Na agropecuária e na indústria de alimentos, os patógenos superam a bio-segurança que as empresas estão dispostas pagar. O agronegócio está em conflito com a saúde pública.
Covid-19, a doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, o segundo síndrome viral respiratório agudo desde 2002, é agora, oficialmente, uma pandemia. No final de março, havia confinamento em muitas cidades e, um atrás de outro, muitos hospitais estavam a ficar sobrelotados pelo fluxo de doentes. A China, que foi o foco do surto original, respira agora melhor. O mesmo se passa com a Coreia do Sul e Singapura. A Europa, especialmente a Itália e Espanha, mas cada vez mais outros países também, já sofre um elevado número de mortes ainda no início do surto. A América Latina e África só agora começam a acumular casos, com alguns países melhor preparados do que outros. Nos Estados Unidos, um termômetro e o país mais rico na história do mundo, o futuro próximo parece ameaçador. Não se antecipa que o pico seja antes de maio e já se tem a situação em que o pessoal de saúde e os visitantes aos hospitais têm que lutar pelo acesso ao estoque de material de proteção pessoal, que está desaparecendo. As enfermeiras, a que os Centros de Controle de Doenças e Proteção recomendam que usem badanas e lenços de cabeça como máscaras, já declararam que “o sistema está condenado”.
O governo federal continua disputando equipamento médico básico com os estados, depois de ter recusado a comprá-lo. Também anunciou um fechamento de fronteiras como se fosse uma intervenção de saúde pública, enquanto o vírus se espalhava no interior do país.
Uma equipe de epidemiologia do Imperial College fez uma projeção segundo a qual a melhor campanha de mitigação – achatar a curva de casos acumulados por via da quarentena de casos detetados e criando distância social para proteger os idosos – ainda deixaria os Estados Unidos com 1,1 milhão de mortos e uma procura de camas hospitalares oito vezes superior ao total de camas de tratamento crítico disponíveis no país. A supressão da doença, para tentar parar o surto, exigiria levar o país para mais próximo de medidas ao estilo chinês, de quarentena familiar e distanciamento comunitário, incluindo o fechamento de instituições. Isso baixaria o número de mortes projetadas para perto de 200 mil. O grupo do Imperial College estima que uma campanha bem sucedida de supressão teria que seguir pelo menos durante dezoito meses, produzindo uma contração econômica e redução de serviços comunitários. Propôs que se equilibrasse as necessidades de controle sanitário e da economia alternando períodos de imposição e fechamento de quarentena da comunidade, sendo o processo regido pelo nível de camas de cuidados intensivos.
Outros modelizadores adotaram outra projeção. Um grupo dirigido por Nassim Taleb, que se tornou famoso com o livro O Cisne Negro, considera que a equipa do Imperial College errou ao não incluir a monitorização dos contatos e do porta a porta. O seu argumento não se apercebe de que o surto se desenvolve num quadro de pouca vontade de alguns governos em se empenharem nesse tipo de cordão sanitário. Só quando o surto começar a declinar é que muitos países acharão apropriadas essas medidas, esperemos que num momento em que já haja um teste preciso e funcional. Como alguém afirmava: “O coronavírus é demasiado radical. A América precisa de um vírus mais moderado para que possamos responder incrementalmente.”
A equipa de Taleb aponta que o grupo do Imperial se recusa a investigar as condições em que o vírus pode ser extinto. A sua liquidação não significa zero casos, mas isolamento suficiente para que os casos isolados tenham pouca probabilidade de causar novas cadeias de infeção. Na China, só 5% das pessoas suscetíveis pelo contacto com um caso positivo ficaram subsequentemente infetadas. De facto, a equipa de Taleb apoia o programa de supressão da China, procurando avançar depressa de modo a levar à extinção do surto, sem ter que entrar numa maratona de dança entre o controlo da doença e a garantia de que a economia não sofre com falta de braços. Por outras palavras, a abordagem chinesa, estrita e intensiva em recursos, evita à população um período de sequestro por meses, ou mesmo por anos, que o grupo do Imperial recomenda a outros países.
