A atualidade da situação política e social em Cuba é o tema desta entrevista com o sociólogo e historiador Frank García Hernández, editor da revista digital Comunistas e um dos cerca de 800 detidos nas manifestações do ano passado em Cuba.
Luis Branco entrevista Frank Garcia Hernández, Esquerda.net, 2 de junho de 2022
A recente alteração ao Código Penal cubano, aprovada pelo Parlamento em maio, foi o ponto de partida para esta entrevista com Frank García Hernández. Sociólogo e historiador em Havana, Frank edita a revista digital Comunistas e participou nas manifestações de 11 de julho, onde foi detido a par de centenas de pessoas em vários pontos do país. Algumas delas têm sido condenadas a penas pesadas de prisão, não por atos de violência especialmente graves, mas por terem apelado à participação nos protestos através das redes sociais. Defensor de um processo de democratização no país que dê à classe trabalhadora o controlo direto sobre as decisões políticas, o ativista critica as decisões erradas na política económica do Governo, cujo impacto despoletou os protestos do ano passado e se vieram somar aos efeitos do bloqueio económico a que o país está sujeito por parte dos Estados Unidos.
Quais as principais mudanças que traz esta revisão do Código Penal aprovada há poucas semanas? E como foi a participação pública nesse debate?
Há duas questões que têm suscitado muita controvérsia relativamente ao Código Penal: a pena de morte e o artigo tipificado como "desacato" no artigo 185.1, que pune qualquer ofensa contra o presidente, vice-presidente, presidente do parlamento, ministros, presidente do Supremo Tribunal Popular, o Procurador-Geral da República, a Controladoria Nacional, presidente do Conselho Nacional Eleitoral, deputados, funcionários públicos ou agentes de autoridade. Contudo, embora a oposição à pena de morte seja uma questão de ética humana, a aplicação da pena de morte em Cuba é extremamente rara e a última vez que foi aplicada foi em 2003 a três homens que sequestraram um barco. Mas o que de facto é muito perigoso para as liberdades dos cidadãos não é tanto a pena de morte, mas a penalização de possíveis ofensas contra o presidente, ministros, altos funcionários e agentes da lei.
O que se pode entender por "ofensas" ao presidente, aos ministros, aos funcionários públicos ou aos agentes da polícia? Como legislamos que tal artigo de jornal, ensaio, tweet, ou publicação em qualquer rede social é ou não ofensivo? Isso depende da subjetividade do procurador, e esta perigosa discricionariedade - no caso de a "ofensa" ser contra um membro do poder executivo - pode custar a uma pessoa de um a três anos de prisão.
Ao contrário do Código de Família - para o qual o Governo implementou um amplo debate em todo o país, nos bairros, locais de trabalho e instituições estudantis -, a única participação dos cidadãos no Código Penal foram os constantes protestos nas redes sociais, principalmente por parte dos jovens. Algo muito importante está a acontecer: se o Governo perder o referendo sobre o Código de Família, estaremos a assistir à sua primeira derrota nas urnas, mas o Código Penal serve - entre outras coisas - para reprimir os mesmos protestos que poderiam acontecer face a qualquer um dos dois resultados. A implementação do novo Código de Família é uma vitória para os direitos civis e o Código Penal é um cerceamento dos direitos civis.
Voltando ao facto de que qualquer ofensa a um funcionário público é criminalizada, é necessário recordar algo: na maioria dos países abundam as caricaturas do presidente. No entanto, alguns desenhos que tentaram humanizar o presidente cubano publicados numa revista da União dos Jovens Comunistas foram objeto de controvérsia em Cuba. Curiosamente, meses mais tarde, o diretor deste órgão de comunicação social foi demitido e nunca mais ocupou um cargo administrativo.
E em que medida essas mudanças no Código Penal podem aumentar as restrições à atividade política e aos meios de comunicação independentes?
