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Crise da globalização neoliberal, o lugar do Brasil e os desafios da esquerda

13 de agosto de 2024

Escrevemos este documento em outubro de 2023, como parte do processo de elaboração da IV Conferência Nacional da Insurgência. Produzido a muitas mãos e resultado de discussões que viemos acumulando nos últimos anos, nele buscamos sistematizar os principais vetores e tendências em curso na atual situação mundial. Esta contribuição foi um esforço no sentido de localizar histórica e politicamente os desafios que temos diante de nós.

A contribuição foi aprovada pela IV Conferência Nacional da Insurgência como um documento de trabalho, a ser desenvolvido e discutido pela nossa militância interna e externamente à organização. Publicamos hoje este documento com esse objetivo. Sabemos que há e sempre haverá atualizações a serem feitas, mas esperamos que possa contribuir para o debate entre as organizações e ativistas com quem nos relacionamos.

 

Já há algum tempo que trabalhamos na Insurgência o entendimento de que o cenário, nacional e internacionalmente, é grave e atravessado por uma conjunção de crises. A crise climática, pano de fundo cada vez mais protagonista no cotidiano social, que objetivamente atravessa e condiciona todas as demais crises; a crise econômica não resolvida desde 2008; crises energéticas, geopolíticas, militares, de disputa de hegemonia entre os imperialismos históricos e ascendentes. Somam-se ainda uma crise e luta aberta no interior das burguesias centrais e suas associadas, que se encontram divididas sobre qual rumo deverão tomar diante do esgotamento do modelo consolidado nos anos 1990; e uma crise no interior da esquerda, marcada por sua fragmentação, frágil implantação social e pela ausência de uma orientação política mais geral que dê conta dos desafios impostos pelo tempo histórico de intensas transformações que atravessamos.

Todas essas crises se interdeterminam, isto é, interagem e se condicionam entre si, influenciando umas às outras enquanto se desenvolvem. Assim, o desafio a que se propõe este documento é uma sistematização dos principais vetores desse conjunto de crises e da dinâmica dessa interdeterminação ao longo dos últimos anos, sempre à luz do desenvolvimento das lutas de classes ao longo do período. Por fim, buscamos também o levantamento de hipóteses político-programáticas para a intervenção da esquerda na situação histórica em que vivemos.

 

1. A crise de 2008 e seus desdobramentos imediatos

É na crise de 2008 que podemos identificar um primeiro marco de desenvolvimento da situação mundial que vivemos. Embora nos anos posteriores o capitalismo de maneira geral tenha recuperado taxas aceitáveis de crescimento, a profundidade e alcance da crise expressaram um esgotamento do pacto social e econômico da globalização neoliberal estabelecido com a queda do bloco soviético no início dos anos 1990. É a partir dessa crise que têm início os desdobramentos políticos que marcam a última década.

A resposta das burguesias centrais diante da crise foi dupla e imediata: de um lado, volume recorde de injeção de fundos públicos para proteger o mercado financeiro e suas instituições, com algumas delas inclusive renacionalizadas; de outro, rígidos programas de austeridade – isto é, de retirada de direitos sociais da classe trabalhadora e setores populares, garantindo a recuperação dos lucros por meio de uma intensificação da exploração. O impacto da crise sobre as condições materiais de vida da classe trabalhadora em diversos países foi, assim, potencializado pela política dirigida pelos EUA e União Europeia.

Passados dois anos de recrudescimento da situação social e econômica dos setores populares, passa a se desenvolver um ciclo de mobilizações crescente a nível internacional. Já em 2010 ganha alcance de massas a luta contra os pacotes de austeridade na Irlanda e na Grécia. Em janeiro de 2011 uma onda de manifestações contra o desemprego, a fome e o regime derruba o governo de Ben Ali na Tunísia. De lá, o movimento rapidamente se espalha na região e no mesmo ano são derrubados também os governos do Egito e Líbia. Na Síria, as mobilizações tomam o caminho das armas contra o governo de Bashar Al Assad. Também em 2011 tem início as mobilizações em Portugal, Espanha, EUA e Reino Unido – processos com diferentes, mas então progressivos impactos sobre a reorganização da esquerda nesses países, com a fundação do Podemos na Espanha; o novo impulso do Bloco de Esquerda em Portugal ou do DSA nos EUA; e o fortalecimento da ala esquerda do Partido Trabalhista na Inglaterra. O ciclo de mobilizações se desenvolve e em 2013 chega à Turquia e ao Brasil.

Finalmente, em 2014 o Syriza, naquele momento a ferramenta partidária mais promissora que emergia do ciclo político aberto em 2008, vence as eleições gregas e forma governo em janeiro de 2015. O país era a experiência mais avançada desenvolvida neste ciclo, com mobilizações massivas frequentes, importante participação da esquerda, sindicatos e movimentos sociais, e um dos mais atingidos pela crise na Europa. Parecia então haver esperança para uma ruptura com a União Europeia e sua austeridade econômica. Em junho o novo governo convoca um referendo para que a população decidisse se aceitaria a proposta econômica feita pela UE – e faz campanha pelo voto contrário. O “NÃO” (OXI, em grego) vence com 61% dos votos. De volta à negociação com a UE, no entanto, o governo Tsipras capitula e decide aceitar um pacote ainda pior do que o que fora rejeitado no referendo.

Se a queda de Ben Ali na Tunísia pode ser entendida como o que parecia o início de um ciclo de mobilizações progressivas, a capitulação do Syriza encerra a possibilidade – naquele momento ainda em aberto – de que uma força à esquerda dos reformismos históricos se consolidasse como uma alternativa viável e coerente para a crise aberta em 2008. A relação de forças internacionalmente e a insuficiente preparação prévia da esquerda para sua postulação como alternativa se expressaram nesse episódio de maneira trágica.

De fato, em termos gerais, o ciclo de mobilizações pós-2008 não teve um desfecho progressivo, pelo contrário. Na Líbia, onde a intervenção militar da OTAN foi decisiva para a captura de Gaddafi, o resultado foi um retrocesso tão profundo que nos anos seguintes passou a haver mercados de trabalhadores escravizados no país. No Egito, após a queda de Mubarak, houve uma junta de transição, um curto governo civil dirigido pela Irmandade Muçulmana e, por meio de um golpe militar, desde 2014 o país é governado pelo general El-Sisi. Na Síria, o crescimento do Estado Islâmico e outros grupos religiosos armados transformou a revolta na guerra civil de longa duração que segue até hoje, ainda que em menor intensidade. Na Turquia, Erdogan é quem saiu vitorioso e se consolidou no poder. Assim, tomada como um todo, na Primavera Árabe quem venceu foi a contra-revolução. Na Europa, foi a austeridade quem prevaleceu.