Um dos autores, o epidemiologista matemático Rodrick Wallace, questiona por completo o tipo de modelização. O modelo das emergências, mesmo que necessário, não determina quando e onde começar. As causas estruturais também são parte da emergência. Inclui-as ajudaria a compreender como responder, para além do relançamento da economia que produziu o dano. “Se os bombeiros receberem recursos suficientes”, escreve Wallace, “então, em condições normais a maior parte dos fogos pode ser contida minimizando as perdas humanas e a destruição de propriedade. Contudo, a contenção depende criticamente de esforços regulatórios persistentes e permanentes, muito menos românticos mas não menos heroicos, que limitem a acumulação de condições ameaçadoras através de códigos de desenvolvimento e de aplicação, e que assegurem que o combate aos fogos, a sanidade e a preparação de recursos de preservação é feita em todos os níveis necessários. (...) O contexto de uma infeção pandémica é importante, e as estruturas políticas atuais permitem que as empresas agrícolas multinacionais privatizem os lucros ao mesmo tempo que externalizam e socializam os custos, quando essas empresas deviam ser submetidas a um código imperativo que reinternalizasse tais custos, se queremos mesmo que uma pandemia fatal seja evitada no futuro próximo”.
O fracasso na preparação e na reação ao surto não começou em Dezembro, quando os países falharam na resposta quando o Covid-19 se estendeu a partir de Wuhan. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse fracasso não começou quando Donald Trump desmantelou a sua equipa nacional para a resposta a pandemias ou deixou setecentos cargos do Centro de Controlo de Doenças (CDC) por nomear. Nem começou quando as autoridades federais não reagiram aos resultados de uma simulação de pandemia, em 2017, que mostrou que o país não estava preparado, nem quando, como afirmado pela manchete da Reuters, os Estados Unidos “despediram especialistas sobre a China no CDC, meses antes do surto”, além de que a falta de presença no terreno de um perito logo no início da epidemia também tenha certamente fragilizado a resposta dos EUA. Essa fragilização não começou com a decisão infeliz de não usar os kits de testes fornecidos pela Organização Mundial de Saúde. Os atrasos na informação inicial, junto com o fracasso nos testes, será sem dúvida responsável por muitas vítimas, possivelmente milhares.
De facto, esses falhanços foram programados há décadas, à medida que os bens comuns da saúde pública foram negligenciados e, ao mesmo tempo, mercadorizados. Um país capturado pelo regime de epidemiologia individualizada e just-in-time – uma contradição flagrante – com poucas camas de hospitais e falta de equipamento para as operações formais, é por definição incapaz de mobilizar os recursos necessários para aplicar um tipo de supressão como o da China.
Seguindo o argumento da equipa de Taleb sobre as estratégias modelo em termos mais explicitamente políticos, o ecologista de doenças Luis Fernando Chaves, outro dos co-autores deste artigo, cita os biólogos dialéticos Richard Levins e Richard Lewontin para aceitar que “deixar os números falar” limita-se a mascarar todas as hipóteses pressupostas anteriormente. Modelos como os do Imperial limitam explicitamente o âmbito da análise a questões estreitamente definidas no contexto da ordem social dominante. Por concepção, não conseguem aperceber-se dos surtos provocados pelas forças de mercado mais vastas e pelas decisões políticas que subjazem a essas intervenções.
Conscientemente ou não, as projeções que daí resultam secundarizam a definição de uma segurança sanitária, incluindo para muitos milhares dos mais vulneráveis que seriam mortos se um país hesitar entre o controlo da doença e a economia. A visão foucaultiana do Estado atuando sobre uma população no seu próprio interesse representa somente uma versão, mesmo que benigna, da pressão malthusiana para a imunidade de grupo que o governo tory no Reino Unido e agora o da Holanda propuseram – deixar o vírus espalhar-se na população sem limitação. Há pouca evidência, além da esperança ideológica, de que a imunidade de grupo pudesse garantir parar o surto. O vírus pode facilmente ter mutações sob o manto da imunidade da população.