Em vez de nos questionarmos sobre qual será o destino dos meios de comunicação não oficiais após a implementação do novo Código Penal, é urgente preocuparmo-nos com o destino daqueles que neles trabalham. Hoje em dia, ser jornalista a trabalhar num meio de comunicação social privado é receber ataques políticos constantes da propaganda oficial e, nos piores casos, ser preso pelo facto de exercer o seu trabalho. Se ao mesmo tempo este jornalista - ou simplesmente um colaborador de um dado órgão de comunicação privado - for um funcionário do Estado, ele ou ela está exposto a sanções administrativas que podem incluir despedimento. Ao mesmo tempo, é quase impossível ser membro do Partido Comunista e escrever para alguns destes meios de comunicação privados, mesmo que sejam artigos de uma perspetiva marxista e para um meio de comunicação de esquerda, como o Tremenda Nota.
Há um ponto muito importante a ter em conta: os meios de comunicação não-oficiais não têm reconhecimento legal. Não existem perante a lei e, por conseguinte, os seus jornalistas, como jornalistas, também não existem. Assim, em Cuba, os trabalhadores dos meios de comunicação privados estão duplamente desprotegidos: do Estado - que também os desacredita e até os persegue - e daqueles que os contratam, uma vez que não têm quaisquer direitos laborais. O contrato destes jornalistas é oral, não têm salário mínimo, não têm direito a férias, não têm licença por doença, não têm licença de gravidez. Muito menos têm uma instituição a quem se queixar se forem injustamente despedidos. Dependem da boa vontade do patrão.
Com exceção do Tremenda Nota(link is external), La Joven Cuba(link is external) e La Trinchera(link is external) - a revista digital Comunistas(link is external) não funciona como um meio de comunicação social privado, seria mais exato chamar-lhe meio de comunicação não oficial - os restantes meios de comunicação social privados têm uma política editorial de direita; em bastantes casos recebem mesmo financiamento de instituições federais dos EUA. No entanto, isto não é motivo para perseguir os seus jornalistas. Como na maioria dos estados burgueses, a tão manipulada liberdade de expressão pode ser usada inteligentemente como uma válvula de escape. No caso cubano, verificou-se o contrário: a repressão e a censura fizeram com que alguns jornalistas deixassem de ser críticos para se posicionarem à direita. Uma lei dos media que reconheça os meios de comunicação não oficiais serviria para normalizar as relações entre esta imprensa crítica, que não pode desaparecer, e o Estado cubano, que precisa de equilibrar o seu poder.
Depois da repressão e agora dos julgamentos dos participantes nos protestos de julho, qual é o sentimento geral entre as pessoas que saíram à rua nesse momento?
As recentes condenações contra um grupo de manifestantes de 11 de Julho, juntamente com o novo Código Penal, constituem claramente um forte dissuasor para possíveis protestos futuros. Se surgirem mais protestos, os manifestantes sabem agora que enfrentarão a possibilidade de sentenças pesadas e desproporcionadas. Segundo a Procuradoria-Geral da República, pelo menos 790 pessoas foram presas nos protestos de Julho. Embora alguns de nós tenham sido absolvidos e muitos tenham acabado por pagar apenas uma multa - para além de terem de se apresentar mensalmente à polícia - estamos todos cadastrados.
Muitos dos que foram presos a 11 de Julho permaneceram na prisão até três semanas por simplesmente terem participado na manifestação. O pior foram as sentenças desproporcionadas proferidas a um grupo de manifestantes de 11 de julho, que até Silvio Rodríguez condenou. Alguns jovens estão agora a cumprir seis anos de prisão pelo simples facto de apelarem a manifestações nas redes sociais. Tudo isto tem significado que quando se pergunta a vários dos manifestantes de 11 de julho se são possíveis novos protestos - a crise económica é igualmente grave e a popularidade do Governo não recuperou - eles geralmente respondem que não vão para a rua. Se acrescentarmos a isto o facto de entre outubro e maio cerca de 115.000 cubanos terem chegado ilegalmente aos Estados Unidos através da fronteira mexicana - de acordo com o Departamento de Alfândega e Fronteiras dos EUA - estamos perante uma situação em que o governo se livrou de aproximadamente 100.000 pessoas descontentes.