Nesse sentido, é importante observar que, se é verdade que a crise de 2008 abriu um ciclo de mobilizações no geral progressivo, o fato é que esse ciclo, na ausência de vitórias decisivas pela esquerda, se esgotou e foi derrotado historicamente: a dinâmica se inverteu. Qualquer análise da situação mundial que afirme uma continuidade da dinâmica progressiva deste ciclo até hoje estará convocando a esquerda a repetir graves erros políticos cometidos no passado. Não há na situação mundial hoje a possibilidade de ser definida como uma “polarização”: o desequilíbrio de forças é o que prevalece. Desde ao menos 2015, o signo geral da situação política mundialmente é de derrotas para a esquerda e a classe trabalhadora. A partir daí, quem assume a iniciativa política é a burguesia de conjunto, e particularmente seu setor mais reacionário.


2. A divisão da burguesia e a ofensiva da extrema-direita

Diante de uma crise econômica não plenamente superada e de, ainda que tenham se esgotado, importantes resistências populares às medidas implementadas para preservar o modelo vigente até então, passa a se desenvolver uma divisão no interior das burguesias dos países centrais – e, portanto, também uma disputa sobre as burguesias a elas associadas nos países periféricos e semi-periféricos – sobre o que fazer diante da situação. Essa divisão se estabelece a partir do giro de uma fração da burguesia a nível mundial para a extrema-direita – conceito “guarda-chuva” que utilizamos para englobar suas expressões neofascistas, bonapartistas, etc. Se a derrota do ciclo de mobilizações populares entre 2010 e 2015 prepara o caminho, o ano de 2016 é um importante ponto de virada porque consolida essa divisão a partir de duas importantes vitórias da extrema-direita: no referendo sobre a ruptura do Reino Unido com a União Europeia, isto é, com o bloco que o país compunha com Alemanha e França, e na eleição de Trump e seu America First nos Estados Unidos.

 

2.1 A extrema-direita, seu programa e desenvolvimento

Ambos processos expressam um mesmo movimento e conteúdo: questionando os acordos estabelecidos na globalização neoliberal, buscam reposicionar seus Estados nacionais na divisão geopolítica e econômica do mundo, negociando ou impondo posições a partir de seus próprios pesos individuais na luta pelas cadeias de valor do capital. Para isso, internamente promovem uma radicalização do neoliberalismo no que diz respeito à luta de classes: mobilizam forças reacionárias para aprofundar a exploração particularmente sobre os setores mais oprimidos da classe trabalhadora em seus territórios, o que confere a seu programa o salto de qualidade na afirmação do racismo, do machismo, do ódio às LGBTs e aos povos emigrados. Nos anos seguintes, vimos o crescimento acelerado e a massificação de correntes de extrema-direita em diversos países: além dos EUA e Reino Unido, a França, Espanha, Alemanha, Itália, Hungria, Polônia, El Salvador, Índia, Filipinas, Brasil. A alternativa de extrema-direita se provou, nestes anos, capaz de definir a agenda política a nível mundial, conquistando governos importantes ou se tornando uma força política incontornável em todas as partes do planeta, contando também com intenso nível de articulação internacional entre seus partidos.

Em relação à política externa dessa fração de extrema-direita, ficou também evidente o estabelecimento de uma ofensiva imperialista, particularmente sobre a América Latina. É certo que foram processos que contaram com apoio de setores ou da maioria das classes dominantes a nível local, mas a Lava-Jato, preparada em conjunto com o Departamento de Estado dos EUA, o golpe no Brasil em 2016, bem como a posterior eleição de Bolsonaro em 2018; o golpe na Bolívia em 2019 e a tentativa de golpe na Venezuela, inclusive com operações militares dos EUA – são as expressões mais evidentes dessa ofensiva do imperialismo sobre nossa região.

De fato, o setor da burguesia que se desloca à extrema-direita é o fator mais decisivo do ponto de vista da relação de forças entre as classes a nível mundial. Essa fração não teve sucesso apenas em alterar a situação política em seu benefício próprio: suas vitórias colocaram o conjunto da burguesia na ofensiva contra a classe trabalhadora. Se a burguesia saiu já fortalecida no pós-2008 pelas derrotas impostas à esquerda, esse processo só fez se intensificar com a consolidação da extrema-direita no cenário mundial. A partir daí, duas contra-reformas estratégicas para a burguesia de conjunto foram aprovadas em diversos países – as reformas previdenciárias e trabalhistas. Evidentemente, essas derrotas acumuladas têm um impacto sobre a consciência da classe trabalhadora e dos setores populares, que se viram obrigados a passar para a luta pela sua própria sobrevivência material e política, com uma perda importante da confiança em suas próprias forças.

Nesse sentido, é importante afirmarmos nossa rejeição às ideias vinculadas ao que historicamente se chamou a “teoria da ofensiva”, política oriunda do estalinismo mas que encontra forte presença nas organizações de origem trotskista. Segundo essa linha, a extrema-direita se fortalece pela sua “radicalidade” ou por seu “programa anti-sistema”, e portanto a tarefa da esquerda seria promover esse enfrentamento por meio também de uma radicalização programática. Essa teoria se combina também, de forma menos explícita, à ideia do “social-fascismo” elaborada pelo estalinismo – linha que afirma que, uma vez que os limites estratégicos do reformismo seriam o principal fator de origem da crise política, este deve ser enfrentado em igual medida que o fascismo. Os exemplos históricos da falência dessa política são muitos, a começar pelo fato de que essa política não serviu para impedir a ascensão do nazismo na Alemanha – pelo contrário, contribuiu. Mais recentemente, a FIT na Argentina seguiu pelo mesmo caminho no segundo turno entre Milei e Massa, o neofascismo contra o peronismo.

O fato é que qualquer programa deve sempre responder a determinada situação política, não existe em abstrato. Nesse sentido, a extrema-direita ou o neofascismo só encontram eco à radicalidade de seu programa porque é a burguesia de conjunto que está na ofensiva, não a classe trabalhadora. Fosse a classe trabalhadora que estivesse na ofensiva, isto é, organizada, obtendo vitórias e avançando posições na luta de classes contra a burguesia – aí faria sentido a esquerda avançar para um programa que colocasse o sistema em questão.

Em uma situação defensiva, ao contrário, nossa tarefa deve ser a luta pela concentração das forças da classe trabalhadora em frentes comuns entre a esquerda revolucionária e a reformista; nesse processo, a luta pela conquista da hegemonia sobre a classe trabalhadora, cuja crença no reformismo se amplia em situações defensivas; a luta por conquistas imediatas, ainda que parciais, para a classe trabalhadora, buscando alavancar sua consciência e confiança nas próprias forças a partir de sua mobilização tão ampla quanto possível. Este é, ao menos, o acumulado histórico feito pela III Internacional antes de sua estalinização e na importante elaboração feita por Trotsky na luta contra o fascismo. E se é verdade que essa elaboração precisa ser atualizada à luz das experiências posteriores da esquerda, também não devemos esquecer que temos nela um ponto de partida.