Intervenção
O que é que então devia ser feito? Primeiro, temos que compreender que, na resposta à emergência, estaremos confrontados simultaneamente com a necessidade e o perigo. Devemos nacionalizar os hospitais privados, como o fez a Espanha, em resposta à pandemia. Precisamos de aumentar a capacidade de teste, como o fez o Senegal. Devemos socializar as farmacêuticas. Devemos aumentar as máximas proteções para o pessoal médico, para reduzir a velocidade da sua contaminação. Devemos assegurar a reparação dos ventiladores e de outras máquinas médicas. Devemos começar a produção em massa de cocktails de antivirais como o remdesivir e a velha cloroquina anti-malárica (e outras drogas que apareçam e sejam prometedoras), enquanto conduzimos testes clínicos a partir do trabalho laboratorial. Um sistema de planeamento devia ser desenvolvido para (1) forçar as empresas a produzir os ventiladores necessários e o equipamento de proteção necessário para os trabalhadores de saúde e (2) priorizar a distribuição a quem tenha maior necessidade.
Devemos estabelecer um corpo grande para a resposta à epidemia, desde a investigação até ao cuidado, que seja adequado para enfrentar o vírus (e qualquer outro patógeno que apareça). Devemos garantir que o número de camas de cuidados intensivos, o pessoal e o equipamento necessários, são suficientes para responder ao número de doentes. Por outras palavras, não podemos aceitar a ideia de que nos limitamos a sobreviver ao ataque atual do Covid-19, para depois voltarmos a novas necessidades de isolamento para manter a epidemia abaixo de um nível crítico. Temos que contratar o número necessário de pessoas para identificar o Covid-19 casa a casa equipá-las com os fatos protetores necessários, como máscaras adequadas. Pelo caminho, precisamos de suspender a sociedade organizada em torno da expropriação, seja pelos proprietários seja por sanções sobre outros países, para que as pessoas possam sobreviver à doença e à sua cura.
Até que tal programa possa ser aplicado, contudo, uma boa parte da população é deixada ao abandono. Mesmo que haja uma pressão permanente sobre os governos recalcitrantes, no espírito da tradição, em grande parte perdida, da organização proletária dos últimos 150 anos, as pessoas que possam devem juntar-se aos grupos de ajuda e brigadas de bairro. Os profissionais de saúde publica que os sindicatos possam dispensar deviam treinar estes grupos para o seu trabalho de cuidado que evite a difusão do vírus.
A insistência para que respondamos às origens estruturais do vírus no contexto do nosso planejamento de emergência indica-nos uma chave para cada passo para proteger as pessoas e não os lucros. Um dos muitos perigos é normalizar a ideia de uma “loucura do morcego”, que está a ser desenvolvida, uma caracterização ocasional para o síndrome que o doente sofre. Temos que nos lembrar do choque que tivemos quando soubemos que tinha surgido outro vírus SARS a partir dos refúgios animais e que, em oito semanas, se tinha espalhado pelo planeta. O vírus apareceu num terminal de uma linha regional de oferta de comida exótica, criando com sucesso uma cadeia de contaminação de ser humano para ser humano, em Wuhan, na China. A partir daqui, a pandemia difundiu-se localmente e espalhou-se por aviões e comboios, chegando a todo o mundo através de uma rede estrutural de conexões por viagens e segundo uma hierarquia de grandes para pequenas cidades.
Além de descrever o mercado de comida exótica segundo os cânones do orientalismo tradicional, foi feito pouco esforço para responder à questão mais evidente. Como é que o setor de comida exótica alcançou um estatuto que lhe permitiu vender as suas mercadorias ao lado dos animais tradicionais no maior mercado de Wuhan? Os animais não estavam a ser vendidos na traseira de um camião ou num beco. Pense nas autorizações e pagamentos envolvidos (e na desregulação).24(link is external) Para além dos mercados de pescado, a venda de animais selvagens para alimentação constitui um setor crescentemente formalizado, com investimentos das mesmas fontes que estão por detrás da produção industrial.25(link is external) Se bem que não tenha nada que se compare quanto a dimensão da produção, a distinção é agora mais duvidosa.