Que mudanças são necessárias na política cubana para responder aos anseios da população?
Cuba precisa urgentemente não só de uma lei sobre manifestações, mas também de um processo urgente de democratização. Essa Cuba futura só será possível sob um verdadeiro socialismo, porque se for imposto um Estado burguês, viveremos sob uma ditadura anticomunista e neoliberal. Não faz sentido substituir a atual burocracia, que degenerou politicamente, por um estado burguês. Os acontecimentos que tiveram lugar na Rússia após a queda da União Soviética, o anticomunismo institucionalizado na Polónia e Hungria mostram que a burguesia não permitirá outra tentativa de construir o socialismo. Além disso, estes não são casos isolados: isto é a luta de classes. O Estado, como Lenine disse e com razão, é uma classe no poder que reprime outra classe. A democracia em abstrato não existe: ou é a burguesia no poder, ou a classe trabalhadora no poder, ou uma burocracia que acaba por implementar um sistema político onde assegura a sua existência sem que a classe trabalhadora seja capaz de regular as decisões do governo. Por outro lado, o multipartidarismo também não significa democracia: teoricamente o partido no poder na Coreia do Norte é a Frente Democrática para a Reunificação da Pátria, composta pelo Partido dos Trabalhadores da Coreia, o Partido Social Democrata e o Partido Chondoista Chong-u, mas sabemos que é o PTC que detém o poder absoluto, concentrado em Kim Jong Un. Por outro lado, numa democracia burguesa, a burguesia nunca permitirá o triunfo do socialismo por meios eleitorais. O caso de Salvador Allende é o mais representativo, mas cada golpe de Estado contra um governo minimamente progressista mostra que o Estado burguês não deixa margem para o triunfo do socialismo através de eleições - um caminho necessário, porque é preciso tirar tudo o que for possível do capitalismo, mas as eleições não são o caminho para alcançar a revolução socialista.
A democratização de Cuba não envolve necessariamente o estabelecimento de um sistema multipartidário, mas envolve a liberdade de imprensa, concedendo maiores direitos a toda a sociedade civil - não apenas aos autorizados pelo governo - e, acima de tudo, dando à classe trabalhadora a capacidade de tomar decisões políticas diretas e o controlo absoluto sobre os seus meios de produção: não burocratas a controlar a economia, nem supostamente a decidir os interesses políticos da classe trabalhadora. Por outras palavras, a plena democratização de Cuba - e de todos os países - só será alcançada na consagração do socialismo e plenamente, quando se alcançar o comunismo, ou seja, uma sociedade sem Estado, sem classes sociais. Esta última não é anárquica: é o objetivo principal de Marx, Lenine e Trotsky. O facto de Estaline e todos os seus herdeiros terem apagado esta ideia do seu discurso é mais uma prova de quão longe o estalinismo e as suas raízes estão da construção do socialismo e do comunismo.
A distorção da democracia socialista em Cuba radica no facto de, desde o início da Revolução, a classe operária cubana não ter exercido um controlo direto sobre as decisões políticas. Quase toda a classe operária cubana assumiu o programa do governo revolucionário liderado por Fidel como seu, porque as maiorias populares eram os principais protagonistas desse novo processo político e sabiam que estavam a emancipar-se nele. Contudo, pouco a pouco, a liderança da Revolução foi-se burocratizando e, como a classe operária cubana não tinha controlo político, era impossível para ela parar este processo degenerativo. Já nos anos 1980, o próprio Fidel Castro lançou uma política contra a burocratização da Revolução, mas estas foram decisões que vieram do próprio governo e não surgiram da classe trabalhadora. Embora tenham sido criados novos instrumentos democráticos nos anos 1990, a classe trabalhadora continuou a não ter uma palavra a dizer nas decisões políticas e económicas. Depois, quando a liderança do país acabou por se afastar cada vez mais das maiorias populares e quando começaram a ser tomadas medidas económicas contrárias aos interesses da classe trabalhadora, como o plano económico "Tarefa Ordenamento" em 2021, onde o mesmo governo estabeleceu um aumento elevado dos preços - que a crise económica desencadeou e o aumento salarial dessa altura esfumou-se face à inflação - mais a redução das políticas públicas e sociais; então, perante isto, a classe trabalhadora cubana não dispunha dos instrumentos legais necessários para decidir e se opor a estas medidas.