2.2 A burguesia liberal-democrática: da paralisia à “transição verde”

Há ainda o outro setor da burguesia nesse fracionamento, o que não se deslocou para a extrema-direita. Essa parte da burguesia passou anos paralisada diante das vitórias em série de sua fração adversária: limitou-se no primeiro momento apenas a defender os marcos do Consenso de Washington e as instituições do regime liberal-democrático. Sua incapacidade de responder à crise de seu próprio modelo foi, evidentemente, amplamente explorada pela extrema-direita.

Mais recentemente, no entanto, pressionada particularmente pela massificação do movimento ambientalista nos países centrais em 2019, a fração liberal-democrática ganhou posições a partir do projeto de uma transição energética “verde”, prometendo pacotes de investimento público capazes de reorganizar e adaptar o capitalismo a matrizes energéticas novas ou menos poluentes. Se levada a cabo, teria impacto sobre o conjunto das cadeias de produção e reprodução do capital a nível mundial, embora não haja qualquer motivo para acreditar que poderia vencer estruturalmente a crise ambiental. Paralelamente, com alguma inspiração rooseveltiana, esse setor ainda promete avançar na recuperação de parcela dos direitos perdidos pela classe trabalhadora ao longo das últimas décadas a nível nacional nos países centrais.

A fração liberal-democrática recuperou espaço em países importantes com esse programa: retomou o governo dos EUA e venceu na Alemanha, além da Espanha e outros países. Isso não significa, no entanto, que a luta intraburguesa tenha se encerrado. Essas promessas seguem longe de obterem avanços significativos. Seja pelo peso da extrema-direita nesses países, seja pela intensa disputa geopolítica em curso nos anos mais recentes, que impõe obstáculos à reorganização das cadeias de valor a nível mundial. Segue portanto em aberto qual projeto burguês prevalecerá para a saída da crise da globalização, com a fração de extrema-direita na dianteira 

De fato, as eleições na Argentina neste 2023 demonstram o caráter aberto dessa disputa intraburguesa: se vencer Milei, é evidente que seu impacto sobre a relação de forças na América Latina será importante, fortalecendo a extrema-direita no Brasil, Chile, Bolívia, Peru, Colômbia. Da mesma forma devemos observar as eleições presidenciais nos EUA em 2024 – uma vitória de Trump ou dos Republicanos certamente recolocaria a extrema-direita em posição mais ofensiva a nível mundial. Em outras palavras, assim no Brasil como internacionalmente, a extrema-direita segue viva, organizada, disputando e ativa na luta de classes para moldar o mundo à sua imagem e semelhança. A situação política segue, portanto, instável – fator que devemos levar em consideração mesmo ao caracterizar o atual governo brasileiro e os riscos que lhe atravessam. A prioridade política para a esquerda segue sendo a luta contra a extrema-direita.


3. China e a disputa inter-imperialista

O cenário se relaciona ainda com outro fator importante da situação mundial: a ascensão da China e seu desafio à hegemonia dos EUA consolidada após o fim do bloco soviético. Hoje a segunda maior economia do planeta, com crescente exportação de capitais e presença militar em uma série de países, ainda assim a China não ocupa o papel dos EUA em escala mundial. Mas sua ascensão apresenta um nítido desafio ao projeto estadunidense de hegemonia, de modo que essa batalha unifica as frações burguesas nos EUA, e suas subordinadas europeias, em torno do objetivo estratégico de preservação de suas posições dos últimos 30 anos. Toda a política internacional no próximo período será pautada por essa disputa.

A caracterização do que é a China e seu projeto político demandam um maior aprofundamento do conjunto da esquerda sobre o tema. Se nos parece óbvio que não se trata de um modelo de socialismo pelo qual nos devêssemos orientar, por outro lado não nos parece suficiente tratar a China como apenas mais uma expressão do capitalismo global. Estamos falando do mais antigo Estado nacional da história, com alto nível de centralização e planificação econômica. Seu projeto econômico, em grande medida controlado pelo Estado, pressiona mesmo setores das burguesias centrais a rever o papel atribuído à presença estatal pelo neoliberalismo – como ideólogos burgueses chegam a afirmar até expressamente. A título de hipótese, consideramos a China um imperialismo ainda em ascensão, orientada centralmente por um projeto nacionalista, não socialista, embora também seja marcado pela revolução que alçou o Partido Comunista à direção do Estado. De toda forma, é um tema que segue merecendo maiores e mais aprofundadas discussões.

A ascensão chinesa e o desafio que ela impõe à hegemonia dos EUA e União Europeia, por sua vez, já é um fator de cada vez mais intensas disputas geopolíticas e econômicas. Essas disputas têm centro na luta pelas cadeias de valor, sejam energéticas, tecnológicas – caso dos semi-condutores –, ou sobre recursos naturais e matérias-primas – ambos cada vez mais valiosos diante da intensificação da crise ambiental. Seu desenvolvimento se traduz em cada vez mais frequentes conflitos geopolíticos e militares, e em um potencial maior de convulsões sociais, como se vê hoje na região do Sahel africano – em que a disputa sobre matérias-primas tecnológicas e energéticas é central tanto para o imperialismo francês, quanto para a presença russa e chinesa na região.

É sobre esse terreno que devemos caracterizar a guerra na Ucrânia, que representa um salto de qualidade nessa disputa inter-imperialista. Condenamos a agressão russa à soberania ucraniana. Mas é hoje muito difícil sustentar qualquer caracterização dessa guerra como apenas uma luta nacional entre os países envolvidos. Ao contrário, os EUA obtiveram sucesso em recuperar e recoesionar a OTAN – que vinha sofrendo de “morte cerebral”, nas palavras do presidente francês Emmanuel Macron – a partir desse conflito, transformando-o em uma etapa preparatória para a luta estratégica contra a ascensão chinesa. O envio quase irrestrito de armas ao governo Zelensky, as sanções unilaterais à Rússia, a insistência pelas potências imperialistas da OTAN em localizar a China como parte interessada na guerra, bem como a corrida armamentista que teve início a partir daí, atestam o caráter inter-imperialista do conflito. Desse ponto de vista, qualquer alinhamento da esquerda a qualquer dos blocos imperialistas em disputa – seja o hegemônico, seja o desafiante – seria um grave erro político. As forças populares nada tem a ganhar com a intensificação das guerras que já ocorre e deverá seguir em curso no próximo período: nossa posição deve ser pelo fim da guerra e do armamentismo imperialistas.

