Os ministros do STF terão a oportunidade de colocar um fim às interpretações equivocadas quanto aos direitos indígenas e pacificar as demandas processuais contrárias às demarcações de terras e, neste sentido, dar segurança jurídica aos povos indígenas. Evitar-se-ão com isso distorções administrativas, legislativas e jurídicas.
Roberto Liebgott, CIMI, 16 de outubro de 2020
O Supremo Tribunal Federal/STF pautou para julgamento, no dia 28 de outubro, o Recurso Extraordinário 1.017.365, que trata de um questionamento do Estado de Santa Catarina sobre uma parcela da terra indígena La Klaño, do povo Xokleng, município de Ibirama. Esse recurso, depois de ser apreciado pelo ministro Edson Fachin, e submetido aos demais ministros da Suprema Corte, foi caracterizado como sendo de repercussão geral, ou seja, todas as demandas processuais relativas às demarcações de terras deverão seguir as orientações jurídicas que serão definidas neste julgamento.
Os ministros apreciarão duas teses jurídicas, a do indigenato, que foi expressa na Constituição Federal de 1988 e garante aos índios a demarcação de suas terras como direitos originários e imprescritíveis, ou seja, assegura-se que os direitos dos indígenas foram constituídos a partir de um reconhecimento, de uma garantia e de legitimidade que antecede a colonização e, portanto, estes mesmos direitos valem para sempre, não se acabam com o passar do tempo. De outro lado, há a tese política-jurídica do marco temporal, que condiciona e restringe os direitos indígenas às terras reivindicadas se nelas estivessem presentes, ocupando-as, por ocasião da promulgação da Lei Maior, em 05 de outubro de 1988. Por essa tese, os indígenas teriam direitos reconhecidos e refletidos até a Constituição Federal de 1988. Não havendo, portanto, futuro para as comunidades indígenas. O marco temporal rompe com a lógica de qualquer regramento jurídico.
Os ministros do STF terão a oportunidade de colocar um fim às interpretações equivocadas quanto aos direitos indígenas e pacificar as demandas processuais contrárias às demarcações de terras e, neste sentido, dar segurança jurídica aos povos indígenas. Evitar-se-ão com isso distorções administrativas, legislativas e jurídicas.
Mas, se eventualmente a decisão for pela manutenção de um marco temporal, se legitimará, a partir do Poder Judiciário, a antipolítica proposta por Bolsonaro, fundamentada no tripé do genocídio indígena: a desconstitucionalizacão dos direitos, a desterritorialização e a integração forçada dos povos ao modo de vida predador de nossa sociedade.
Esse período em que vivenciamos exacerbadas crises social, política, econômica, ambiental e sanitária pode constituir-se também num tempo propício para que o STF atue com coragem, discernimento e justiça.
Se assim procederem os ministros do STF, poderão dormir o sono dos justos, já que estarão reparando injustiças históricas e corrigindo rumos que levam a perversidade e ao extermínio dos povos.
Há, da parte dos povos indígenas, grandes expectativas e esperanças de que este julgamento será garantidor da Constituição Federal, a Lei Maior e a mais cidadã que já tivemos, em relação com todas as demais que vigoram no país.
Àqueles que militam e lutam em defesa dos direitos humanos, no Brasil e no mundo, esperam de nossos ministros, a firmeza jurídica para combater o genocídio dos povos, anunciado tácita e expressamente pelo governo Bolsonaro.
As violências contra os povos indígenas, registradas em relatório pelo Conselho Indigenista Missionário, demonstram haver no Brasil – a partir dos discursos do presidente da República contra às demarcações de terras – a consolidação de uma espécie de organização criminosa que fomenta, articula e promove as invasões, incêndios, desmatamentos, grilagem e garimpagem dentro das áreas indígenas. Estas práticas hediondas colocam em risco permanente a natureza, o habitat e a vida dos 305 povos originários e todas as comunidades tradicionais existentes no Brasil.
Por isso, seguimos todos, em defesa da Constituição Federal e contra o marco temporal.
Roberto Liebgott é coordenador do Cimi Regional Sul.
"Governo tenta intencionalmente destruir povos indígenas". Entrevista com Carlos Frederico Marés
Se nos governos anteriores havia desaprovação a ações pontuais ligadas aos povos tradicionais, no governo de Jair Bolsonaro as críticas são direcionadas a tantas áreas que a questão indígena acaba diluída em meio a uma desaprovação maior e mais geral.