Assim, podemos compreender os protestos de 11 de julho como uma resposta desesperada de um setor da classe trabalhadora cubana que sofria - e sofre - uma terrível crise económica marcada por uma grave escassez de alimentos e medicamentos. O pior é que as razões desta crise são em grande parte impossíveis de controlar pelo Governo: o turismo é a principal fonte de rendimento de Cuba e a indústria do lazer entrou em colapso a nível internacional. A isto há que acrescentar algo que marcou e agravou a crise económica: o bloqueio dos EUA contra Cuba.
Mas são apenas os fatores externos que explicam a crise?
Cuba precisa de pelo menos 4 milhões de turistas por ano para o Produto Interno Bruto crescer 1% e em 2021 Cuba não recebeu sequer 250.000 turistas. A quantidade de dinheiro que Cuba perdeu com a crise do turismo é a mesma que foi gasta na importação de alimentos. Esta situação é ainda mais grave quando sabemos que o Governo cubano continua a importar mais de 60% dos alimentos. Se acrescentarmos a isto o bloqueio férreo dos Estados Unidos, vemos que as principais causas da atual crise económica são um fator externo.
Contudo, a classe trabalhadora cubana também sofre mais com a crise económica devido às decisões erradas do Governo, incluindo, principalmente, o impacto negativo da já referida "Tarefa Ordenamento" e outro conjunto de medidas impopulares. Como se isto não fosse suficiente, em 2021 o Governo destinou mais de 50% do orçamento à indústria do turismo. Como é que isto pode ser compreendido se o turismo praticamente não existia em Cuba durante 2020 e 2021? O dinheiro foi reservado para a construção de novos hotéis e os que já foram inaugurados estão praticamente vazios.
Quando fui detido a 11 de Julho, estava a explicar a um colega de cela - um jovem trabalhador que também tinha sido detido durante as manifestações - que a escassez aguda se devia a razões externas, sobre as quais o Governo não podia decidir. Contudo, aquele trabalhador respondeu-me algo que é o sentimento da maioria: "o pouco que há pode ser melhor partilhado". E esta é uma sensação latente, uma carga explosiva que pelo menos no discurso oficial está a ser ignorada pelo Governo. Não foram os bolcheviques que derrubaram o czar em Março de 1917, mas sim as massas famintas. Não foi a contra-revolução que protestou a 11 de Julho: foram milhares de trabalhadores que viram a oportunidade de expressar o seu profundo descontentamento nas ruas.
É verdade que nos protestos de 11 de Julho houve situações de violência desproporcionada por parte dos manifestantes, que em alguns casos, sem qualquer justificação, atacaram não só a polícia mas também os simpatizantes do governo. No entanto, estes atos de violência são os únicos a que a propaganda oficial dá visibilidade. Por seu lado, a imprensa da oposição concentra-se em tornar visível a repressão policial. Desta forma, a longa marcha pacífica de milhares de pessoas que atravessaram mais de cinco quilómetros em três dos municípios mais importantes e centrais de Havana foi invisibilizada. Se houvesse uma lei sobre manifestações a 11 de julho, é muito provável que os acontecimentos violentos que mancharam esses protestos inevitáveis não tivessem acontecido.
O Comité contra a Tortura da ONU acaba de publicar o seu relatório(link is external) sobre Cuba, no qual pede ao Estado cubano que investigue e sancione os responsáveis pelo uso excessivo da força e maus tratos durante as manifestações de 11 de julho. É possível que isso aconteça?