A geografia económica sobrepõe-se e estende-se desde o mercado de Wuhan para o interior, onde os alimentos exóticos e tradicionais são obtidos através de operações que estão na borda da captura da vida selvagem. À medida que a produção industrial chega à última das florestas, as operações de comercialização de animais selvagens vão cada vez mais longe para obter os seus pitéus. Em resultado, o patógeno mais exótico, neste caso o SARS-2 que tem como hospedeiro o morcego, é trazido por um camião, seja nos animais para alimentação ou nos trabalhadores que os trazem para o palco mundial.
Infiltração
A conexão exige elaboração, que será o que nos permite planear o futuro e compreender como é que a humanidade se colocou nesta armadilha.
Alguns patógenos emergem diretamente dos centros de produção. As bactérias criadas nos alimentos, como a Salmonela ou a Campilobactéria estão nesta categoria. Mas muitas, como a Covid19, são criadas na fronteira da produção capitalista. De facto, pelo menos 60% dos novos patógenos humanos proveem da relação de animais selvagens com comunidades locais humanas (antes que os mais bem sucedidos se espalhem pelo resto do mundo).
Algumas luminárias no campo da eco-saúde, alguns financiados pela Colgate-Palmolive ou pela Johnson & Johnson, as empresas que pressionam a fronteira da desflorestação pelo agro-negócio, produziram um mapa mundial baseado nos surtos anteriores, desde 1940, indicando onde podem surgir novos patógenos. Quanto mais quente a cor do mapa, maior é a probabilidade indicada de que surja aí um novo patógeno. Mas, ao confundirem essas geografias absolutas, o mapa desta equipa – apresentando a China, Índia, Indonésia e partes da América Latina e de África a vermelho – ignora um ponto crucial. Pelo facto de se concentrarem nas regiões do surto, ignoram a relação partilhada com os atores económicos globais que definem as epidemiologias. O capital quer apoiar o desenvolvimento, e as mudanças induzidas pelo uso da terra e pela emergência de doenças em partes subdesenvolvidas do globo compensam os esforços que apontam a responsabilidade dos surtos às populações indígenas e às suas chamadas práticas culturais “sujas”. Duas das práticas acusadas de criarem novos patógenos são o consumo de animais da floresta e os enterros caseiros. Em contrapartida, se indicássemos no mapa as geografias relacionais, teremos que apontar para Nova Iorque, Londres e Hong Kong, três centros do capital global, como dos piores focos.
As zonas dos surtos, entretanto, já nem sequer estão organizadas por políticas tradicionais. A troca ecologicamente desigual, redirecionando os piores estragos da agricultura industrial para o Sul Global, avança retirando os recursos locais por via da imposição pelo estado dirigido pelo imperialismo. O agronegócio reconfigura as suas operações extrativistas em redes espacialmente descontínuas no territórios em diferentes escalas. Uma série de multinacionais baseadas em “repúblicas da soja”, por exemplo, estendem-se agora pela Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil. A nova geografia está corporizada na estrutura de gestão, capitalização, subcontratação, substituição na cadeia de fornecimentos, créditos e uso de terra pelas empresas. Ao superar as fronteiras nacionais, estes “países mercadoria”, inseridos flexivelmente em ecologias e fronteiras políticas, produzem novas epidemiologias pelo caminho.
Por exemplo, apesar de uma mudança geral da população das áreas rurais mercantilizadas para os bairros de lata urbanos, um processo que continua ainda hoje pelo mundo, a divisão rural-urbana, que é o tópico de muita discussão acerca da emergência de doenças, ignora o trabalho destinado ao campo e o crescimento rápido de cidades rurais nas desakotas periurbanas (cidades-aldeias) ou zwischenstadt (centro das cidades). Mike Davis e outros identificaram como é que estas novas paisagens recentemente urbanizadas funciona como mercados locais e como centros regionais para o transporte de produtos agrícolas globais. Algumas destas regiões foram mesmo chamadas “pós-agrícolas”. Em consequência, a dinâmica de doenças da floresta, a fonte originária de patógenos, já não fica restrita somente às regiões do interior. As suas epidemiologias associadas tornaram-se relacionais, através do tempo e espaço. Uma SARS pode espalhar-se subitamente pelos humanos numa grande cidade, poucos dias depois de ter saído da sua caverna do morcego.
