Protesto em SP chama atenção para o drama dos entregadores que mantêm cidades vivas, em meio à quarentena. Arriscam a saúde. Ganham misérias. Não têm direitos, segurança ou futuro. O capital quer que, breve, todos sejamos assim.
Henrique Amorim e Felipe Moda, IHU Online, 21 de abril de 2020
Se há algumas semanas eram invisíveis aos olhos de parte considerável da população e até mesmo indesejados pelos mais raivosos por “atrapalharem o trânsito”, no atual momento de pandemia da covid-19 os entregadores por aplicativo tornaram-se os principais frequentadores das grandes avenidas das capitais brasileiras. Entendermos o que está em jogo na chamada uberização do mercado de trabalho – ou, em termos acadêmicos, no trabalho por aplicativo/plataforma – é central para compreendermos o porquê de milhares de brasileiros serem forçados a ignorar a política de isolamento social recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e seguirem nas ruas em busca de alguma renda.
Os trabalhadores por aplicativo representam hoje uma das mais degradadas e precarizadas formas de trabalho no Brasil. Sem nenhum direito trabalhista garantido, a sociedade, o Estado e o atual governo davam de ombros para esses trabalhadores que seguiam e ainda seguem no mercado trabalhando “livres como pássaros”. Estima-se que, em 2019, 4 milhões de brasileiros estejam “empregados” em empresas por aplicativos, tais como a Uber, o iFood, a 99 e a Rappi. Jogados à própria sorte, estes trabalhadores dependem de seguirem em suas motos e bicicletas para garantirem a sua manutenção financeira, já que os seus rendimentos são compostos exclusivamente por um percentual do valor total cobrado pelas empresas dos usuários do serviço. Ou seja, quem não trabalhar, ou até mesmo quem ficar na rua e não receber alguma chamada, não recebe nada ao final do dia.
Não representando uma novidade no mercado de trabalho brasileiro, trabalhar para “ganhar o do dia” é estruturante no nosso país, com esta nova forma de trabalho mediada por aplicativos somando-se a um longo processo de informalidade da nossa força de trabalho. Desde o início do trabalho assalariado no Brasil e mesmo após a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na década de 1940, boa parte da população brasileira sempre sobreviveu de trabalhos não regulados pelo Estado e uma outra importante parcela se inseriu em ocupações com direitos trabalhistas garantidos, porém com baixa remuneração. Para ilustrarmos a atualidade desta estrutura de trabalho, em 2017 tínhamos 34,31 milhões de brasileiros trabalhando por conta própria ou em vagas sem a carteira de trabalho assinada, contra 33,32 milhões ocupados em vagas formais.
Tais números devem ser somados aos 12,31 milhões de desempregados existentes naquele ano. Foi nesse ano que Michel Temer, à época Presidente da República, aprovou, com voto favorável do então deputado Jair Bolsonaro, a (anti) Reforma Trabalhista, vinculando tal medida a uma falaciosa promessa de expansão do emprego e da formalização de postos de trabalho. Dois anos após a aprovação desta contrarreforma, temos que estas características do mercado de trabalho brasileiro não foram modificadas, já que o índice de desemprego que era de 12,2% da População Economicamente Ativa (PEA) em 2017 chegou, em 2019, a 12,3% e o total de vagas com carteira assinada subiu apenas de 38 milhões em 2017 para 39 milhões em 2019, mesmo com a contrarreforma permitindo a formalização de uma maior gama de precários contratos de trabalho, o que também contribuiu para que a taxa de informalidade no mercado de trabalho chegasse a 41% em 2019, o maior percentual atingido nos últimos cinco anos.
É no cenário de sucessivos ataques aos direitos trabalhistas e sociais que chegamos a este grave momento de pandemia. Se hoje Bolsonaro recebe vídeos de brasileiros desesperados querendo voltar aos seus trabalhos e os utiliza para chantagear e ameaçar o restante da população, afirmando que “o Brasil não pode parar”, é necessário não apagarmos o papel ativo ao qual o próprio cumpriu para a atual condição dos trabalhadores.