Contudo, um relatório feito na ONU, tão distante da realidade cubana, é duvidoso. Quais foram as fontes utilizadas pelo Comité da ONU sobre a Tortura? Uma comissão da ONU visitou Cuba ou esta comissão apenas fez o seu relatório com fontes não oficiais ou com as sediadas fora de Cuba; quase sempre de organizações de direita que, em vez de se preocuparem com os manifestantes, apenas pretendem fazer campanha para que num futuro improvável tomem conta do poder político em Cuba? Os representantes da ONU reuniram-se com os manifestantes, os familiares dos detidos ou os próprios prisioneiros? Utilizaram também fontes oficiais para comparar as informações - frequentemente distorcidas por ambos os lados - e assim tentar chegar à verdade? Isto contrasta com a visita a Cuba de eurodeputados de esquerda que apenas se reuniram com as autoridades cubanas e com setores pró-governamentais da sociedade civil: regressaram aos seus países maravilhados com Cuba, apontando o bloqueio imperialista - que é muito grave e existe - como a causa de todos os problemas, sem caminhar pelos bairros populares onde as ruas estão cheias de buracos e muitas vezes com uma iluminação de rua muito deficiente, um sistema de esgotos deficiente, poucas políticas culturais, casas em situações estruturais perigosas prestes a ruir e uma grave escassez de alimentos; porque, como sempre acontece, são as maiorias populares, os setores da classe trabalhadora na periferia que mais sofrem com a crise económica.
Os deputados de esquerda que visitaram Cuba não viram nada disto, e se sabem, justificam-no com o bloqueio, quando de facto é possível mudar, ou pelo menos aliviar, parte da situação de negligência em muitos bairros da classe trabalhadora. Depois do 11J, os bairros que protestaram foram ajudados, resolvendo muitos dos problemas que já mencionei: "Aqui tudo continua na mesma porque neste bairro ninguém saiu à rua a 11 de julho", disse-me recentemente um vizinho, que vê como a nossa comunidade continua com todos estes problemas, enquanto eles estão a ser resolvidos onde as manifestações eclodiram, alguns até recebendo visitas do presidente cubano. Mas acima de tudo, os deputados europeus deixaram Cuba sem falar aos manifestantes de 11 de julho, nem aos que foram detidos, nem aos que participaram e puderam fugir - que são milhares - e nem falaram às famílias dos que agora se encontram presos, muito menos aos presos.
O papel da esquerda internacional no esclarecimento do que aconteceu em julho é muito importante. A esquerda verdadeiramente consistente deve saber em primeira mão o que aconteceu junto dos protagonistas do 11J, que foram milhares de manifestantes. Os eurodeputados de esquerda - ainda mais aqueles que não vieram a Cuba - ainda têm tempo para pedir ao Governo cubano uma visita a ilha para tornar os acontecimentos transparentes e, por exemplo, para ajudar a publicar uma lista oficial com todos os nomes dos detidos, as acusações pelas quais foram presos, tanto os que estão livres como os que estão presos; o motivo da detenção caso a caso e as penas dos detidos; as condições destes detidos; e para esclarecer se os direitos dos cidadãos foram violados durante as manifestações de 11 de julho e quando os 790 manifestantes detidos foram detidos; se muitos de nós foram despedidos simplesmente porque fomos detidos ou transformados em párias políticos; e, sobretudo, para ver o que pode ser feito para libertar aqueles que estão a cumprir penas longas, que não faziam parte de qualquer organização contra-revolucionária, e que não fizeram um atentado à vida de ninguém a não ser em legítima defesa.
Mas esclarecer o que aconteceu nos protestos de julho é um papel que a ser feito pelos eurodeputados - ou intelectuais europeus, líderes sociais e políticos - deve sê-lo pela esquerda, porque foram eles que apoiaram Cuba na luta contra o bloqueio e são, portanto, os que estão realmente interessados em ajudar a classe trabalhadora cubana. Preocupar-se com os acontecimentos do 11J não é o papel da ala direita, que só está interessada em manipular a seu favor para benefício político e que, perante protestos como os que tiveram lugar em julho, os teria reprimido com mais força e violado todo o tipo de direitos humanos.