Os eco-sistemas em que estes vírus “selvagens” estavam em alguma medida controlados pelas complexidades da floresta tropical são dramaticamente destruídos pela desflorestação dirigida pelo capital e, no outro lado do desenvolvimento periurbano, pelos défices na saúde e sanidade pública. Enquanto muitos patógenos morrem nas espécies hospedeiras, um subconjunto de infeções que anteriormente desapareciam muito depressa na floresta, quanto mais não fosse pela taxa irregular de encontros com as espécies tipicamente hospedeiras, propaga-se agora entre populações humanas suja suscetibilidade à infeção é agravada pelos programas de austeridade e pela regulação corrompida. Mesmo perante vacinas eficazes, os surtos que daqui resultam são caracterizados por maior extensão, duração e velocidade. O que antes eram impactos locais são agora epidemias que se propagam pelas redes globais de viagens e comércio.
Mas dado este efeito de paralaxe, unicamente pela mudança no contexto ambiental, os velhos padrões definidos pelo Ébola, Zika, malária e febre amarela, que comparativamente evoluíram pouco, transformaram-se bruscamente em ameaças regionais. Moveram-se rapidamente do efeito e de vez em quando em aldeias remotas para a infeção de milhares nas cidades capitais. No outro sentido ecológico, mesmo animais selvagens, que foram rotineiramente e durante muito tempo reservatórios de doença, estão a sofrer efeitos desta evolução. Com as suas populações foram fragmentadas pela desflorestação, os macacos nativos do novo mundo e que eram susceptíveis à febre amarela, a que estiveram expostos pelo menos durante um século, estão a perder a sua imunidade de grupo e a morrer às centenas de milhar.
Expansão
Quanto mais não seja pela sua expansão, a agricultura mercantil contribui tanto para a propulsão como constitui o nexo através do qual patógenos de diversas origens migram dos reservatórios mais remotos para os centros populacionais mais internacionais. É aqui, e pelo caminho, que novos patógenos se infiltram nas comunidades da agricultura. Quanto mais longas as cadeias produtivas associadas e maior a extensão da desflorestação que provocam, mais diversos (e exóticos) serão os patógenos zoonóticos que entram no ciclo alimentar. Entre os recentes patógenos recentes, emergentes e reemergentes na agricultura e alimentação, que são originados no conjunto do domínio antropogénico, contam-se a febre suína africana, a campilobactéria, Cryptosporidium, Cyclospora, Ebola Reston, E. coli O157:H7, a HFMD, hepatite E, Listeria, Nipah virus, febre Q, Salmonella, Vibrio, Yersinia, e uma variedade de novas variantes da gripe, incluindo H1N1 (2009), H1N2v, H3N2v, H5N1, H5N2, H5Nx, H6N1, H7N1, H7N3, H7N7, H7N9, e H9N2.
Mesmo que não fosse intencional, toda a linha de produção está organizada em torno a práticas que aceleram a evolução da virulência do patógenos e a sua subsequente transmissão. O crescimento de monoculturas genéticas, ou plantas e animais com genomas quase idênticos, removem os corta-fogos de imunidade que, em populações mais diversificadas, reduzem a velocidade da transmissão. Os patógenos podem agora evoluir depressa e contornar os genótipos hospedeiros que são imunes. Entretanto, a aglomeração deprime a resposta de imunidade. As grandes dimensões populacionais de animais na agropecuária e as densidades dessas instalações facilitam a maior transmissão e a infeção recorrente. Uma alta taxa de transferência, que faz parte da produção industrial, cria um fluxo constante de patógenos ao nível local ou regional, retirando o limite da sua evolução temporal. Estender o alcance geográfico do comércio e exportação de animais aumentou a diversidade dos segmentos genómicos que as suas trocas associadas de patógenos, aumentando a taxa a que os agentes da doença exploram as suas possibilidades evolucionistas.