 

4. Impactos da pandemia e da crise ambiental

Finalmente, devemos caracterizar os impactos do que foi a experiência da pandemia de COVID entre 2020-2022 e como ela também influencia as crescentes transformações a nível mundial. Produto da ação destrutiva do capital sobre a natureza, a pandemia ampliou o questionamento à globalização neoliberal e mesmo ao próprio neoliberalismo: a partir daí, mesmo parte dos economistas burgueses nos países centrais passou a defender a necessidade de maior investimento público para o enfrentamento da crise. A pandemia pôs a descoberto também o impacto da privatização dos serviços de saúde em diversas partes do mundo.

Enquanto produto da crise ambiental, ainda, a pandemia acelerou a disputa mundial pelas cadeias de valor energéticas e de matérias primas estratégicas para a corrida tecnológica. As cada vez mais frequentes catástrofes climáticas – enchentes, secas, climas extremos – impactam as condições materiais de produção e reprodução do capital. Juntos, ambos fatores pressionam as burguesias liberal-democráticas a avançar em um projeto de capitalismo verde, ainda que se encontrem com dificuldades. E com isso vivemos hoje o início de uma disputa de mais longo prazo sobre os recursos naturais, com cada vez mais frequentes ensaios de um imperialismo verde por parte das burguesias centrais. A pressão por maior controle dos centros imperialistas sobre biomas ou matérias primas, como a Amazônia ou o Triângulo do Lítio na Argentina, Chile e Bolívia, deve se intensificar no próximo período. Nesse sentido, a luta contra a crise climática precisará ganhar também uma dimensão anti-imperialista no futuro próximo.

 

5. Algumas conclusões sobre a situação mundial

Esse conjunto de crises sinaliza que estamos diante de um período de transição na história mundial. Há um esgotamento do mundo surgido da globalização neoliberal; há uma divisão das burguesias centrais sobre as saídas para essa crise; há uma pressão material e objetiva exercida pela crise climática sobre o arranjo econômico, social e político estabelecido nas últimas décadas; há um imperialismo em formação, mas que já desafia a hegemonia dos EUA; há uma corrida armamentista e tecnológica orientada pela disputa de mercados a nível mundial, já em transformação quando comparados ao período anterior. O mundo em que vivemos já não é o mesmo da globalização neoliberal. Está em desenvolvimento uma ampla reorganização do capitalismo a nível mundial.

O que virá em substituição à globalização neoliberal, no entanto, é uma disputa em aberto. Será resultado da relação de forças que se cristalizar entre as classes sociais ao fim dessa transição. Se a extrema-direita se consolidará como um setor com peso duradouro, se haverá pressão suficiente dos movimentos sociais para que seja vencida a crise climática, dependerão fundamentalmente da capacidade da esquerda e da classe trabalhadora intervirem sobre as disputas em curso. Como vimos, até aqui essa capacidade tem sido limitada: é a extrema-direita quem tem imposto sua agenda. A segunda parte deste documento se dedicará à caracterização das forças de esquerda e populares.

 

6. O Brasil nesse cenário

Antes de nos dedicarmos à situação e desafios da esquerda, no entanto, temos a tarefa de sistematizar como essas disputas em curso se expressam na luta de classes no Brasil, bem como nossas lutas influenciam ou impactam essas disputas a nível mundial. Todos os processos que discutimos até aqui encontraram expressão em nosso país, caracterizando uma importante integração do Brasil à dinâmica mundial da luta de classes.

O ciclo de mobilizações pós-2008 chegou ao Brasil em 2013 com características semelhantes às que encontramos em diversos países: ausência de uma direção política bem estabelecida; uma nova geração, inexperiente, que emergia para a política; um certo grau de dispersão programática nas mobilizações, que tinham um alcance de massas.

Também se expressou aqui a mesma dinâmica de esgotamento enfrentada a nível mundial. Vencida a questão das passagens de transporte, a mobilização de rua se consolidou como ferramenta importante para a luta política – para a esquerda e para a direita, fenômeno também visto na Primavera Árabe. Sem direção e nitidez programática bem estabelecidas nas manifestações, a direita passou a disputar, de maneira muito explícita, as mobilizações de Junho já antes da revogação dos aumentos das passagens. Em São Paulo, que havia sido o epicentro das mobilizações, bandos neofascistas foram às ruas intimidar a esquerda já no ato de vitória da luta contra o aumento.

A partir daí, a direita foi disputando e ocupando cada vez mais espaço nas ruas e na sociedade. Também aqui a direita estabelece uma ofensiva a partir do fortalecimento de sua ala mais reacionária. A Lava-Jato unifica a burguesia local contra o governo de colaboração de classes. A sequência é duríssima para a esquerda e as forças populares. O golpe em 2016; o assassinato de Marielle Franco e a prisão de Lula em 2018; a greve dos caminhoneiros e a eleição de Bolsonaro no mesmo ano – tudo com evidente articulação com a extrema-direita a nível internacional. Também conseguem aprovar as duas contra-reformas estratégicas nesse período. Aqui, como internacionalmente, o ciclo de Junho se encerrou pelo menos desde 2015, ano em que a direita conquistou maioria nas ruas. E qualquer análise que estabeleça uma continuidade do caráter progressivo de Junho até hoje também induzirá a graves erros de leitura e intervenção política sobre a realidade.

Nesse período, a maior parte da esquerda brasileira fez corretos e importantes esforços unitários – que, se não tiveram força suficiente para evitar o golpe, derrubar Temer, evitar Bolsonaro ou derrubar seu governo, tampouco devem ser desprezados no balanço dos últimos anos. Sem as lutas unitárias da esquerda, nas quais o PSOL e a Frente Povo Sem Medo – além da própria Insurgência – tiveram participação decisiva, não é difícil imaginar que a situação poderia ter resultado ainda pior. Com a margem apertada da vitória eleitoral em torno de Lula contra Bolsonaro no ano passado, fica evidente que a unidade da esquerda também foi decisiva para impor um freio à barbárie em curso no país desde a massificação das mobilizações reacionárias em 2015.

Também se expressaram no Brasil as lutas intraburguesas. Se toda ou quase toda a classe dominante se alinhou com o golpe e com Bolsonaro contra o PT em 2018, esse bloco passou a sofrer divisões com o desenvolvimento do governo neofascista e das disputas fracionais das burguesias centrais. Com a vitória de Biden, o crescente isolamento do Brasil em suas relações internacionais e a gestão catastrófica da pandemia e da questão ambiental, semelhantes às de Trump nos EUA, parte da burguesia local buscou se deslocar do bolsonarismo. Houve de fato parcelas da classe dominante que apoiaram Lula. E sem o rápido reconhecimento de Biden ao resultado eleitoral brasileiro em 2022, o 8 de janeiro poderia também ter um desfecho muito mais grave.