É essa a avaliação do jurista Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito Agrário e Socioambiental na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Ele foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre 1999 e 2000.
Para o jurista, a política ambiental da atual gestão, simplesmente, não existe. "Até o ministro [do Meio Ambiente] diz que quer destruir, então não tem ninguém no governo que seja a favor do meio ambiente", afirma.
Em entrevista à DW Brasil, Marés também comenta o enfraquecimento e desmonte gradual da Funai nos últimos anos, fala sobre o papel do governo federal em conter o avanço do coronavírus e dos recentes incêndios em terras indígenas e explica como a demarcação de terras ganhou cada vez mais ares de processo político em vez de técnico.
Murilo Basso entrevista Carlos Frederico Marés de Souza Filho, Deutsche Welle, 16 de outubro de 2020
Você foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre 1999 e 2000. Em essência, o que mudou de lá para cá em relação à questão indígena no Brasil?
Na virada de 1999 para 2000, os povos indígenas estavam muito expostos na mídia por causa dos 500 anos [do descobrimento]. Havia, então, essa exposição muito grande e, consequentemente, uma articulação muito grande. Justamente em 2000, houve uma repressão policial ao movimento indígena na festa dos 500 anos em Porto Seguro (BA), razão pela qual pedi demissão do cargo. Não podia compactuar com uma ação daquelas.
Quanto à Funai, nesses últimos 20 anos, ela foi sendo deteriorada do ponto de vista da ação possível. Até 2016, mais ou menos, embora estivesse fraca, ela ainda tinha dinheiro, funcionários e, portanto, ação. Mas de quatro anos para cá ela foi perdendo tudo isso. Foram muitas aposentadorias sem reposição de quadro funcional e uma deterioração da política significativa. Um exemplo é a proteção dos povos indígenas chamados "isolados”, que demandam somente uma aproximação muito distante. Essa é uma política correta e que não custa muito. Mas nos últimos anos, e principalmente nos primeiros dois anos de gestão [Jair] Bolsonaro, essa política foi rompida. Trata-se de uma política desastrosa, mortal. O correto é proteger as áreas de povos isolados e não deixar ninguém entrar.
A diferença, então, é que houve uma piora funcional e política. A Funai deixou de ser uma intermediária entre governo e povos indígenas para ela mesma ser contrária a essa população. O governo atual incentiva o ingresso em terras indígenas, a ocupação ilegal de terras, e a Funai não faz nada. E não adianta os indígenas correrem para a Funai porque a Funai "corre com eles”.
No fim de agosto, o presidente Bolsonaro afirmou em uma live que há "índios evoluídos" no Brasil, que poderiam ter "mais liberdade sobre sua terra"...
Não posso atribuir isso à ignorância porque o nome disso é racismo. Essa fala é racista e genocida. É uma postura inimiga dos indígenas, porque ele acha que os povos indígenas atrapalham. Quando ele diz que os indígenas devem ter mais liberdade, eu concordo plenamente, mas qual é a liberdade que os indígenas querem? Que ninguém entre em suas terras, que a natureza não seja destruída, que não tenha garimpeiro, madeireiro por lá. Os povos indígenas têm pouca força para usufruir dessa liberdade e quem tem que garanti-la é exatamente o Estado brasileiro. O Estado precisa ouvir os indígenas. Os ianomâmis [grupo que vive na floresta amazônica, na fronteira entre Venezuela e Brasil], por exemplo, eu sei o que vão responder: tirem os garimpeiros das nossas terras.
Os indígenas querem liberdade, mas não para trazer gente branca para a terra deles, e sim para impedir que haja exploração. E o que o presidente quer dizer é que as terras indígenas devem ser mais livres para quem quiser invadir.
Um relatório divulgado recentemente pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), apontou que no primeiro ano de governo Bolsonaro (2019) as invasões em terras indígenas cresceram 135%. É exagero dizer que o atual governo está falhando na proteção aos povos indígenas?
"Falha" é uma palavra gentil. O governo não está falhando, está intencionalmente tentando destruir os povos indígenas. E isso é genocídio.
Até o momento foram registrados 36 mil casos de contaminação pela Covid-19 entre indígenas, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O senhor acredita que o estabelecimento de barreiras sanitárias em terras indígenas por parte do Governo Federal, previsto em Medida Provisória publicada no último dia 1°, ajudará, de forma efetiva, a conter esse cenário? Além disso, o governo não demorou muito para tomar ações a respeito? A pandemia começou em março.