Enquanto a evolução dos patógenos dispara em todos os sentidos, há no entanto pouca intervenção neste contexto, se é que alguma, mesmo que a pedido da indústria, salvo a que é necessária para as margens financeiras da emergência brusca de um surto epidémico. Afirma-se a tendência para reduzir a fiscalização pública das quintas e instalações de processamento, a legislação contra a atuação governamental ou as queixas de ativistas, e mesmo para legislar contra a comunicação de alguns surtos mortais na imprensa. Apesar de algumas vitórias em tribunal contra a poluição por pesticidas, a direção privada da produção continua completamente centrada nos lucros. Os danos provocados por surtos são externalizados para o gado, as colheitas, a vida selvagem, os trabalhadores, os governos locais e nacionais, os sistemas de saúde pública e agro-sistemas alternativos. Nos Estados Unidos, o CDC relata casos de surtos a partir de alimentos, cujo número tem aumentado, alargando-se a mais estados e pessoas infetadas.
Ou seja, a alienação pelo capital está a fazer um favor aos patógenos. Enquanto o interesse público é excluído da agropecuária e da fábrica de produtos alimentares, os patógenos superam a bio-segurança que a indústria está disposta a garantir ao público. A produção diária representa um lucrativo risco moral que se alimenta do bem comum que é a nossa saúde.
Libertação
Há uma eloquente ironia em Nova Iorque, uma das maiores cidades do mundo, a fechar-se em proteção contra o Covid19, à distância de um hemisfério da origem do vírus. Milhões de nova-iorquinos escondem-se em suas casas, sendo que a responsável pela habitação até 2018 era Alicia Glen, a vice presidente da câmara responsável pelo desenvolvimento económico e urbanista. Glen foi executiva no Goldman Sachs, e dirigiu a empresa desse banco, o Urban Investment Group, que financia projetos no tipo de comunidades que outras unidades do banco desenvolvem. Naturalmente, Glen não é, de forma alguma, pessoalmente responsável pela epidemia, mas é um símbolo da conexão que nos atinge em casa. Três anos antes da sua contratação pela cidade, no contexto de uma crise de habitação e da Grande Recessão, o seu e empregador anterior, com outros bancos, JP Morgn, Bank of America, Citigroup, Wells Fargo & Co., e Morgan Stanley, recebeu 63% do total do apoio de emergência do governo federal. O Goldman Sachs diversificou os seus investimentos depois da crise, nomeadamente adquirindo 60% da Shuanghui Investment and Development, uma empresa de agro-negócio do gigante chinês que comprou a Smithfield Foods, uma empresa baseada nos EUA e que é a maior criadora de porcos do mundo. Por 300 milhões de dólares, também comprou dez fazendas de criadores de galinhas em Fujian e Hunan, uma província ao lado de Wuhan e dentro da rede de fornecimentos de alimentação selvagem da cidade. Com o Deutsche Bank, investiu outros 300 milhões na criação de porcos nessas províncias.
As geografias relacionais acima exploradas circularam até à origem dos investimentos. Aí está a pandemia a atingir os clientes de Glen, apartamento a apartamento por toda Nova Iorque, que é o maior epicentro de Covid 19 nos EUA. Mas também devemos saber que o loop que causa o surto se estendeu em alguma medida a partir de Nova Iorque, mesmo que o investimento do Goldman Sachs seja pequeno comparado com o total da agricultura chinesa. A sua atitude nacionalista e racista de Trump de acusar o “vírus chinês” esconde as relações globais entre o estado e o capital. “Irmãos inimigos”, dizia Marx. A morte e os danos impostos a trabalhadores na frente de batalha, na economia, e agora na doença a tentar recuperar o fôlego manifesta tanto a concorrência entre as elites que manobram para saquear os recursos naturais como os meios usados para conquistar a massa da humanidade apanhadas nas engrenagens destas maquinações.
De fato, uma pandemia que surge do modo capitalista de produção, e que se espera que seja gerida pelo estado, também pode representar uma oportunidade para que os gestores do sistema e os seus beneficiários prosperem. Em meados de fevereiro, cinco senadores e vinte deputados norte-americanos venderam milhões de dólares de ações que detinham em indústrias que poderiam ser atingidas pela pandemia que vinha a caminho. Basearam-se em informação privilegiada com fontes dos serviços de inteligência, mesmo que alguns desses eleitos continuassem a repetir a mensagem de que a pandemia não era uma ameaça. Para além desses aproveitadores, a corrupção é sistémica, e marca o fim de um ciclo de acumulação em que o capital arrecada e sai.