O bolsonarismo, no entanto, assim como a extrema-direita internacionalmente, não está derrotado. Segue vivo, organizado e incidindo sobre a relação de forças no país. Seu programa e sua política contam com apoio da massa da burguesia, do agronegócio, do mercado financeiro, das Forças Armadas e das polícias. Têm implantação social de massas por meio do neopentecostalismo reacionário. Têm peso institucional para atacar o governo e o programa eleitos nas urnas em 2022. E qualquer desenvolvimento à extrema-direita a nível mundial também poderá dar ao bolsonarismo novo fôlego para recuperar sua ofensiva no Brasil.

Por fim, o governo Lula também tenta localizar o Brasil na disputa entre as frações burguesas centrais, buscando um posicionamento privilegiado para o país na agenda ambiental – o que seria uma possibilidade concreta em termos capitalistas soberanos, não exatamente o caso de nosso país. Nesse projeto, embora evidentemente seja muito superior à agenda bolsonarista, ainda há poucos avanços concretos. Da mesma maneira, tenta explorar as divisões do imperialismo – chamadas pela diplomacia europeia de “competição de ofertas” para o Brasil – em benefício do país, sinalizando um correto esforço de preservar uma relativa independência brasileira em relação aos blocos em disputa

7. A esquerda de 2010 a 2023

Finalmente, dedicaremos as páginas finais deste documento a um balanço do que foi a política e a capacidade de intervenção da esquerda internacionalmente nesse processo. Partimos da caracterização de que, desde a queda do bloco soviético e da consolidação da globalização neoliberal, com enorme impacto sobre a classe trabalhadora mundial tanto objetivamente – isto é, sobre a forma de organização do trabalho, mais fragmentada, desconcentrada e alienada – quanto subjetivamente – sobre a confiança em suas próprias forças, sua consciência social e política –, há um retrocesso decisivo e que define a relação de forças quando comparada à maior parte do século XX. Desde então, tanto o projeto socialista como a própria organização da classe trabalhadora sofrem de um profundo descrédito perante as amplas massas populares.

Essa caracterização precisa ser reafirmada porque, sem ela, não teremos dimensão do tamanho de nosso desafio histórico enquanto esquerda. Qualquer programa político que não dê centralidade à reorganização social e política da classe trabalhadora, ou seja, à reconstrução das ferramentas de organização de classe e à necessária reaglutinação e reimplantação das forças socialistas, não estará à altura da tarefa de restabelecer um horizonte socialista para a humanidade.

 

7.1 A crise do proletariado após o fim da URSS

Bensaïd fez um importante esforço em seu tempo para recuperar bases teóricas estratégicas que pudessem reorientar a esquerda no pós-URSS. Retomando Marx no 18 de Brumário de Luís Bonaparte, trabalha o conceito de classe social de um ponto de vista objetivo e subjetivo a um só tempo: ‘“Na medida em que milhões de famílias (...) vivem em condições econômicas que as separam umas das outras e opõem o seu gênero de vida, os seus interesses e sua cultura aos de outras classes da sociedade, constituem uma classe. Mas elas não constituem uma classe na medida em que (...) só existe uma ligação local, e em que a similitude dos seus interesses não cria, entre eles, nenhuma comunidade, nenhuma ligação nacional, nem nenhuma organização política.’ (...) Parecem, assim, constituir uma classe objetivamente (sociologicamente), mas não subjetivamente (politicamente)”.

Desse ponto de vista, caracterizamos que o impacto do fim da URSS e da globalização neoliberal é tamanho que a própria identidade de classe – o aspecto subjetivo –, em grande medida, retrocedeu em nosso tempo. Há, em algum nível, “comunidade, (...) ligação nacional, (...) organização política”, mas há infinitas delas: a fragmentação destes laços é o saldo de 30 anos de neoliberalismo. A classe trabalhadora se encontra em um patamar de fragmentação, de desorganização social e crise subjetiva não vistos talvez desde os primórdios da luta pelo socialismo. Em outras palavras, a crise da humanidade já não se resume à crise de direção do proletariado, como era caracterizado no Programa de Transição aprovado no lançamento da IV Internacional. Hoje, além da crise de direção, vemos também uma crise de organização da classe trabalhadora, que a bloqueia de se identificar como sujeito histórico e social – e mais ainda como sujeito da luta pelo socialismo. Superar essa fragmentação é, portanto, uma tarefa estratégica, uma pré-condição para a transformação revolucionária do mundo.

Isso não significa, no entanto, que a classe trabalhadora não tenha produzido lutas e resistências importantes, que inclusive contribuíram para um alargamento da própria compreensão do que é o proletariado. Mesmo sem se entender socialmente enquanto classe, enquanto uma totalidade, a classe trabalhadora encontra suas formas, programas e ferramentas para lutar. Nesse balanço dos últimos anos, cabe a nós identificar esses fenômenos para sabermos onde podemos nos apoiar para que a classe trabalhadora avance em sua própria reconstituição política.

 

7.2 O ciclo 2010-2015

Este primeiro ciclo foi marcado principalmente por dois vetores: na Europa, particularmente no Sul da Europa, a marca foram lutas populares contra o ajuste imposto pela União Europeia na sequência da crise; no Norte da África-Oriente Médio, pela luta por liberdades democráticas contra governos ou regimes estabelecidos décadas atrás. O desenvolvimento do ciclo nesses dois terrenos teve resultados distintos, e que devem ser sistematizados em nosso balanço.

Na Europa, particularmente no sul do continente – Grécia, Portugal, Espanha –, as mobilizações tinham uma agenda mais nítida programaticamente: derrotar o ajuste e a retirada de direitos dos setores populares. Contaram ainda com maior participação relativa de ferramentas de auto-organização da classe trabalhadora, como sindicatos, associações de bairro, movimentos sociais e mesmo partidos anticapitalistas, à esquerda dos reformismos históricos. Não à toa, mesmo derrotados ao fim e ao cabo, emergiram setores à esquerda fortalecidos, como demonstram os casos do Podemos, Syriza e Bloco de Esquerda. A traição do Syriza diante do resultado do referendo do OXI bloqueou em grande medida o desenvolvimento dessas alternativas, com a moderação deste partido e, posteriormente, também do Podemos. O caso do Bloco de Esquerda tem contornos de exceção: com a tática da geringonça, derrotaram a direita ao permitir a formação de um governo de colaboração de classes, sem fazer parte dele ou se submeter à sua disciplina, e seguem um partido de inegável relevância na disputa nacional.