O trabalho por aplicativo: uma síntese da informalidade contemporânea
Os entregadores e motoristas que prestam serviços para empresas como a Uber, a iFood, a Loggi e a Rappi estão sendo enquadrados como “trabalhadores por aplicativo”. O arranjo tecnológico envolvido nesta forma de trabalho é o surgimento das empresas-aplicativos, empresas que se colocam como mediadoras do encontro entre prestadores de serviço com consumidores, cobrando uma porcentagem do serviço prestado decorrente deste encontro. Um aspecto importante é o fato de essas empresas estarem registradas no setor de tecnologia, colocando como de sua responsabilidade apenas a manutenção da infraestrutura digital que permite este “encontro” entre trabalhadores e consumidores.
Neste modelo de empresas, os profissionais não são contratados pelas corporações, sendo considerados prestadores terceiros autônomos. Entretanto, realizam seu trabalho de maneira minuciosamente controlada e submetidos a um alto grau de subordinação. Os aplicativos indicam aos entregadores e motoristas detalhadamente como cada atividade deve ser realizada, informando a eles, por exemplo, em que ruas devem passar e o tempo que será gasto com a entrega, com qualquer atitude que contrarie essas informações sendo punida, muitas vezes no bolso ou desvinculando os trabalhadores da plataforma por determinado período de tempo.
As empresas-aplicativos não estipulam a jornada, o local de trabalho e não exigem exclusividade na prestação de serviço. Desta forma, os “parceiros” e as “parceiras” têm, na opinião das empresas, autonomia para decidirem onde, quando e quanto tempo gostariam de trabalhar. Portanto, estariam “livres” para organizar o seu trabalho da maneira que lhes for a mais conveniente. Entretanto, como a remuneração destes trabalhos é composta somente por um percentual do valor cobrado pelo serviço executado, todo o tempo existente torna-se, em potencial, tempo de trabalho. A remuneração apenas pelas horas efetivamente trabalhadas faz com que todos os intervalos de tempo (o descanso, a alimentação, a espera por uma nova chamada, o lazer, por exemplo) sejam vistos como perda de possíveis rendimentos. Assim, estamos promovendo os trabalhadores just in time, trabalhadores que estão sempre à disposição para o trabalho, bastando apenas um toque em seus aparelhos telefônicos para que comecem a exercer suas atividades.
Por estas características, a pandemia de um vírus altamente transmissível faz com que os trabalhadores por aplicativo enfrentem um terrível dilema: ou cuidam da sua saúde, ou vão para as ruas em busca do seu rendimento diário. A dificuldade em tomar esta decisão é tamanha que duas categorias destes trabalhadores têm tido ações opostas nesta crise. Enquanto os motoristas saem às ruas e não encontram clientes para serem transportados, levando muitos deles a ficar forçosamente em suas casas e ver assim sua renda mensal diminuir drasticamente, entregadores vislumbram um possível aumento de serviços de entrega, tornando altamente sedutor quebrar a política de isolamento social recomendada pelos profissionais da saúde e pela OMS.
Ser entregador em tempos de pandemia: o que as empresas e o governo estão fazendo?
“Facilitamos a sua vida”, esta é a frase em destaque no site de uma das empresas-aplicativo. A comodidade e os preços baixos são os principais atrativos para os consumidores do serviço e, quando sair de casa se torna perigoso, solicitar que as compras sejam entregues na porta de casa ganha uma atratividade ainda maior. Somente a iFood registrou em março um aumento de 400% nas entregas de produtos de limpeza e 70% em outros itens de supermercado. Como a pandemia está influenciando diretamente a renda da população, o número mensal de pessoas, buscando trabalhar como entregador na empresa, saltou de 85 mil em fevereiro para 175 mil em março. Assim, segundo relato dos entregadores, o aumento de pedidos não está levando a um aumento de renda, pois cresce proporcionalmente o número de entregadores nas ruas. O ganho médio diário segue sendo de 25 reais para os que estão começando na profissão.
Este grande crescimento não se restringe ao iFood. A Rappi declarou que deve triplicar o número de entregadores no Brasil e que nos dois primeiros meses de 2020, portanto antes da crise, teve uma alta de 30% de pedidos via sua plataforma. Já a Loggi afirma estar preparada para atender o triplo do número de entregas diárias. Contrariando as recomendações do ministério da Saúde e vendo na crise uma oportunidade, circulam em diversos grupos em redes sociais as mensagens enviadas por estas empresas aos entregadores incentivando-os a irem às ruas.
