Primeiro livro do francês Pierre Charbonnier publicado no Brasil, Abundância e liberdade: Uma história ambiental das ideias políticas, traz uma profunda investigação filosófica sobre as origens e o significado da história ambiental. Ao abordar um contexto de brutais mudanças ecológicas, climáticas, políticas e sociais, a obra marca um novo desafio: o de reconstituir os arranjos entre sociedade e natureza tendo em vista as categorias políticas modernas sobre as quais foram assentados.
Fabio Mascaro Querido, Blog da Boitempo, 27 de outubro de 2021
Não é pequena a ambição de Abundância e liberdade: uma história ambiental das ideias políticas. Informado pelos desafios do presente, em especial a crise ecológica, Pierre Charbonnier atravessa vários séculos da história das ideias políticas e filosóficas. Porém, em vez de fazer o caminho mais óbvio, procurando nos pensadores modernos os germes do ambientalismo atual, ele os retoma à luz dos arranjos entre sociedade e natureza que implícita ou explicitamente ancoram suas perspectivas político-filosóficas. Daí o intento, arrolado no subtítulo do livro, de “uma história ambiental das ideias políticas”, à diferença do que seria, por exemplo, uma história política da emergência progressiva da sensibilidade ecológica.
Com isso, contornando a tentação um tanto inescapável do anacronismo, já que – como nos ensinou Benjamin – sempre olhamos o passado com a lupa do presente, o jovem filósofo francês demonstra o enraizamento material das categorias políticas modernas, destacando as condições históricas e ambientais sob as quais foram elaboradas. Foi no horizonte da abundância econômica, assim como do aprimoramento ilimitado da natureza, que se fundou a perspectiva da liberdade dos modernos – horizonte hoje posto em questão pela crise climática e pelos efeitos destrutivos do produtivismo capitalista.
No limiar entre passado e presente, Charbonnier nos coloca diante de um dilema que já há algumas décadas nos aflige: como repensar a emancipação e, portanto, a autonomia e a liberdade fora da lógica da expectativa de um crescimento sem limites?
Se, desde o século XIX, o pensamento socialista (em sentido amplo) tem respondido ao choque geoecológico ocasionado pela industrialização apregoando a necessidade de proteção da sociedade contra os efeitos nefastos do primado do mercado, o socialismo do século XXI precisará requalificar a fundo o modo de interdependência entre o mundo social e seus recursos e ambientes, para além da projeção infinita da abundância, mas também em oposição à recusa em bloco de toda relação produtiva com a natureza.
Somente assim – como se depreende deste livro que, na França, já se tornou incontornável – a humanidade estará em condições de puxar o freio de emergência, ou melhor, de mudar a velocidade e, sobretudo, a direção da locomotiva, antes que a catástrofe, hoje apenas possível, se torne inevitável.
O autor argumenta que para entender o que está acontecendo com o planeta é necessário retornar às formas de ocupação do espaço e do uso da terra vigentes nas sociedades da primeira modernidade ocidental: “Para compreender os impérios do petróleo, as lutas por justiça ambiental e as curvas perturbadoras da climatologia, é preciso voltar à agronomia, ao direito e ao pensamento econômico dos séculos XVII e XVIII […]. Para compreender nossa incapacidade de impor restrições à economia em nome da proteção de nossa subsistência e de nossos ideais de igualdade, é preciso retornar à questão social do século XIX e ao modo como a indústria afetou as representações coletivas da emancipação”.
A atual crise climática revela de maneira espetacular a relação entre a abundância material e o processo de emancipação. Com o livro, Charbonnier lança as bases de uma reflexão coletiva sobre os resultados do paradigma moderno do progresso e os sentidos que damos à liberdade em um momento em que a crise climática, ecológica e econômica coloca em perigo sua própria realização.
Fabio Mascaro Querido é Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp, autor de Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 2016), e membro do conselho editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.