Na Primavera Árabe, por sua vez, a marca esteve na dimensão multitudinária e na radicalidade das mobilizações, que enfrentaram ainda dura repressão por parte dos governos. Programaticamente, no entanto, a marca principal era a dispersão: a única unidade estava na derrubada dos governos, sem maior nitidez sobre as tarefas de reconstrução que se deveriam seguir, e com diferentes setores sociais e políticos disputando sua direção. De fato, nas mobilizações houve participação de setores organizados da esquerda, mas os setores majoritários foram os ligados ao islã político, cuja implantação social nos setores populares era muito superior, como demonstra o importante peso da Irmandade Muçulmana em diversos países. Em todos esses casos, os governos derrubados não foram substituídos por setores sequer progressivos.

Assim, há dois balanços centrais deste ciclo. O primeiro é a importância estratégica da implantação social da esquerda, que retrocedeu profundamente desde a queda do bloco soviético. Onde houve maior implantação para a disputa das mobilizações, o resultado foi menos dramático. Onde não houve, quem assumiu a direção dos processos foram justamente aqueles mais inseridos na organização das forças populares – normalmente forças religiosas de direita. Este é um balanço importante também para a esquerda brasileira, uma vez que em nosso país há forças reacionárias com profundas raízes nos territórios populares, e onde a direita também venceu a crise aberta em 2013.

O segundo balanço, talvez ainda mal incorporado por diversos setores da esquerda, é o entendimento de que não são todas as mobilizações massivas que são progressivas. A direita e a extrema-direita também têm mobilizado suas bases para lutar. Sem uma caracterização de quais forças disputam ou conquistam a direção desses processos, poderemos repetir erros já cometidos no passado. Assim, qualquer caracterização da situação mundial que se paute exclusivamente pelo objetivismo, por números de mobilizações, estará desconsiderando o principal fator da luta de classes no período: a massificação da extrema-direita internacionalmente

7.3 As resistências populares nos anos 2015-2019

Já sob o signo da defensiva após a massificação da extrema-direita mundo afora, há uma mudança no repertório político da esquerda e dos movimentos sociais. Na América Latina, uma das marcas é a resistência contra os golpes em curso na região. Foi assim no Brasil desde 2016, na Bolívia entre 2019-2020, e na Venezuela uma preocupação mais ou menos permanente.

Em países como a Colômbia ou o Chile, lutas contra aumentos dos combustíveis ou das tarifas de transporte também encontraram projeção nacional. Os resultados também são contraditórios e expressam o caráter aberto, ainda em disputa, deste período de transição em que nos encontramos. Na Colômbia, o processo terminou por levar Petro ao governo, o fenômeno mais avançado na América Latina hoje, programaticamente e na aposta na mobilização popular para enfrentar a direita. No Chile, foi aberta uma Assembleia Constituinte. Mas na Colômbia o acosso da direita se expressou nas últimas eleições municipais, em que a esquerda foi amplamente derrotada. No Chile, estamos às vésperas da votação do segundo projeto de constituição, agora pautado principalmente pela direita. Mesmo nas vitórias, a disputa segue em aberto.

Como dinâmica internacional, no entanto, a principal marca deste período foi o ascenso do movimento feminista em uma ampla série de países: Espanha, Suíça, Polônia, EUA, Brasil, Argentina, e mesmo no Irã com uma série de particularidades e contradições. Resistindo a ataques a direitos – caso do Brasil ou da Polônia – ou buscando avançar em uma agenda de reconhecimento de direitos sociais, econômicos e políticos, caso da Espanha ou Argentina, essas mobilizações conseguiram também se massificar em seus países e impuseram conquistas para o feminismo na sociedade, mesmo onde estas foram apenas ideológicas. A amplitude e o impacto foram tão grandes que mesmo setores da burguesia passaram a disputar com maior ênfase o movimento de mulheres, a partir da agenda do feminismo liberal, e hoje esta é uma pauta mais ou menos abraçada pela burguesia liberal-democrática em vários destes países.

O ascenso feminista, ainda, promoveu um importante avanço estratégico para a esquerda. Em luta contra a agenda liberal e também com uma articulação internacional feminista relevante, as forças de esquerda envolvidas no processo passaram a uma discussão estratégica: como lutar por um feminismo com conteúdo de classe. A atualização da Teoria da Reprodução Social surgida nos anos 1980 permitiu um avanço contra a fragmentação então em curso. Daí em diante, tanto a afirmação sobre um suposto caráter “pós-moderno” na luta das mulheres, quanto a ideia de um feminismo sem classe perderam força relativa. O tema do trabalho doméstico, dos cuidados, da reprodução social no geral se tornou parte de um esforço de vinculação, por exemplo, do movimento feminista com o movimento sindical em diversas partes do mundo.

Se é verdade que ainda há muito a avançar neste tema da reprodução social, particularmente desde o Sul Global e de uma estratégia anti-racista que desenvolva essa elaboração, também é verdade que há nesse esforço feito pelo movimento das mulheres uma importante lição: a luta ideológica, a elaboração programática, desde que com consequência direta sobre a realidade, contribuem para a reorganização social da classe trabalhadora ao romper a fragmentação e recriar laços políticos entre setores diversos da classe.

Finalmente, no ano de 2019 há também a massificação da luta ambiental nos países do centro do capitalismo. Como já discutimos, essa massificação pressiona um giro da fração liberal-democrática da burguesia à agenda do capitalismo verde. Mas entre os seus desdobramentos há também, de um lado, uma discussão importante sobre métodos de mobilização – se ações exemplares de vanguarda, como faziam e fazem movimentos como o Extinction Rebellion, ou se ações de massas, como buscado pelos setores consequentes da esquerda anticapitalista –, e de outro uma discussão que ainda engatinha, mas tem ganhado fôlego nos últimos anos: como vincular a luta ambiental à luta sindical, em torno de uma agenda de emprego, renda e direitos sociais e ambientais.

 

7.4 O movimento social desde a pandemia

Finalmente, no ciclo aberto pela pandemia, outros setores da classe trabalhadora e forças populares também se colocaram em luta. O protagonismo do movimento negro é incontestável em 2020, mesmo já sob o isolamento social em diversas partes do mundo. Contando com experiências prévias de mobilização e organização nos anos anteriores, o Black Lives Matter conseguiu promover uma resposta mundial à violência policial quando do assassinato de George Floyd. Dos EUA, o movimento encontrou alcance de massas também na Europa e América Latina: estátuas homenageando escravocratas e agentes coloniais foram derrubadas em diversas partes do mundo. A luta anti-racista deste ciclo também encontrou expressão no Brasil, ainda que em outras dimensões e enfrentando as condições defensivas impostas seja pelo genocídio contra o povo negro, seja pela fome e pela crise social. Finalmente, este ciclo também obrigou setores da democracia liberal-burguesa a incorporar e disputar parte de sua agenda.

Processo semelhante também ocorreu com as lutas indígenas, que no Brasil foram decisivas na resistência ao governo Bolsonaro, mas que também foram o principal setor mobilizado no Equador e na Bolívia nestes últimos anos. Nesse sentido, há uma diferença entre o movimento ambiental latino-americano e o do Norte Global: lá, o centro social das mobilizações é fundamentalmente urbano e jovem; aqui, o protagonismo é indígena.

