Tradição na Medicina de Guerra, crucial em crises, ajudou a conter a propagação da doença. Mas assistência social burocratizada deixou milhões desassistidos e gerou protestos. Discrepâncias de renda e infraestrutura tornaram-se patentes
Mischa Gabowitsch, The Wire/Outras Palavras, 11 de setembro de 2020. Tradução de Simone Paz.
O texto a seguir foi originalmente publicado pela revista indiana The Wire, com a colaboração do professor brasileiro Fábio Luís Barbosa dos Santos, em parceria com Outras Palavras.
A pandemia atingiu a Rússia muito mais tarde do que outros países europeus. Porém, lá para meados de maio, a Rússia já tinha o segundo maior número de casos confirmados do mundo, ficando atrás somente dos EUA, antes que esse lugar fosse ocupado pelo Brasil. A taxa oficial de mortalidade em ambos os países já é quatro vezes maior do que a da Rússia, mas isso, provavelmente, também se deve ao fato de que as autoridades russas só contabilizaram as mortes de pacientes que morreram, de forma comprovada, de covid-19 — usando diagnósticos genéricos como “pneumonia atípica” em outros, para manter os índices baixos.
A tradição de varrer os problemas para debaixo do tapete e “enxugar” dados, significa que as medidas do governo, embora sejam, por vezes, determinadas, são também autoritárias e pouco transparentes. Assim, esse fato foi combustível para protestos massivos contra tais medidas. Tudo isso surge sob um pano de fundo: há problemas estruturais de longa data.
A Covid-19 e a infraestrutura médica russa
No sistema médico, muitos dos investimentos nos últimos anos foram canalizados para as principais instalações de alta tecnologia nas grandes cidades. Por outro lado, muitos hospitais em regiões periféricas foram fechados. Condições precárias, higiene deficiente e falta de suprimentos básicos não são raros em regiões mais pobres, criando riscos tanto para os pacientes como para a equipe médica. A natureza centralizadora do sistema criou gargalos na resposta à pandemia: por muitas semanas, as amostras do país inteiro só podiam ser processadas em um único laboratório em Novosibirsk.
Com uma forte tradição de medicina de guerra, o sistema médico da Rússia costuma ser melhor em situações de crise — às custas do sacrifício de profissionais da medicina. Funcionários, incluindo estudantes de medicina recrutados, foram forçados a testar e tratar pacientes sem que eles mesmos fizessem o teste ou recebessem a proteção adequada. As autoridades negam que a covid-19 tenha causado uma alta taxa de mortalidade entre os médicos, mas a Doctors’ Alliance, um sindicato criado em 2018, menciona centenas de médicos mortos, como resultado da pandemia, em seu mapa online, assim como em vários outros memorandos. Da mesma forma que em outros países altamente desiguais, às vezes, alguns doadores ricos intervêm, fornecendo ajuda de alto nível direcionada a hospitais ou regiões específicos.
Grupos vulneráveis da população
A maioria dos russos se viu afetada pelos efeitos econômicos e sanitários da pandemia, que se abate após muitos anos de queda da renda real e de redução da poupança. No entanto, assim como em outros países, aqueles que dependem de apoio social são especialmente vulneráveis. Isso inclui famílias de baixa renda; idosos, deficientes ou sem-teto; usuários/dependentes químicos; pessoas em risco de violência doméstica; indivíduos LGBTIs; aqueles que foram recentemente libertados da prisão; e aqueles com problemas de saúde que requerem medicamentos que se tornaram escassos com a pandemia.
O sistema de assistência social russo não é proativo, funciona por meio de requerimentos. Muitas dessas pessoas, portanto, caem justamente pelas frestas que ele cria. Alguns não se enquadram nas rígidas categorias do Estado. Outros, nunca aprenderam a navegar no sistema. Muitos não possuem a documentação exigida, como registro oficial de residência para migrantes estrangeiros ou internos, ou documentos fiscais para aqueles que trabalham na informalidade. Com frequência, associações não-estatais de apoio tentam preencher as lacunas e as ONGs têm apresentado recomendações ao governo sobre o apoio a grupos populacionais vulneráveis durante a pandemia. No entanto, apesar do aumento do voluntariado e da ajuda coletiva na última década, o legado soviético faz com que tais associações geralmente permaneçam pequenas e semi-profissionalizadas, em vez de arraigadas à comunidade. Elas são, portanto, limitadas em influência e alcance, especialmente fora dos centros mais ricos. As principais exceções a essa regra podem ser encontradas em partes rurais do Cáucaso do Norte que mantiveram elementos de uma estrutura social tradicional.