Pressionados a diminuir os riscos existentes neste trabalho, já que a exposição ao contato social pode infectar tanto os entregadores como o restante da população (e, caso isto ocorra, afetar os ganhos das corporações), empresas e governos buscam, pela primeira vez, pensar medidas que visem a assegurar alguma forma de garantia de renda e segurança aos entregadores. Pelo lado das empresas, algumas afirmam que irão medir a temperatura e distribuir álcool em gel e máscaras para seus “parceiros”. Entretanto, cabe aos entregadores se dirigirem até os poucos locais onde é realizada esta distribuição, fazendo com que muitos prefiram comprar os seus próprios equipamentos de segurança. Aos que contraírem a covid-19 e forem obrigados a ficar em quarentena, as plataformas dizem montar um fundo de auxílio para garantir a renda dos entregadores. Porém, observando de perto, este auxílio é de apenas 14 dias e o valor destinado a cada trabalhador ainda não foi divulgado pelas empresas.
Os poderes judiciário e legislativo também foram forçados a formular medidas que obriguem as empresas a prestar proteção aos trabalhadores. Uma recente decisão liminar da Justiça do Trabalho de São Paulo determinou que a iFood e a Rappi garantam assistência financeira, de um salário mínimo, e materiais de higienização a entregadores contaminados pelo coronavírus e aos que fazem parte do grupo de risco. Além disso, solicitou que elas pensem em medidas que diminuam os riscos de contágio junto aos estabelecimentos tomadores do serviço, como locais de retirada de mercadorias com menor contato social. Tal decisão foi derrubada por uma das empresas apenas um dia após a sua publicação, alegando que ela contraria o seu status de não vínculo empregatício com os entregadores. Já no Senado foi aprovada uma lei que limita a 15% a taxa retida pela empresa por cada prestação de serviço, visando a aumentar os rendimentos dos trabalhadores por aplicativo.
Hoje, no caso dos motoristas, por exemplo, a taxa de retenção média é de 25%, podendo chegar em algumas corridas até a 40%. Já entre os entregadores, a composição dos seus ganhos conta com uma parte fixa recebida pela realização de cada entrega e uma taxa variável, cobrada dos usuários, levando em conta o tempo e a distância percorrida, com uma média de 25% desta taxa sendo retida pelas empresas. Para justificar este projeto de lei, os proponentes alegam que esses profissionais estão sujeitos a um maior risco de contaminação pela covid-19, necessitando assim de alguma contrapartida financeira por trabalharem durante o período da pandemia. Esta lei ainda não foi aprovada na Câmara Federal e não está vigorando.
Assim, efetivamente nada está de fato sendo garantido a estes trabalhadores até o momento. Entretanto, por que não ouvimos do Estado brasileiro, em todas as suas frentes, manifestar a necessidade de ampliação dos direitos desses trabalhadores antes da pandemia do Covid-19? Por que apenas agora? Oportunismo ou tomada de consciência?
Mudar as estruturas
É um consenso entre economistas que a recente pandemia terá como consequência uma crise econômica mundial profunda e de médio ou até longo prazo, com o Fundo Monetário Internacional já prevendo uma recessão maior que a de 2008. Isto trará um impacto gigantesco na forma de se trabalhar no mundo, com os primeiros sinais já à mostra. Nos EUA, 22 milhões de pessoas (número que equivale a duas vezes a população de Portugal) solicitaram auxílio-desemprego nas últimas semanas, um recorde no país. Na Noruega, a taxa de desemprego saltou de 2,3% para 10%, taxa que se mantinha estável desde o pós-II Guerra e, em recente pesquisa do Datafolha, 69% dos brasileiros preveem que vão perder renda na crise do coronavírus.
É para estas pessoas, em especial as mais desassistidas historicamente pelo Estado, que Bolsonaro, como um suposto grande salvador, mira seus discursos. Jogando com o desespero da população que vê sua renda secar, o presidente da República finge não haver alternativa para a garantia de renda sem afetar os cuidados com a saúde. Coloca-se como a figura que está preocupada com a manutenção dos empregos da população. Entretanto, aumentando o drama populacional – e também a atratividade do seu discurso –, segurou por mais de uma semana a liberação da renda básica emergencial para as pessoas de baixa renda e editou Medidas Provisórias que instituem o arrocho salarial e não garantem estabilidade no emprego para aqueles que tiveram seu ritmo de trabalho afetado pela pandemia, como na recente MP 936, escancarando o cinismo do atual governo.