Ainda é relativamente cedo para medir o alcance histórico desses dois processos. Mas ambas marcam a conjuntura nos países em que ocorreram, despertando o ódio genocida da extrema-direita, alguma mediação da direita liberal, e diferentes leituras estratégicas por parte da esquerda. A continuidade dessas lutas, inclusive no terreno ideológico, dirá a extensão do impacto histórico dessas mobilizações para os próximos anos.

Por fim, a solidariedade internacional ao povo palestino, luta intensificada desde há pouco mais de um mês, também sinaliza convergência com essas experiências. As mobilizações em defesa da Palestina encontram dimensões de massas principalmente nos países em que há presença de comunidades árabes emigradas nas décadas mais recentes. Em grande medida, terminam alcançando essas dimensões no Reino Unido, EUA, França, Alemanha, porque – a título de hipótese de leitura – expressam um conteúdo anti-racista: a Palestina acaba se tornando, parte-pelo-todo, uma luta de resistência contra a islamofobia, o ódio e a precarização constantes aos quais as comunidades árabes são submetidas cotidianamente nesses países. Difícil dizer qual será o desfecho. Mas já são as maiores mobilizações do tipo desde as contra a guerra no Iraque em 2003.

O que esses três processos – do movimento negro, do movimento indígena e da solidariedade à Palestina – sinalizam, em termos de balanço, é uma reafirmação de uma chave estratégica acumulada já há algum tempo em nossa corrente. Nas lutas contra as opressões estruturais, a classe trabalhadora encontra suas formas de lutar, se defender e avançar: são lutas do proletariado. Nelas estão os setores da classe trabalhadora com a dinâmica política mais progressiva da última década, além de em vários casos representarem parcelas importantes da força de trabalho nos países em que se massificaram. E, a partir dessas lutas, é possível unificar a classe trabalhadora, desde que se trabalhe com as ferramentas políticas corretas e se tenha isso como objetivo político.

Há aqui uma chave na luta contra a fragmentação social e política da classe trabalhadora. A esquerda socialista, anticapitalista, revolucionária, pode e deve incidir, construir e se apoiar nessas lutas. Na batalha contra a fragmentação e pela reconstituição da classe trabalhadora enquanto sujeito histórico, consolidar essa visão de um proletariado plural e diverso e construir o salto político dessas lutas para que sejam travadas como lutas de toda a classe trabalhadora – seguem sendo tarefas centrais para a intervenção no próximo período.

 

7.5 Algumas considerações sobre o movimento sindical

Por último, também é importante levarmos em conta o que tem ocorrido nas lutas relacionadas mais diretamente ao mundo do trabalho. Enquanto em várias partes do mundo segue prevalecendo uma dinâmica mais conservadora, burocrática, centralmente em torno dos servidores públicos, há também novos desenvolvimentos da luta socioeconômica da classe trabalhadora aos quais devemos estar atentos, uma vez que também incidem sobre a relação de forças e são parte dessa disputa.

Ainda que caracterizemos como mais conservadores e burocráticas essas organizações, os servidores públicos são um importante setor de mobilização trabalhista em nosso país, em especial nos setores vinculados à educação, mas não restrito a eles, como podemos ver na recente greve dos trabalhadores do metrô em São Paulo. A despeito dessas mobilizações, é fato que a taxa de sindicalização no país cai ano após ano e refletirmos sobre as causas desse fenômeno é importante para formularmos sobre a capacidade da classe trabalhadora em responder aos ataques, em especial na retirada de direitos e de desmonte dos serviços públicos.

Já mencionamos o desdobramento do movimento feminista ao movimento sindical em diversos países: na Espanha, Alemanha, Inglaterra, há um fortalecimento do sindicalismo no trabalho reprodutivo. Cuidadoras, trabalhadoras da saúde, de hotelaria – normalmente trabalhos exercidos por comunidades imigrantes –, tem avançado em sua organização sindical nesses países.

Há ainda as lutas de trabalhadores de aplicativos. Fenômeno “novo” talvez exclusivamente pela tecnologia de organização do trabalho, fato é que remontam a tipos de exploração da força de trabalho comparáveis aos do início do capitalismo industrial ou, no caso brasileiro, a uma precarização que remonta aos trabalhadores escravizados chamados “de ganho” no século XIX. Trabalho por peça, jornadas abusivas, nenhum tipo de seguridade social são a marca desse tipo de exploração. São vários os países em que houve greves desses setores nos últimos anos.

A experiência de luta é realizada de modo bastante diverso em cada país, sendo que em alguns deles, como no caso da Inglaterra, há um maior diálogo com o movimento sindical tradicional, e em outros, como o brasileiro, onde a maior parte das mobilizações é dirigida por trabalhadores independentes, que se utilizam, na maioria das vezes, do que foi caracterizado como “movimentos-rede” para organizar as suas ações. Em que pese o aumento de lutas no setor, essas mobilizações ainda são bastante pontuais e defensivas e em poucos locais houve avanços concretos na garantia de direito a esses trabalhadores, sendo impreciso caracterizarmos este setor como uma vanguarda do novo movimento sindical. De todo modo, cresce nessa fração mais precarizada da classe trabalhadora métodos de auto-organização, sendo um desafio, e uma tarefa, para as organizações de esquerda a construção de pontes de diálogo com esses trabalhadores.

É nos EUA onde talvez exista uma dinâmica mais progressiva do ponto de vista sindical. Com uma legislação que dificulta a organização no mundo do trabalho no país, diversos setores da esquerda – particularmente vinculados ao DSA – se giraram para a legalização de sindicatos nos ramos de serviços e logística. Como consequência, há um aumento combinado no número de greves e de sindicatos nos EUA nos últimos anos. A recente vitória histórica da greve do setor automobilístico, apoiada em algum nível tanto por Biden, primeiro presidente estadunidense a visitar um piquete de greve, quanto por Trump, sinaliza um fenômeno interessante, com consequências a serem medidas ainda. E, mesmo assim, a taxa de sindicalização nos EUA tem algum crescimento em setores específicos, mas segue em queda quando observado o conjunto dos setores do mundo do trabalho.

O que o cenário aponta é, potencialmente, alguma nova dinâmica nas lutas sindicais. E, no geral, essa dinâmica é pautada por uma nova geração de trabalhadores e por algum vínculo direto ou indireto com as lutas anti-opressão que se desenvolveram nos últimos anos. Um esforço organizado de caracterização e incidência sobre essa dinâmica – que em poucos aspectos se expressa no Brasil –, sem ilusões de qualquer tipo, será chave para a reconstituição de uma relação de forças favorável aos setores populares.

