Relatório da Comissão de Inquérito, que será lido quarta-feira, avalia haver indícios suficientes para que a Procuradoria-geral e o Ministério Público acusem 68 pessoas, incluindo o presidente da República e três dos seus filhos, responsabilizando-os por milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas durante a pandemia.
Luis Leiria, Esquerda.net, 20 de outubro de 2021
O senador Renan Calheiros (MDB) leu esta quarta-feira o Relatório final, de mais de mil páginas, com as conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a pandemia da Covid-19 no Brasil.
O relatório considera existirem indícios e provas suficientes para que a Procuradoria-geral acuse o Presidente da República, Jair Bolsonaro, por nove crimes: causar epidemia, com resultado de morte; infração a medidas sanitárias preventivas; charlatanismo; prevaricação; emprego irregular de verba pública; incitação ao crime; falsificação de documentos particulares; crime de responsabilidade e crime contra a Humanidade.
A leitura do relatório foi atrasada um dia para que os sete senadores que formaram a maioria da comissão (e que ficaram conhecidos como o “G7”) pudessem chegar a um acordo sobre alguns pontos de divergência com o relator.
Assim, Calheiros acabou por ceder e retirar a acusação a Bolsonaro por genocídio contra as nações indígenas da Amazónia, que constava numa primeira versão. Retirou, também, da lista de crimes de que o presidente é acusado, o de homicídio qualificado pela responsabilidade por milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas durante a pandemia.
Além de Jair Bolsonaro, a CPI pede também a acusação dos três filhos ativos politicamente: o senador Flávio, o vereador do Rio de Janeiro Carlos e o deputado federal Eduardo, por incitação ao crime, ao divulgarem, através da chamada “comissão do ódio”, um chorrilho constante de fake news. Constam também da lista quatro ministros, três ex-ministros, duas empresas, empresários e médicos que defendem tratamentos ineficazes e inúteis contra a pandemia de Covid-19.
Enquanto a CPI investigava, houve mais de 200 mil óbitos
A Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Covid foi oficialmente instalada no Senado Federal do Brasil, em 27 de abril deste ano, quando o país registava 395 mil mortes provocadas pela pandemia. Naquela data, vivia-se um dos picos de incidência da doença, com mais de 2.400 óbitos diários. Uma sondagem mostrava que 59% dos brasileiros eram favoráveis à instalação da CPI, e apenas 7% se diziam contra; 34% não sabiam.
Seis meses depois, quando os trabalhos da Comissão chegam ao fim, o Brasil já supera a triste marca de 600 mil mortos. A pandemia, felizmente, está a refluir, ainda assim com 330 mortes diárias (média móvel). Este resultado é atribuído ao esforço de vacinação dos governos estaduais e a adesão da população, que lutou pela vacina contra a vontade do governo federal. Apesar de todos os boicotes e dos atrasos na compra das vacinas, 70,9% da população já recebeu a 1ª dose e 48,7% têm o esquema vacinal completo. Entre eles não está Jair Bolsonaro, que avisou publicamente que não irá vacinar-se.
Política deliberada de sabotagem das medidas sanitárias
Nestes seis meses de trabalhos, a CPI conseguiu acumular provas de que uma grande parte das mortes por Covid poderia ter sido evitada se o governo Bolsonaro não tivesse optado por uma política deliberada de sabotar as medidas sanitárias recomendadas para a pandemia, e de boicotar, igualmente, durante meses, a aquisição de vacinas. Se compradas no momento certo, elas poderiam ter salvo outros milhares de vidas.
A conclusão a que CPI chegou foi que toda esta atividade de sabotagem foi deliberada e estava baseada na teoria assassina de que a melhor forma de combater a pandemia seria obter uma ilusória imunidade de grupo, permitindo a circulação acelerada do vírus para que supostamente os anticorpos desenvolvidos pelas pessoas infetadas se espalhassem e acabassem por conter a doença.