A crise económica decorrente da pandemia afetou bastante o povo cubano. Agora vem a subida da inflação e dos preços dos produtos alimentares e combustíveis. Que respostas económicas apresenta o Governo?
Para além disso, o Governo está a impulsionar a economia do setor privado. Muitas cafetarias estatais estão vazias, sem sequer vender um único produto, enquanto bares, pequenas lojas e cafés privados têm uma oferta muito variada. Esta política neoliberal familiar de retratar o setor estatal como ineficiente e o setor privado como eficiente é implementada diariamente em Cuba, pelo menos no setor da restauração.
As empresas privadas açambarcam alimentos e produtos de higiene, que estão a tornar-se cada vez mais escassos, e isto aumenta a escassez de alimentos sofrida pela classe trabalhadora cubana. Mas face a isto, o Governo continua a promover o setor económico privado. Politicamente, é espantoso que a maioria não identifique o setor privado como uma das causas da escassez e aponte o dedo apenas ao Governo ou ao mercado negro, mas não para o açambarcamento da burguesia.
O impacto da escassez é também influenciado pelas chamadas lojas MLC [Moeda Livremente Convertível], onde só se pode comprar com cartões garantidos por dólares. Apenas uma minoria da população tem estes cartões e pode por isso aceder a estas lojas, que estão muito mais abastecidas do que as lojas em moeda nacional.
Além disso, a guerra russo-ucraniana está a atingir duramente Cuba. A Rússia é um dos principais credores do Governo cubano e as transacções SWIFT estão congeladas para a Rússia. Com a economia russa fora de circulação, sob sanções, e com uma guerra evidentemente mais longa do que o Kremlin previa, Putin não está interessado em salvar Cuba. A Rússia enviou recentemente uma doação de alimentos a Cuba, mas isto é uma coisa trivial que é consumida no máximo em poucos meses. A invasão da Ucrânia fez com que Cuba perdesse a maior parte dos seus fortes laços económicos com a Rússia, o que equivale a mais um golpe na já crítica economia de Cuba. Como resultado de tudo isto, em sete meses 115.000 cubanos chegaram aos Estados Unidos através da fronteira mexicana, ou seja, pouco mais de 1% da população de Cuba. Se esta regularidade continuar, no final de 2022, 2% da população cubana terá emigrado.
O Governo cubano aposta no modelo sino-vietnamita onde o capitalismo é administrado pelo Partido Comunista, no entanto, tanto a China como o Vietname conseguiram implementar com "êxito" estas reformas económicas com base em três fatores que não existem em Cuba. Primeiro: uma classe trabalhadora disposta a deixar-se explorar nas fábricas por um salário magro. Embora a situação em Cuba seja crítica e os salários baixos, a classe trabalhadora não está - e não estará - sujeita aos níveis de exploração que os trabalhadores chineses e vietnamitas experimentaram nos primeiros anos da reforma económica - e aos quais milhões ainda estão expostos.
O segundo fator decorre precisamente do primeiro: Cuba centrou a sua economia no setor dos serviços e não na produção. A burguesia que apoia o Governo não tem a capacidade de produção necessária para dinamizar o país e, ao mesmo tempo, continua também a concentrar-se no setor dos serviços; por seu lado, o Estado insiste na construção de hotéis com a ideia de que, num momento mágico, Cuba estará cheia de turistas e, portanto, de divisas.
Em terceiro lugar, devido ao forte bloqueio imperialista, Cuba carece do tão necessário investimento estrangeiro, e o mesmo bloqueio significou que Cuba não pode pagar no estrangeiro com dólares. Por outro lado, a China e o Vietname foram libertados de todos os obstáculos económicos e as grandes transnacionais desembarcaram nestes países. Mas mesmo que todos estes obstáculos à implementação do capitalismo chinês desaparecessem, quando é que o capitalismo foi alguma vez a salvação da classe trabalhadora?
