “invasão humanitária” do território venezuelano, que foi tentada no dia 21 de fevereiro, comandada pelo novo chanceler brasileiro, sob as ordens de John Bolton e Mike Pompeo. Depois disso, ainda em 2019, o Brasil teve papel direto na derrubada do governo de Evo Morales e na instalação de um governo títere que rompeu imediatamente suas relações diplomáticas com o governo venezuelano. Até ali, todos os ventos pareciam soprar a favor da nova estratégia desenhada por Bolton/Pompeo e comandada pelo delirante chanceler brasileiro, com o apoio agora de todo o Grupo de Lima e Equador, com a exceção do México – a não ser, obviamente, pela hilária “invasão humanitária”, na qual o chanceler fez o papel do “bobo a corte”.
Assim, desde 2020, o chanceler brasileiro veio sofrendo sucessivos reveses que culminaram com a derrota completa de sua “estratégia venezuelana”, e do próprio projeto ideológico expansionista e de extrema-direita, do governo Bolsonaro. A virada começou de fato com a vitória das forças de esquerda no México, ainda em 2018, seguida pela vitória de Alberto Fernandez na Argentina, em outubro de 2019, e pela nova vitória da esquerda na Bolívia, em outubro de 2020, com o apoteótico retorno de Evo Morales ao país e a fuga, para os EUA, da maioria dos golpistas de direita protegidos e patrocinados pelo chanceler brasileiro. Depois, em fevereiro de 2021, as forças de esquerda venceram de novo, no primeiro turno, as eleições presidenciais do Equador e devem confirmar sua vitória no segundo turno que se realizará no mês de abril, quando o Chile irá eleger sua nova Assembleia Constituinte, que foi uma grande conquista das forças progressistas daquele país. E o mais provável é que essas forças saiam vitoriosas das eleições presidenciais que se realizarão em novembro de 2021. Também não é impossível que ocorra algo parecido nas eleições presidenciais do Peru em abril deste ano, e nas eleições presidenciais colombianas de 2021.
Mas além desta “virada à esquerda” na América Latina, o chanceler brasileiro sofreu mais dois reveses acachapantes: a derrota de Donald Trump nos EUA, e a decisão da União Europeia de retirar seu reconhecimento oficial de Juan Guaidó como presidente autoproclamado da Venezuela. É difícil que a política externa de algum país sofra uma sucessão de fracassos tão rápidos, tão arrasadores e em tão pouco tempo. E só se consegue entender este rápido isolamento do Brasil, dentro do seu próprio continente, tendo em conta a mais completa idiotice ideológica e geopolítica de um ministro das Relações Exteriores que pauta seu comportamento e sua política externa – em pleno século XXI – pela sua visão binária do mundo, e pela sua leitura medieval dos textos bíblicos.
A catástrofe administrativo deste governo de militares, e o fracasso de sua política externa sugerem com insistência que qualquer negociação a respeito do futuro do pais deveria começar por do pontos fundamentais: o primeiro, seria a devolução dos militares aos seus quartéis e funções constitucionais, sem nenhum tipo de concessão ou distinção entre “bons” e “maus” militares, apenas militares que cumprem ou que não cumprem suas obrigações legais; e o segundo, seria colocar uma pá de cal em cima da vergonhosa política externa deste governo, começando por um novo tipo de relacionamento com os Estados Unidos, sem fanfarronice nem arrogância, mas com altivez soberana e sem nenhum tipo de vassalagem, diplomática, jurídico eu militar.
Referências
[1] Fiori, J. L. e Nozaki, W. Conspiração e corrupção: uma hipótese muito provável. Le Monde Diplomatique, 30 jul. 2019.
[2] Citado em DCM, “General Villas Boas revela atuação política do Exército que culminou na eleição da Bolsonaro”, 10 fev. 2021.
[3] Como no caso de uma entrevista recente, em que o Presidente da Brasil pôde exibir com todas as letras o seu estilo literário inconfundível, quando foi perguntado sobre os gastos do governo com a compra de leite condensado e respondeu de bate-pronto: “Vai para a puta que o pariu rapaz, imprensa de merda. É para encher o rabo de vocês da imprensa essas latas de leite condensado” (J.M. Bolsonaro, in “Leite condensado é para enfiar no rabo da imprensa”, matéria publicada no site UOL Notícias, em 28 jan. 2021.
José Luis Fiori é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional (PEPI), coordenador do GP da UFRJ/CNPQ “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”, coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP), autor de O Poder global e a nova geopolítica das nações, História, estratégia e desenvolvimento e Sobre a Guerra.