Quando, devido aos acordos firmados pelo governador de São Paulo com os fabricantes da vacina chinesa Coronavac, Bolsonaro se apercebeu de que ia ficar atrás de um dos seus rivais políticos, já que a população ansiava pela vacina, mudou a orientação e passou a defender a vacinação para quem quisesse e ordenou manobras de última hora para a compra de milhões de vacinas. Só que, por essa altura, o Ministério da Saúde já tinha desperdiçado oportunidades de ouro, como a oferta da Pfizer que lhe teria garantido 1,5 milhões de doses ainda em 2020, num total de 18,5 milhões até junho de 2021. Uma oferta que ficou sem resposta por parte do Ministério da Saúde. Quando Bolsonaro e o general Pazuello, o ministro da Saúde, quiseram voltar atrás já era tarde e a vacinação, por culpa deste e de outros atrasos, andou a passo de tartaruga nos primeiros meses.
Um Reality Show muito real
Nem Big Brother, nem Masterchef, nem De Férias com o Ex. O mais famoso reality show emitido na TV e nas redes sociais nestes últimos seis meses no Brasil foram as emissões em direto pela TV Senado das sessões de trabalho da Comissão de Inquérito sobre a Pandemia de Covid-19.
O Senado Federal do Brasil tem um canal aberto, que funciona no cabo, em streaming e no Youtube, e acumulou recordes de audiência. Neste último canal, o mais visto foi o depoimento do empresário bolsonarista Luciano Hang, que teve 1,59 milhão de visualizações (dados de 1 de outubro), seguido dos depoimentos dos irmãos Miranda, que denunciaram a corrupção nos negócios de vacinas (1,38 milhão). O depoimento do general e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, do ex-diretor do Departamento de Logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias, que recebeu voz de prisão ao vivo, e da diretora da empresa Precisa Medicamentos Emanuela Medrades, também tiveram mais de um milhão de visualizações. Além de emitir pelo seu próprio canal, a TV Senado disponibilizou o sinal para outros, e os canais de notícias, como a Band News, a GloboNews e a CNN Brasil aproveitaram, sempre com bons resultados nas audiências.
O “gabinete paralelo” e o “kit Covid”
A CPI comprovou também que esta orientação era promovida e controlada não a partir do Ministério da Saúde, mas sim da própria Presidência da República, por um grupo conhecido como “gabinete paralelo” que fazia uma assessoria extraoficial ao presidente dirigida pelo senador Osmar Terra, e onde participavam, entre outros, uma médica várias vezes cotada para assumir a pasta da Saúde, um advogado e irmão do ministro da Educação, um oftalmologista presidente da Associação Médicos Pela Vida.
Foi este “gabinete paralelo” que impulsionou a distribuição do “kit Covid”, apresentado como um tratamento precoce e até preventivo que seria capaz de evitar a contaminação e/ou de tratar a doença, impedindo hospitalizações e sobretudo mortes. Os medicamentos eram a hidroxicloroquina, usada para combater a malária, a azitromicina, um antibiótico, e a ivermectina, eficaz no combate a infestações de piolhos ou de sarna.
Na verdade, o “kit” não passava de pura charlatanice: nenhuma daquelas drogas produzia qualquer efeito contra a Covid, mas o governo comprou milhões destes “kits” e o Ministério da Saúde obrigou os médicos a receitarem-no generalizadamente aos seus pacientes.
O relatório destaca também o papel nefasto do ministro Eduardo Pazuello, o que mais tempo manteve o comando do Ministério da Saúde devido à sua fidelidade a Bolsonaro. Foi na sua presença – ele que fora indicado para o cargo não por entender alguma coisa de medicina mas pela sua especialização em logística – que ocorreu a crise do oxigénio no hospital de Manaus. Pacientes morreram asfixiados por falta de oxigénio, situação que era perfeitamente previsível e poderia ter sido evitada. Mas, diz o relatório da CPI, Pazuello quis fazer da cidade e do Estado do Amazonas uma espécie de laboratório a céu aberto.
O caso Covaxin: a corrupção à solta no governo Bolsonaro
À medida em que avançavam os trabalhos CPI, iam surgindo novas e inesperadas denúncias que expuseram com clareza as razões que levaram o Ministério da Saúde a boicotar negociações com algumas farmacêuticas ao mesmo tempo que pulava etapas para assinar contratos com outras.