A explosão junto ao Hotel Saratoga, no centro de Havana, deixou o país de luto. Num discurso recente, o presidente Diaz-Canel elogiou a resposta altruista do povo, mas também criticou "os que contaminaram as redes com mensagens de incerteza e desprezo pelas autoridades". Houve tentativas de usar a tragédia para tirar proveitos políticos por parte de algum setor?
A explosão do hotel Saratoga fez 46 vítimas, incluindo quatro menores. A maioria dos que morreram eram jovens, incluindo o único estrangeiro que morreu: a turista galega Cristina López-Cerón Ugarte, de apenas 29 anos de idade, que por coincidência tinha viajado para Cuba com o seu namorado para celebrar o seu 30º aniversário. Apenas um turista morreu porque o hotel estava vazio, ia reabrir a 10 de Maio, caso contrário a tragédia teria sido muito maior. Muitos de nós achámos uma grande coincidência que a explosão tenha acontecido enquanto se realizava a Feira Internacional de Turismo, além de que o Hotel Saratoga é um dos mais famosos hotéis de localização central, situado a poucos metros do edifício do parlamento. Contudo, ao contrário da série de ataques a hotéis cubanos levados a cabo pela CIA nos anos 90, desta vez não foi uma bomba e, até agora, não há provas de sabotagem. Foi a explosão acidental causada por uma fuga de gás que destruiu a vida de dezenas de trabalhadores.
A contra-revolução cubana em Miami tentou usar a explosão para atacar o Governo, uma manobra política desumana que foi completa e espontaneamente rejeitada pela sociedade como um todo - mesmo por opositores de direita. Por outro lado, as ações das forças de salvamento foram excelentes, e os meios de comunicação estatais - apesar de no início não terem tido cobertura imediata, deixando espaço para a especulação nas redes sociais - juntamente com o Ministério da Saúde Pública, criaram um sistema de informação contínua, precisa e detalhada que teve um impacto muito favorável na sociedade.
Cuba precisa sempre de uma imprensa tão eficaz como a que esteve em frente ao Hotel Saratoga. Infelizmente, porém, isto não é a norma. A imprensa oficial cubana cala-se sobre os principais e contínuos dilemas das maiorias populares, deixando este espaço para os meios de comunicação privados, que, embora muitos deles façam bom jornalismo, também abundam informações falsas ou distorcidas. Mas são sobretudo os meios de comunicação privados que falam ao povo sobre os seus problemas diários, enquanto a imprensa oficial fica com slogans, visitas de líderes a fábricas e empresas, nenhuma crítica à administração governamental e aos conflitos políticos internacionais.
Desta vez - como acontece sempre nas catástrofes - a imprensa oficial foi ter com o povo. Não só passou noites e madrugadas a transmitir o trabalho das equipas de salvamento: continuou a seguir o destino dos que vivem num edifício habitacional perto do Saratoga. Estas pessoas foram transferidas para um hotel que já não é utilizado para o turismo. No entanto, isto levanta a questão: o que acontece às vítimas de outros deslizamentos de terras que foram silenciadas pelos meios de comunicação oficiais? Muitos dos que perderam as suas casas devido a deslizamentos de terras - eram edifícios em péssimas condições e não tinham onde viver - estão agora em abrigos temporários que estão longe de ser hotéis. É também urgente que as responsabilidades neste acidente sejam apuradas e que as condições de trabalho sejam melhoradas, porque uma negligência como esta não é da responsabilidade de uma só pessoa.
Mas acima de tudo, a tragédia do Saratoga trouxe à superfície a profunda solidariedade cubana que não nasceu do nada, já existia antes de 1959, mas foi construída, reparada e aumentada pela Revolução. Socialismo sem solidariedade não é socialismo e embora o projeto de construção do socialismo em Cuba esteja a atravessar uma preocupante crise política, a solidariedade da classe trabalhadora será o que pode salvar e reconstruir a Revolução.