Há algo comparativamente anacrónico nos esforços para manter a pressão da finança sobre a realidade das ecologias originais (com as epidemiologias relacionadas). Para a própria Goldman Sachs, a pandemia, como as crises anteriores, garante “espaço para crescer”: “Partilhamos o otimismo de vários peritos em vacinas e investigadores de empresas de biotecnologia, baseado no bom progresso que se tem obtido com terapias e vacinas até agora. Acreditamos que o medo se reduzirá perante as primeiras provas desse progresso (…). Ao contrário dos investidores de curto prazo, os operadores diários e alguns hedge funds, os investidores de longo prazo não jogam numa possível descida. Além disso, não há nenhuma garantia de que o mercado atinja o nível baixo que justifique uma venda. Estamos mais confiantes de que o mercado acabará por subir, dada a resiliência e predomínio da economia dos EUA. E, finalmente, pensamos mesmo que os níveis atuais do mercado bolsista constituem uma oportunidade para acrescentar lentamente alguns níveis de risco à carteira. Para quem tenha ficado com excesso de liquidez e tem poder financeiro, com uma afetação estratégica de ativos, é o tempo para começar a comprar incrementalmente títulos do S&P”.
Assustados pelo desastre que está a ocorrer, alguns chegarão a conclusões diferentes. Pensava-se que os circuitos do capital e da produção que os patógenos marcam como se fossem alvos radioativos fossem inatingíveis. Como definir estes sistemas para além do episódico e circunstancial? O nosso grupo está a esforçar-se para apresentar um modelo que recuse os conceitos da moderna medicina colonial e que continua a acusar as populações indígenas pela desflorestação que leva à emergência de doenças mortais.
A nossa teoria sobre a emergência neoliberal de doenças, incluindo na China, combina:
- os circuitos globais do capital
- o envolvimento do capital na destruição do ambiente regional complexo que impede a população dos patógenos virulentos de crescer
- os aumentos resultantes nas taxas de difusão e no alcance taxonómico desses acontecimentos
- a expansão dos circuitos periurbanos de mercadorias, que levam estes patógenos recentemente disseminados no gado e nos trabalhadores das cidades do interior;
- as redes ampliadas de viagens globais (e de comércio de gado) que transportam os patógenos dessas cidades para o mundo em tempo record;
- o modo como estas redes reduzem a fricção da transmissão, selecionando a evolução dos patógenos mais mortais tanto para animais como para pessoas;
- e, entre outras imposições, a reprodução local do gado industrial, que remove a seleção natural como um serviço de eco-sistema que garante a proteção contra a doença.
A premissa operativa implícita é que a causa do Covid 19 e de outros patógenos não deve ser procurada somente no objeto de algum agente infeccioso ou no seu percurso clínico, mas também n campo das relações do eco-sistema que o capital e outras causas estruturais desenvolveram para sua própria vantagem. A grande variedade de patógenos, representando diferentes taxas, hospedeiros, modos de transmissão, percursos clínicos e resultados epidemiológicos, todos os marcadores que nos levam a correr de olhos fechados para os nossos motores de busca quando começa um surto, marcaram vários caminhos no mesmo tipo de circuitos do uso da terra e da acumulação de valor.
Um programa geral de intervenção deve ir muito além da resposta a um vírus particular.
