O deputado federal Luís Claudio Miranda (DEM-DF) afirmou ter informado o presidente Jair Bolsonaro em março sobre um suposto esquema em torno da compra bilionária da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde.
BBC Brasil, 25 de junho de 2021
Segundo ele, o presidente lhe disse que comunicaria imediatamente a Polícia Federal, mas a instituição divulgou não ter registro de qualquer abertura de inquérito sobre o assunto.
Desde que essas informações vieram à tona, integrantes da CPI da Covid passaram a cogitar que, caso as denúncias sejam comprovadas, o presidente da República poderia ser até acusado de crimes como prevaricação.
"Se o presidente foi comunicado, ele prevaricou. E a prevaricação de um presidente é uma coisa muito grave", afirmou o senador e presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), em entrevista à emissora GloboNews.
Em sua live semanal, o presidente afirmou ter se reunido com o deputado aliado e o irmão dele em março, mas disse que ambos não relataram suspeitas de corrupção. "Isso aconteceu em março, quatro meses ele resolve falar para desgastar o governo. Andou de moto comigo, esteve aqui conversando comigo. De repente, do nada. Vai ser apurado e, com toda certeza, quem buscou armar vai se dar mal."
Aziz pregou cautela sobre uma eventual imputação de crime ao presidente, e disse que qualquer conclusão só poderá ser feita após o depoimento do deputado e do irmão dele, servidor do Ministério da Saúde que denunciou o caso, à CPI da Covid e a análise das provas que ambos dizem ter. Os dois irmãos depõem nesta sexta-feira (25/06).
Miranda divulgou imagens das mensagens que enviou a um ajudante de ordens do presidente em que relata as suspeitas de irregularidades em torno da compra da Covaxin.
Segundo o Código Penal brasileiro, o crime de prevaricação ocorre quando um funcionário público "retarda ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal".
Nesse caso específico, seria uma suposta não comunicação de uma eventual irregularidade para outras autoridades investigarem. O Código Penal prevê pena de três meses a um ano de prisão e multa.
Articuladores de um "megapedido" de impeachment contra Bolsonaro, a ser apresentado na próxima semana à Câmara, cogitam incluir as denúncias dos irmãos Miranda entre acusações de crime de responsabilidade que o presidente teria cometido.
PF diz não ter investigação aberta sobre denúncia
Em 24/06, o jornal Folha de S.Paulo divulgou que a Polícia Federal não identificou nenhuma investigação sobre supostas irregularidades na aquisição de doses da vacina Covaxin por R$ 1,6 bilhão.
Em 23/06, o ministro Onyx Lorenzoni (Secretaria-Geral da Presidência) não citou nenhuma apuração sobre a denúncia que Miranda diz ter feito ao presidente da República. Além disso, afirmou que as provas apresentadas pelos irmãos Miranda eram fraudulentas e que ambos deveriam ser investigados sob suspeita de denunciação caluniosa.
"Por que um servidor que identifica um possível erro, uma fraude, não leva ao seu superior hierárquico? É dever dele. Aí está a prevaricação", questionou o ministro, acusando o servidor Luís Ricardo Miranda, irmão do deputado, de demorar a apresentar sua denúncia, já que a compra das doses foi firmada em fevereiro.
No dia seguinte, Onyx passou a divulgar, por meio de aliados na CPI da Covid, que o presidente havia repassado a denúncia dos irmãos Miranda para o então ministro Eduardo Pazuello (Saúde) apurar. Este, segundo Onyx, não identificou nenhuma irregularidade e as negociações prosseguiram.
'Quero alertar ao deputado Luís Miranda: o que foi feito hoje, no mínimo, é denunciação caluniosa, e isso é crime tipificado no Código Penal', afirmou Lorenzoni
Segundo o deputado Luís Claudio Miranda, a denúncia foi levada diretamente ao presidente porque seu irmão disse não confiar em ninguém no ministério para apresentar suspeitas de irregularidade dentro da pasta.
As negociações para a compra da Covaxin estão sendo investigadas também pelo Ministério Público Federal. Em depoimento ao órgão, o servidor afirmou ter sofrido "pressão atípica" para agilizar a importação do imunizante e que se recusou a assinar um documento que garantiria o pagamento de US$ 45 milhões antes da entrega das doses, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, que teve acesso ao depoimento sigiloso.
A aquisição da Covaxin envolveu uma empresa intermediária (Precisa Medicamentos) entre o Ministério da Saúde e a fabricante estrangeira. Além disso, um dos sócios da Precisa é investigado por meio de outra empresa sob suspeita de ter recebido R$ 20 milhões do Ministério da Saúde e não ter entregado os medicamentos pagos.
O caso levou o então ministro da Saúde e hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (PP-PR), a responder a um processo sob acusação de improbidade administrativa.
Três suspeitas ligadas à compra da Covaxin
1. Preço elevado e falta de aprovação
Segundo a reportagem do jornal Estado de S. Paulo, a CPI obteve telegrama sigiloso enviado em agosto ao Itamaraty pela embaixada brasileira em Nova Délhi informando que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado em US$ 1,34 por dose.