Essa demora foi intencional. Essas barreiras sanitárias eram muito fáceis de terem sido feitas há seis meses. Alguns povos, inclusive, fizeram barreiras por conta própria, mas mesmo assim teve missionário que quis entrar [nas terras], pessoas do governo, gente para entregar remédio. Há uma tensão muito grande em relação ao coronavírus e os povos indígenas.
Somente em setembro, mais de uma centena de focos de incêndio avançaram sobre terras indígenas na região do Pantanal. Em agosto, foram 200 focos. Ainda que queimadas sejam esperadas para a região nesta época do ano, os números não são altos demais? Qual é o papel do Poder Público para proteger as terras indígenas?
O grande drama que vive o Pantanal, assim como o Cerrado e a Amazônia, é o desmatamento irregular. Sempre que acontece um episódio como esses incêndios temos que nos perguntar: alguém leva vantagem nisso? O incêndio é bom para alguém?
Nesses três biomas, há quem leve vantagem com os incêndios, que é quem quer ocupar terra, que são pessoas que não são de lá. Não são os indígenas, não são os povos tradicionais, os quilombolas. Agora, para quem quer expandir suas terras, o incêndio é bom. Lembro também do Cerrado porque é uma região da qual se fala menos, mas que está sendo duramente castigada pela abertura e derrubada da vegetação nativa para dar lugar a grandes monoculturas.
Podemos então dizer que hoje a demarcação das terras indígenas se transformou em um processo político e não técnico?
A resposta é sim, apesar de que o caráter político sempre esteve presente. Os indígenas têm garantido na Constituição Federal direito à terra que ocupam. Eles têm esse direito com ou sem demarcação. A demarcação é uma providência que a Constituição determinou ao Estado brasileiro para que haja melhor proteção da terra. A ideia, portanto, não é definir qual deve ser essa terra, mas dar proteção à terra que já é do povo. Só que as forças contrárias aos povos indígenas sabem que, uma vez demarcada, é mais difícil invadir a terra, matar índio, tocar fogo. Assim, politicamente, serão contra a demarcação. Essa ação contrária aos povos indígenas é uma ação política, e acaba transformando a demarcação em um ato político.
Já no governo [Michel] Temer, mas com mais força a partir do governo Bolsonaro, veio uma vontade política muito forte de não demarcar. Mais ainda: tentar reverter as demarcações já feiras. E aqui esse adendo vale tanto para as terras indígenas como para os quilombolas. Antes de ser eleito, inclusive, o presidente Bolsonaro declarou que não iria demarcar nenhum centímetro a mais de terra indígena.
Para o senhor, quais são as principais diferenças entre o modo como o governo Bolsonaro trata a questão indígena em relação a governos anteriores? Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), por exemplo, receberam muitas críticas no sentido de que deveriam ter demarcado mais terras.
O governo Bolsonaro recebe críticas em tantas áreas – desenvolvimento, direitos humanos, etc – que a questão indígena é "só" mais uma coisa. No governo do PT houve fortes críticas à política ambiental, mas eram sempre críticas localizadas. A questão de [usina hidrelétrica de] Belo Monte, por exemplo, do rio Xingu, da Usina Hidrelétrica de Jirau. Eram ações específicas. Agora, no governo Bolsonaro, a política ambiental não existe, é de destruição. Até o ministro [do Meio Ambiente, Ricardo Salles] diz que quer destruir, então não tem ninguém no governo que diga que é a favor do meio ambiente. Nos outros governos ao menos tinha alguém para defender. Nesse sentido, as críticas ambientais acabam diluídas em meio a uma crítica maior e mais geral.
Costuma-se contrapor o direito dos povos indígenas ao desenvolvimento nacional. Essa contraposição já não seria, por si só, contraditória?
Dizer que a proteção aos povos indígenas é contrária ao desenvolvimento nacional é uma mentira. Não podemos admitir um desenvolvimento nacional com destruição da natureza, e as terras indígenas preservam a natureza. Quem é contrário a isso está ultrapassado. Uma das maiores preocupações mundiais é a alimentação. Mas a falta de comida significa que temos que invadir terras indígenas? Elas não são o lugar para produzir comida. É preciso pensar em desenvolvimento atrelado à preservação da natureza. Destruir as terras indígenas vai piorar a condição da água, gerando reflexos em todo o país. Dependemos da Amazônia, da Mata Atlântica. Tudo o que for destruidor da natureza prejudica o nosso desenvolvimento. Não se trata, portanto, de mera contradição, mas de uma mentira.