Para evitar os piores resultados, a desalienação sugere a próxima grande transição humana: abandonar as ideologias do colonizador, reintroduzir a humanidade nos ciclos de regeneração do planeta, e redescobrir o nosso sentido de individualização nas multidões, para além do capital e do estado. Contudo, o economicismo, a crença de que todas as causas sejam unicamente econômicas, não servirá para a libertação. O capitalismo global é uma hidra de muitas cabeças, que se apropria, internaliza e ordena muitas camadas da relação social. O capitalismo opera segundo terrenos complexos e interligados de raça, classe e gênero no decurso dos regimes de valorização de lugar para lugar. Com o risco de aceitar os preceitos do que a historiadora Donna Haraway criticou como história salvífica – “podemos desarmar a bomba a tempo?” – a desalienação deve desmantelar estas múltiplas hierarquias de opressão e os modos localmente específicos como interagem com a acumulação. Pelo caminho, devemos navegar para longe das reapropriações expansivas do capital através dos materialismos produtivo, social e simbólico. Ou seja, o que se configura como um totalitarismo. O capitalismo mercantiliza tudo, a exploração de Marte, o sono, as lagoas de lítio, a reparação de ventiladores, mesmo a própria sustentabilidade e por aí adiante, e podemos encontrar muitas permutações para além da fábrica e da herdade. Em todos os sentidos, todas as pessoas e todas as coisas são claramente submetidas ao mercado, que em tempos como os atuais é antropomorfizado pelos políticos.
Em resumo, uma intervenção bem sucedida que impeça qualquer dos muitos patógenos que trepam pelo circuito agro-económico de matarem mil milhões de pessoas deve passar a porta de um confronto global com o capital e os seus representantes locais, por muito que os soldados individuais da burguesia, como Glen, tentem mitigar o estrago. Como o nosso grupo explica numa das suas últimas publicações, o agronegócio está em conflito com a saúde pública. E a saúde pública está a perder.
Contudo, se a humanidade ganhar este conflito geracional, poderemos recolocar-nos no metabolismo planetário que, mesmo que expresso de formas diferentes de região para região, reconecta as nossas ecologias e as nossas economias. Tais ideais são mais do que utopias. Ao seguir esse caminho, convergimos para soluções imediatas. Protegemos a complexidade das florestas que impede os patógenos mortíferos de encontrarem hospedeiros que entram imediatamente na rede de viagens mundiais. Reintroduzimos a diversidade dos animais e das colheitas, reintegramos a produção animal e vegetal em escalas que impedem os patógenos de crescer em virulência e extensão geográfica. Permitimos aos animais que consumimos que se reproduzem no seus lugares de origem, relançando a seleção natural que permite a evolução da imunidade e que deteta os patógenos em tempo real. A grande questão é que deixamos de tratar a natureza e a comunidade, de que precisamos para viver, como se fosse outro concorrente da disputa mercantil.
A saída não é algo como fazer nascer um novo mundo (ou talvez voltar à Terra). Também ajudará a resolver, de mangas arregaçadas, muitos dos nossos principais problemas. Nenhum de nós, nas nossas casas de Nova Iorque a Pequim ou, pior, a velar os nossos mortos, queremos passar de novo por uma pandemia. Sim, as doenças infeciosas que foram, no caso de grande parte da história da humanidade, a maior causa de mortalidade prematura, continuarão a ser uma ameaça. Mas, dado o bestiário de patógenos agora em circulação, com os piores a surgirem quase de ano a ano, poderemos ter pela frente uma outra pandemia mortal em menos tempo do que os cem anos que nos separam de 1918. Será que, no essencial, ajustaremos os modos de nos apropriarmos da natureza e chegaremos a uma trégua com estas infeções?
Rob Wallace é um epidemiologista evolucionista e foi consultor dos Centros para o Controle e Prevenção de Doenças da Organização da Alimentação e Agricultura. Alex Liebman é estudante de doutorado em Geografia Humana na Universidade de Rutgers, com ummestrado em agronomia pela Universidade de Minnesota. Luis Fernando Chaves é um ecologista de doenças e foi pesquisador sênior do Instituto para a Investigação e Ensino de Nutrição e Saúde da Costa Rica, em Tres Rios. Rodrick Wallace é pesquisador da Divisão de Epidemiologia do Instituto Psiquiátrico da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Agradecem comentários de Kenichi Okamoto. Artigo originalmente publicado em 27 de março na Monthly Review. Essa versão é a adaptação daquela publicada pelo site português Esquerda.net, onde se pode consultar as notas do artigo: https://www.esquerda.net/artigo/covid-19-e-os-circuitos-do-capital/66987