Em fevereiro, porém, o Ministério da Saúde concordou em pagar US$ 15 por unidade (R$ 80,70 na cotação da época), o que fez da Covaxin a mais cara das seis vacinas compradas até agora pelo Brasil. Na ocasião, o ministro da Saúde ainda era o general Eduardo Pazuello.
Em nota enviada à BBC News Brasil, a Bharat Biotech, fabricante da Covaxin, diz que as doses do imunizante são vendidas ao exterior a valores que variam de US$ 15 a US$ 20.
O valor final aceito pelo governo brasileiro chama atenção também porque Pazuello afirmou à CPI que um dos motivos para sua gestão recusar a oferta de 70 milhões de doses da americana Pfizer em 2020 seria o preço alto do imunizante. A vacina, porém, foi oferecida ao Brasil por US$ 10, metade do que a própria farmacêutica cobrou dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido.
Outra razão apresentada por Pazuello para rejeitar a oferta da Pfizer em 2020 foi o fato de a vacina, naquele momento, ainda não ter a aprovação da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa). No entanto, o contrato da Covaxin foi firmado sem essa aprovação prévia. Apenas no início de junho a importação foi autorizada, com algumas restrições.
2. Suposta pressão para acelerar contrato
O Ministério Público Federal (MPF) está investigando se houve irregularidades no contrato com a Precisa Medicamentos, que intermediou o negócio com a empresa indiana. Aos procuradores do caso, o chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde, Luís Ricardo Miranda, relatou ter sofrido "pressão incomum" para fechar a compra, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, que teve acesso ao depoimento sigiloso do servidor.
Na oitiva, ele apontou como um dos responsáveis por essa pressão o tenente-coronel Alex Lial Marinho, ex-coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde na gestão Pazuello.
A CPI da Covid aprovou a quebra de sigilo telefônico, fiscal, bancário e telemático de Marinho, que também será convocado a depor na comissão, mas a data ainda será marcada.
Luís Ricardo Miranda disse ter identificado diversos problemas no contrato de compra dos imunizantes, como divergências em informações da nota fiscal e envio de doses próximas do prazo de validade.
O sócio-administrador da Precisa Medicamentos, Francisco Maximiano, deve ser ouvido na próxima semana pela CPI, em data ainda a ser confirmada.
Por meio de nota à reportagem, a Precisa diz que "as tratativas entre a empresa e o Ministério da Saúde seguiram todos os caminhos formais e foram realizadas de forma transparente junto aos departamentos responsáveis do órgão federal".
Depois que a denúncia dos irmãos Miranda veio à tona, o presidente passou a afirmar que não houve nenhuma irregularidade porque o governo federal não desembolsou os recursos para comprar as 20 milhões de doses da Covaxin.
"Não gastamos um centavo com a Covaxin, não recebemos uma dose de vacina da Covaxin, que corrupção é essa? Ele não falou em nada de corrupção em andamento. Ele conversou comigo sim, não vou negar, mas não aconteceu nada", afirmou Bolsonaro na live transmitida em 24/06. Além disso, o governo federal tem avaliado cancelar a compra.
Mas a procuradora da República Luciana Loureiro, que investiga a compra da Covaxin, afirmou à Folha de S.Paulo que o fato de o governo Bolsonaro ter reservado os R$ 1,6 bilhão já configura prejuízo à saúde pública.
Segundo ela, isso se dá porque o governo autorizou o gasto em fevereiro, mas até hoje não recebeu as doses contratadas que já deveria ter recebido (o que configuraria quebra do contrato, mas o Ministério da Saúde deixou de cobrar a empresa). "Enquanto houver a nota de empenho, enquanto ela estiver válida, o recurso está reservado para isso", afirmou Loureiro à Folha de S.Paulo.
3. Suspeitas sobre empresa ligada à intermediária
Como dito acima, a Global Gestão em Saúde, que tem sócio em comum com a Precisa Medicamentos, tem suspeitas prévias de irregularidade em contrato com o Ministério da Saúde.
Em 2017, quando o ministro da Saúde era o deputado federal Ricardo Barros (PP-RS), hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara, a Global Gestão em Saúde venceu um processo de compra emergencial para fornecer medicamentos à pasta, mas não entregou os remédios, mesmo tendo recebido o pagamento antecipado de R$ 19,9 milhões.
O Ministério Público Federal denunciou representantes da empresa e o ex-ministro. Segundo o MPF, a empresa ganhou o processo de compra mesmo sem atender a todos os requisitos, como ter registro para importação dos medicamentos na Anvisa.
A denúncia tramita atualmente na Justiça Federal em Brasília. Barros negou ao jornal O Globo qualquer irregularidade no caso e que passou a ser alvo por ter enfrentado monopólios farmacêuticos. A Global não se manifestou sobre a investigação.