Além disso, mais de meio milhão de pessoas vivem em instituições de cuidados de vários tipos, como orfanatos, lares para idosos e hospitais de internação ou de cuidados psiquiátricos. Muitas dessas instituições estão em condições desoladoras e seus diretores não conseguem garantir medidas de segurança efetivas na quarentena — ou relutam em relatar infecções por medo de estigma. Tudo isso somado a outros grupos populacionais que vivem de forma comunitária, como o forte exército russo que conta com um milhão de soldados, ou estudantes universitários de outras cidades que moram em dormitórios, ou monges e freiras em mosteiros ortodoxos.
As prisões tornaram-se pontos de risco, em particular. A população carcerária da Rússia caiu quase pela metade nos últimos anos, principalmente devido a um aumento nas sanções alternativas, bem como de penas suspensas e adiadas. A Rússia caiu do terceiro para o 23º lugar pela taxa de encarceramento internacional, mas ainda tem o quarto maior número de prisioneiros do mundo em termos absolutos, com pouco menos de 600 mil pessoas mantidas em aproximadamente mil instalações em todo o país. Há muito tempo os presos são particularmente vulneráveis a doenças infecciosas.
Assim, apesar dos consideráveis avanços, a Rússia ainda figura entre os 20 países com maior incidência de tuberculose — onde os prisioneiros são os mais afetados. As taxas de rotatividade anual de presidiários, próximas de 50%, ajudam a espalhar infecções tanto dentro das prisões quanto entre a população em geral. Ao contrário de outros países, a Rússia não adiantou a libertação de prisioneiros em resposta à covid-19, apesar da sua tradição de proclamar anistias no Dia da Vitória, em 9 de maio. Em vez disso, as prisões foram isoladas, impedindo visitas e entregas de pacotes, incluindo medicamentos. É difícil obter informações confiáveis pelo mesmo motivo, mas parece que os diretores de prisões quase não introduziram testagens séria ou medidas de higiene e distanciamento, por medo de que suas instituições fossem rotuladas como pontos de risco do coronavírus. Ao mesmo tempo, 120 prisões foram encarregadas de costurar máscaras.
A migração sazonal da mão de obra contribuiu ainda mais para a disseminação da infecção. Trabalhadores não qualificados que chegam de países pós-soviéticos, como o Tajiquistão, que ainda têm de enfrentar a exploração e a discriminação, são um fenômeno típico. No entanto, além deles, vários milhões de cidadãos russos alternam regularmente turnos fora de suas regiões de origem por meses a fio, principalmente em indústrias extrativas, de construção, e de comércio em pequena escala. Eles costumam se alojar em dormitórios lotados, não têm proteção básica de seus direitos trabalhistas e correm o risco de espalhar infecções ao voltar para casa.
A república do Daguestão, ao norte do Cáucaso, pode ilustrar muitos desses processos. Uma das regiões mais pobres da Rússia, também se tornou um dos principais centros de infecção em abril. Comerciantes e trabalhadores locais trouxeram o vírus ao retornarem de outras regiões, onde foram participar de grandes eventos, como casamentos. Tradições como a alta participação da comunidade em funerais contribuíram para espalhar a infecção, assim como o descuido devido a teorias da conspiração e a remédios populares ineficazes, como suco de frutas vermelhas. A infraestrutura médica deficiente e a falta de equipamento básico foram exacerbadas pelo temor dos funcionários de que a honestidade sobre os surtos fosse usada para desacreditar suas instituições e toda a república. Por outro lado, nos lugares onde os efeitos da pandemia foram mitigados, isso muitas vezes ocorreu devido à ação de redes de parentesco, de anciãos de aldeias locais ou de políticos ou empresários ricos ligados às comunidades locais.
