John Kinnear é diretor da Escola de Medicina da Anglia Ruskin University e é consultor em Medicina de Cuidados Intensivos no Southend University Hospital, em Inglaterra. Artigo publicado no portal The Conversation(link is external) e traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.
A medicina moderna sublinha e com razão a importância da ciência. No entanto, esse foco desvia a nossa atenção demasiadas vezes do verdadeiro objetivo dos cuidados de saúde - cuidar. Isto foi bem apanhado por William Osler (1849-1919) na sua advertência para cuidar do doente e não da sua doença - expressão considerada um cliché pitoresco pelo médico incauto. Redescobri a verdade do seu conselho quando dois doentes em particular me ensinaram sobre a infeção por COVID-19 e questionaram a habilidade que eu pensava ter na abordagem da pneumonia.
O primeiro doente com covid-19 que apareceu no meu hospital era provavelmente um caso típico dos primeiros doentes em muitos outros hospitais naquela altura. Era um homem idoso com pneumonia, ainda não testado para o novo coronavírus, mas que se suspeitava que o tivesse. Uma equipa de especialistas avaliou-o cuidadosamente, prescreveu-lhe oxigénio de alto fluxo e monitorizou-o numa ala respiratória. Ele morreu inesperadamente nessa noite.
A segunda doente era uma mulher de meia-idade encaminhada para a unidade de cuidados intensivos para ventilação mecânica. A recente morte tinha-me deixado nervoso, por isso fui avaliá-la. A caminho da enfermaria, imaginei a cena que me esperava - uma doente ofegante, quase incapaz de falar, o tórax a agitar-se com o esforço de levar oxigénio para o sangue.
Quando cheguei equipado com o EPI completo e pronto a sedá-la para ventilação imediata, pensei que tinha chegado à cama errada. Ela estava confortavelmente sentada na sua cadeira, falando ao telemóvel com a filha, perturbada pela minha aparência. Colegas demasiado cautelosos, pensei eu, mas medi a sua saturação de oxigénio no sangue só por precaução, mais por instinto do que por preocupação. Pela sua aparência, esperava que estivesse próxima do normal (100%). Era de 75% - um nível que mal era compatível com o facto de estar consciente.
Danos pulmonares silenciosos
Aprendi rapidamente que muitos doentes com covid-19 avançada não tinham nenhuma das marcas de doença respiratória grave até que de repente entraram em colapso e morreram. A ciência por detrás desta precoce lição está agora a surgir, com um estudo de Wuhan, China, descrevendo alterações pulmonares patológicas em exames de tomografia computadorizada de doentes completamente assintomáticos. O estado assintomático não é invulgar noutras infeções virais, tais como MRSA e C diff, mas o que é impressionante com o SARS-CoV-2 (o vírus que causa covid-19) é que pode ser acompanhado por lesões subjacentes de órgãos.
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Os investigadores encontraram lesões consistentes com a inflamação do tecido pulmonar subjacente (opacidades em vidro fosco e consolidação, para usar o jargão médico), que não são específicas da infeção pelo SARS-CoV-2 e podem ser observadas em muitas outras formas de doença pulmonar. O que permanece um mistério é a razão pela qual, apesar destas alterações, os doentes não apresentam sintomas típicos de pneumonia, tais como falta de ar intensa.
Cerca de um quarto dos doentes deste estudo tiveram febre, tosse e falta de ar - mas muitos não. A resposta idiossincrática à infeção é um dos vários enigmas da covid-19, tal como a razão pela qual visa determinados grupos e não outros - duas pessoas com exatamente a mesma demografia e saúde podem exprimir a doença em extremos opostos do espectro. O estudo reforça que a ausência de sintomas não implica a ausência de danos.
Os riscos
A ausência de sintomas perante a patologia ativa acarreta um risco tanto para os indivíduos infetados como para o público. Agora o aconselhamento é para que os doentes permaneçam em casa se estiverem assintomáticos, tornando a apresentação tardia ao hospital e a morte súbita um risco evidente.
E depois há o pesadelo da saúde pública. Cerca de 40-45% das pessoas infetadas com SARS-CoV-2 permanecem assintomáticas, com uma carga viral tão elevada como as que estão ativamente doentes. Acrescente-se a isso a taxa significativa de falsos-negativos de até 20% para testes de rastreio - onde as pessoas são erradamente avisadas de que não têm a infeção - e a escala do problema é ampliada. Estes são os transmissores ocultos que continuam a eliminar o vírus até 14 dias, o que levanta sérias dúvidas sobre a eficácia da estratégia de testes ou a utilização de medidas de rastreio como a medição da temperatura.
As lesões num TAC não podem determinar qual é o tratamento necessário. Ainda é necessária uma decisão personalizada baseada na avaliação clínica. Por isso, enquanto aumenta o conhecimento científico, vou aplicar o conselho de Osler com convicção renovada: atenda o seu doente com os cinco sentidos em alerta total. Eles vão ensinar-lhe o que precisa de saber.
John Kinnear é Diretor da Escola de Medicina da Anglia Ruskin University e é consultor em Medicina de Cuidados Intensivos no Southend University Hospital, em Inglaterra. Artigo publicado no portal The Conversation e traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.