Não se tratava de preconceitos ideológicos. O que estava em causa era privilegiar aquelas que estavam dispostas a pagar luvas milionárias aos negociadores do ministério. Isto é: além das atitudes irresponsáveis que levaram à escassez de vacinas e a milhares de mortes desnecessárias, os responsáveis do governo Bolsonaro quiseram enriquecer à custa do sofrimento do povo.
Depoimentos ouvidos na CPI deram conta de que as negociações do contrato com o laboratório indiano Bharat Biotech, intermediadas pela empresa brasileira Precisa Med, incluíam o pagamento de “luvas”. Nas negociações, o preço da vacina, em vez de cair, como seria natural numa encomenda de 20 milhões de doses, subiu de 10 para 15 dólares por vacina, ultrapassando o valor pago pelos outros imunizantes (Coronavac, Pfizer e AstraZeneca).
Apesar de nunca ter sido entregue um único frasco da Covaxin ao Ministério da Saúde, o governo preparava-se para fazer um primeiro pagamento, apenas suspenso à última hora por a Precisa ter pedido que o dinheiro fosse depositado num Paraíso Fiscal. Um funcionário do Ministério, Luis Ricardo Miranda, irmão do deputado Luis Miranda, denunciou o caso suspeito à CPI, afirmando ter levado as suspeitas ao próprio Bolsonaro, que prometera apurar o que se passava, mas nada fez.
Intermediários e charlatães
Pazuello e o seu braço direito, o coronel Élcio Franco, davam preferência às negociações com intermediários, por mais estranhos que parecessem. Com uma empresa de comércio exterior de nome World Brands, assinaram um memorando de entendimento para o fornecimento de 30 milhões de doses da Coronavac por 28 dólares a dose, quase o triplo do que fora pago pelo Instituto Butantan.
O mais inusitado intermediário foi um cabo da polícia militar, Luiz Paulo Dominghetti, que se reuniu três vezes com a cúpula do Ministério da Saúde, e denunciou à CPI ter chegado a receber um pedido de luvas de um dólar por dose para desbloquear uma suposta compra de 400 milhões de unidades da AstraZeneca!
O caso Prevent Senior
Já perto do encerramento dos trabalhos da CPI surgiu o caso da Prevent Senior, um seguro de saúde dedicado à terceira idade, que ministrou cloroquina aos seus clientes sem que estes tivessem disso conhecimento, numa tentativa de produzir estudos que confirmassem a validade do “kit Covid”. Os testes eram manipulados, sendo as certidões de óbito por Covid falsificadas pela empresa, que atribuía outra causa à morte.
O caso foi denunciado por médicos da própria Prevent, através de uma advogada que os representou. Ela acusou o governo de firmar um “pacto” com a empresa para validar o tratamento com medicamentos sem eficácia comprovada, aprovando também o discurso da Presidência contrário ao isolamento social e ao confinamento.
O “gabinete do ódio” para espalhar fake news
A CPI confirmou também a existência do “gabinete do ódio”, um grupo coordenado por Carlos Bolsonaro, filho do Presidente e vereador do Rio de Janeiro, destinado a espalhar notícias falsas por toda a Internet. O grupo funcionaria em sete núcleos (comando, formulação, execução, núcleo político, operação, disseminação e financiamento) e contaria com a participação de Flávio e Eduardo Bolsonaro, os outros filhos do presidente envolvidos na política, assessores do Planalto e empresários bolsonaristas.
O que acontece em seguida
Aprovado o relatório, a CPI chegará ao fim dos seus trabalhos. O relatório será enviado ao Ministério Público, à Procuradoria-geral da República ou até ao Tribunal Penal Internacional, de acordo com a tipificação dos crimes em causa. Aí começam os problemas, já que o Procurador-geral, Augusto Aras, tem demonstrado uma fidelidade total a Bolsonaro. O mais provável é que as denúncias da CPI sejam arquivadas e tudo “termine em pizza”, algo muito comum no país. Mas a instabilidade política é tal que tudo pode acontecer.
De qualquer forma, já estão em curso oito inquéritos ou investigações feitas por diversos órgãos do Estado, como o Tribunal de Contas da União, a Controladoria-geral da União, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária ou a Polícia Federal, que foram abertos devido a depoimentos e provas recolhidas pela CPI, em mais de 2.700 documentos.