Muitos pesquisadores da área da Saúde acreditam que as características do Covid-19 imponham por alguns anos períodos intervalados de quarentena e de contato social. Assim, além das medidas urgentes, extremamente necessárias, que devem ser tomadas para amenizar os impactos da situação atual, é preciso levantarmos o debate sobre mudanças de longo prazo nas relações de trabalho, permitindo que a atual situação não se repita. Neste sentido, o Estado deve cumprir um papel ativo para socorrer os trabalhadores informais e os micro e pequenos empreendimentos, evitando a eclosão de um aumento expressivo do número de desempregados e de trabalhos ainda mais precários.
Historicamente, o que vemos em momentos de crise econômica é o aumento do poder monopolista das grandes empresas e a piora na qualidade de vida das classes trabalhadoras. A crise não gerará automaticamente maior solidariedade social e o capital, se tudo ocorrer como antes, concentrará ainda mais riqueza, haja vista que os micro e pequenos empresários tendem, se não contarem com o investimento substancial do Estado, a quebrar, abrindo espaço para a concentração de renda entre as grandes corporações. Para que este investimento estatal ocorra de forma efetiva, é urgente aplicarmos medidas que taxem os bancos e as grandes fortunas, de distribuição de renda e de valorização do trabalho. Somente com políticas efetivas de transferência de renda, de combate à desigualdade social e de fortalecimento dos serviços públicos superaremos a crise, seja em seu lado sanitário ou em sua face social e econômica.
Estas semanas de crise estão fazendo com que certas ocupações profissionais sejam demandadas com grande frequência pela população: caixas de supermercado, garis, enfermeiros, entregadores por aplicativo, entre outros. Essas e outras profissões têm em comum a precariedade das suas relações de trabalho, como baixos salários, falta de segurança para desempenharem suas atividades e contratos marcados pela terceirização e intermitência. Devemos aproveitar este momento de crise para compreendermos a importância destes trabalhos, e do trabalho em geral, e editar políticas visando a sua valorização. Políticas que não se caracterizem apenas por elementos paliativos ou de combate à crise, mas pela garantia de direitos.
No caso do trabalho por aplicativo é preciso combatermos de frente o seu modo de funcionamento. Diversos estudos já demonstraram a falácia em classificar estes trabalhadores como prestadores autônomos terceiros, tal como defendido pelas empresas, escancarando a relação de subordinação existente entre eles e as plataformas para a realização dessas atividades. Tal característica já foi inclusive reconhecida por cortes em diferentes regiões do mundo, como na Colômbia, na França e na Califórnia (EUA). Ou seja, os parâmetros para mudar esta condição precária já estão postos, falta vontade política para resolver o problema. Se dependermos dos que sempre viraram as costas à classe trabalhadora para mudarmos esta realidade, a tendência é que as características deste trabalho sigam como estão e, por isto, é fundamental a pressão dos trabalhadores, com apoio da sociedade, para a conquista dos seus direitos, tanto para estas ocupações profissionais, quanto para toda a classe trabalhadora.
Antes lobistas de companhias de plano de saúde, hoje usando coletes e defendendo o SUS; antes inimigos da educação e dos servidores públicos em geral, agora conclamando o Estado e sociedade para atuarem unidos pelo objetivo único de salvar vidas; antes a ciência como filha bastarda, agora a única que pode dar resposta definitiva ao combate ao coronavírus; antes uma política de reformas (anti)trabalhistas, agora a necessidade de recorrer a muitas categorias profissionais precarizadas para garantir o isolamento da população em suas casas. Não podemos nos deixar enganar, se a sociedade não se organizar politicamente para pressionar o Estado a ampliar as políticas sociais e de valorização do trabalho, passada a crise os lobistas, os stalkers de servidores públicos, as políticas de redução de investimentos na ciência e educação e as medidas antitrabalhistas voltarão, abraçadas com novos e antigos porta-vozes do ultraneoliberalismo.
Henrique Amorim é professor de Sociologia da Unifesp e Felipe Moda é mestrando do PPGCS da Unifesp