Manifestações populares
Muitas vezes, os observadores ocidentais só levam a sério os protestos na Rússia quando são abertamente dirigidos contra Putin e parecem conter uma promessa de mudança de regime — muita atenção foi dada ao fato de que as avaliações do presidente nas pesquisas caíram para mínimos históricos em abril (59% de “aprovação” e 27% de “confiança”). No entanto, essas pesquisas são bússolas muito precárias para entender o comportamento real, e encobrem a ampla variedade de formas, causas e alvos de protesto. Tudo isso ficou fortemente em evidência durante a pandemia.
Muitos protestos aconteceram exclusivamente online. No final de abril, uma transmissão ao vivo, intitulada “Pela Vida”, apresentava personalidades conhecidas criticando as políticas governamentais desde suas casas, reproduzindo em um formato virtual o formato tradicional dos comícios de oposição liberal anti-Putin. O blogueiro e líder de oposição, Alexey Navalny, coletou mais de um milhão de assinaturas em apoio ao seu plano de cinco pontos, que envolve distribuição de dinheiro, eliminação de impostos e pagamentos de serviços públicos para mitigar a crise. Como parte de uma campanha que começou em Rostov-on-Don antes de se espalhar para outras cidades, as pessoas começaram a usar a função de alerta de tráfego crowdsourced, por meio do software de navegação por satélite mais popular do país, para inundar o sistema com comentários críticos às políticas governamentais
Outros eventos se assemelham mais às reuniões de rua em torno de um tema, mais características dos protestos trabalhistas em cidades menores. No final de abril, trabalhadores sazonais do campo de petróleo e gás Chayanda, em Yakutia, fizeram um protesto em massa contra suas precárias condições de vida e a falta de testes ou medidas de proteção. Na semana anterior, houve grandes manifestações contra as medidas de auto-isolamento por parte de pequenos comerciantes em Vladikavkaz, capital da Ossétia do Norte, no Cáucaso do Norte
As respostas a esses protestos seguiram a tradicional dinâmica de cooptação e repressão. As campanhas virtuais foram amplamente ignoradas ou (no caso das campanhas baseadas em mapas) censuradas pelos administradores das plataformas. O protesto no campo de petróleo de Chayanda, muito importante comercialmente, levou a operadora Gazprom a fornecer testes e equipamentos de proteção, ao contrário de muitas outras aldeias de rotação que tiveram problemas semelhantes. Os protestos em Vladikavkaz foram violentamente dispersos e quase universalmente condenados pelas elites sociais e intelectuais locais em todo o espectro político, embora algumas figuras da oposição de Moscou tenham tentado cooptá-los como sinais de descontentamento com o regime de Putin.
Ramificações políticas
De modo geral, a pandemia de covid-19 trouxe uma grande pressão sobre a infraestrutura da Rússia e aumentou as discrepâncias interrregionais. Todavia, tanto as respostas do governo quanto dos protestos populares seguiram, em grande parte, os padrões tradicionais e, embora as iniciativas auto-organizadas que surgiram antes da crise tenham continuado durante a pandemia, é pouco provável que o sistema político russo ou sua estrutura social saiam da crise transformados.
A pandemia aumentou as já grandes discrepâncias entre as regiões, em termos de renda e infraestrutura. Essas diferenças aumentaram ainda mais quando o presidente Vladimir Putin cedeu aos governadores regionais, antes reprimidos, para lidar com a pandemia. No entanto, isso não parece ter enfraquecido visivelmente sua posição. Antes do início da pandemia, ele introduziu emendas constitucionais destinadas a garantir seu domínio do poder vitalício e cimentar valores conservadores e isolacionistas.
Essas mudanças foram oficialmente aprovadas em um referendo (comprovadamente fraudado), realizado durante uma semana entre junho e julho. Ao contrário da vizinha Bielo-Rússia, onde a falta quase absoluta de medidas de proteção facilitou protestos pré-eleitorais inesperados, a Rússia não teve nada parecido com a grande onda de protestos populares que se seguiu às falsas eleições de 2011 e 2012.