 

8. Uma hipótese de trabalho: a frente única como tática de longo prazo

Toda essa discussão sobre a situação mundial e sua relação com o Brasil, relação de forças entre as classes, caracterização dos setores dinâmicos nos últimos anos, não deve se restringir à análise: deve ser traduzida em hipóteses para nosso trabalho político. Caso contrário, poderíamos nos reduzir a um grupo de propaganda que tece comentários sobre a luta de classes. Não é para isso que nos organizamos.

Assim, queremos encerrar essa já longa contribuição com alguma tradução da caracterização em política em um sentido mais geral, de longo prazo. Sistematizando os dados centrais da situação em que vivemos: há uma transição histórica da globalização neoliberal a uma reorganização do capitalismo, cujo desfecho e características seguem em disputa; nessa transição, os aspectos de barbárie se avolumam, a começar pela emergência climática; quem tem a iniciativa, hoje, é a burguesia de conjunto a nível mundial, e particularmente sua fração mais reacionária de extrema-direita; e a esquerda, fragmentada e com pouca implantação nos setores populares, enfrenta dificuldades para intervir nessa transição, ainda que haja resistências importantes nas quais podemos nos apoiar.

Nesse sentido, na atual quadra defensiva da história, o principal desafio colocado para a esquerda hoje é – partindo da sua própria fragmentação e da fragmentação de sua base social estratégica – ter capacidade de incidir e decidir a relação de forças que se cristalizará após essa transição em favor da classe trabalhadora. As experiências do último ciclo nos ajudam a definir hipóteses políticas que caminhem nessa direção. Da mesma maneira contribui o acumulado histórico da IV Internacional, ainda que parte de seus herdeiros insistam em repetir seus erros em vez de aprender com eles.

A fragmentação não será superada senão por meio de experiências práticas. É apenas na experiência comum, em torno de uma agenda unitária e ampliando a convivência entre os diversos setores da esquerda na intervenção sobre a realidade, que poderemos vencer a fragmentação subjetiva e objetiva da classe trabalhadora. E é também apenas nessas condições que poderemos disputar a hegemonia sobre as bases sociais da esquerda – hegemonia que, em condições normais e particularmente nas situações defensivas, pertence às forças reformistas. Desse ponto de vista, a tática da Frente Única, como também já discutimos, se coloca como a principal hipótese política quando observamos a situação histórica de um ponto de vista mais geral. Na definição de Trotsky, “para aqueles que não compreendem isso, o partido é somente uma associação de propaganda, e não uma organização de ação de massas”.

Há ainda, nas palavras de Bensaïd, uma dimensão estratégica na tática de frente única: “O capitalismo não cria uma classe trabalhadora unificada espontaneamente. Ao contrário, gera divisões e competição, particularmente em tempos de crise. Unificar a classe trabalhadora social e politicamente é, portanto, um objetivo estratégico permanente”. Na atual situação defensiva, marcada principalmente pela fragmentação, a frente única é portanto uma forma de combinar as três lutas decisivas para nosso tempo – pela reorganização social das forças populares, isto é, pela ampla reconstituição da classe trabalhadora enquanto sujeito; pela reorganização política da esquerda, ou seja, pela reconstituição de organizações socialistas com peso de massas; e pela incidência da classe trabalhadora sobre a relação de forças a nível mundial.

De fato, quando comparada a experiência do PSOL nesta década às experiências de outros partidos amplos do mesmo tipo, nosso partido foi a ferramenta que mais se fortaleceu politicamente – exatamente porque identificou o giro defensivo na relação de forças no Brasil e mundialmente; porque se dedicou a uma política de unidade das forças populares contra o avanço da direita e da extrema-direita; porque, nesse processo, preservando sua independência e se colocando na linha de frente desses enfrentamentos, se moralizou perante a base social do reformismo no Brasil. Mesmo sem conseguir construir uma frente única de fato orgânica, a unidade da esquerda em suas frentes de mobilização permitiu que o PSOL ampliasse sua influência social e política sobre a classe trabalhadora. Essas vitórias colocam o partido diante de novas contradições, que devem ser tratadas como um novo momento dessa luta mais ampla. Mas abandonar essa orientação, que nos permitiu avançar significativamente, inclusive em comparação com outras experiências de partidos amplos mundo afora, seria um grave retrocesso político para a esquerda de conjunto. Seria, novamente nas palavras de Trotsky, como “um nadador que tenha aprovado a tese sobre o melhor método de natação mas que não se arrisca a mergulhar na água.”

Evidentemente, a tática da frente única coloca outras questões práticas a depender das circunstâncias em que se desenvolve. É uma tática que só pode ser aplicada “no fio da navalha”, entre a afirmação da unidade e a disputa pela hegemonia. A realidade exige mediações. Mas isso não muda o fato de que essa política deve servir como orientação geral para a intervenção da esquerda socialista que tenha como objetivo não só travar as batalhas cotidianas de defesa da classe trabalhadora de conjunto, mas também contribuir para as duas reorganizações – a social e a política – necessárias para a reconstituição de um horizonte socialista no médio e longo prazo de um ponto de vista histórico.

Para responder à disputa de hegemonia sobre as bases sociais da esquerda de conjunto, ainda, a frente única exige a construção de um perfil programático para as forças que se localizam nessa tática a partir de uma estratégia revolucionária. Este perfil não se orienta, evidentemente, pela já discutida "denúncia das direções traidoras". Mas é necessária uma orientação programática bem definida para que se tenham nítidas as diferentes perspectivas entre os setores dentro da frente.

Desse ponto de vista, considerando que buscamos, por meio da frente única, a construção de um campo político à esquerda dos reformismos hegemônicos, e que há uma crise e transição do arranjo da globalização neoliberal a uma reorganização do capitalismo cujos resultados ainda são incertos, nosso entendimento é que esse perfil programático deve ser pautado centralmente pelos seguintes eixos: em primeira instância e maior evidência devido à centralidade desta tarefa, o antifascismo para o combate à extrema-direita; no terreno político-econômico e social, o enfrentamento à agenda neoliberal, que unifica as diferentes frações burguesas; e, orientando estes eixos, a afirmação permanente de uma estratégia anticapitalista e ecossocialista.

A combinação entre a frente única como tática de longo prazo, de um lado, e a afirmação de um perfil programático anti-neoliberal, anticapitalista e ecossocialista, de outro, é a orientação geral que pensamos que responde aos desafios estabelecidos pela difícil situação mundial que atravessamos. A etapa marcada pela defensiva e pela fragmentação exige uma etapa em que a tática de frente única esteja no centro da política da esquerda. A crise do neoliberalismo, por sua vez, exige a construção de um horizonte alternativo ao modelo dos últimos 30 anos.

 

Outubro de 2023