Apesar da queda do PIB em 2021 poder vir a ultrapassar a do ano passado, alguns acreditam que o pior da crise pandémica pode ter terminado e que, com uma hipotética recuperação do turismo, o Governo pode ter uma mão vencedora neste jogo de reformas.
Amaury Valdivia, Esquerda.net, 17 de outubro de 2021
Há vinte e quatro anos, quando Yotuel Romero embarcou no avião que o levaria a Paris para se tornar um popular cantor de música urbana, o salário mínimo em Cuba era pouco mais de 5 dólares por mês. Desde então, esse limiar subiu para os quase 30 dólares pelos quais o rendimento mínimo de hoje pode ser trocado informalmente.
Para Yotuel Romero, o tempo parece ter parado no dia em que deixou a ilha. No seu novo papel como concorrente no programa de televisão "Masterchef Celebrity España”, disse há algumas semanas que os 5 euros continuam a ser o salário mínimo para os seus compatriotas, que têm de "esticá-lo como pastilha elástica" para sobreviver.
Quase ao mesmo tempo da sua declaração, Havana declarou um regresso à "normalidade" após o pico pandémico do Verão. A partir da noite da reabertura, as redes sociais ficaram cheias de fotos dos novos preços praticados em bares e restaurantes: em média, as cervejas nacionais custam entre 1 e 2 euros, as cervejas importadas até 3 euros, e um menu individual, sem grande luxo, cerca de 15 euros. Apesar disso, a norma era uma casa cheia e à medida que os dias foram passando cresceu a exigência de que a proibição fosse levantada também para as discotecas, e de que as viagens interprovinciais fossem permitidas, especialmente para zonas balneares como Varadero.
Na segunda-feira [4 de Outubro], a "flexibilização" foi alargada às lojas em Moeda Livremente Convertível [MLC - inclui o peso convertível cubano, o dólar, o euro, a libra esterlina, o franco suíço, a coroa dinamarquesa, sueca e norueguesa, o peso mexicano e o iene], o que prolongou o seu horário de funcionamento durante a noite e eliminou em grande parte as restrições sanitárias sobre o número de clientes que podiam servir. "Teremos de esperar e ver quanto tempo terão a mercadoria à venda com tanta gente a querer comprar", brincou alguém na secção de comentários da notícia na página da internet da maior cadeia de lojas públicas.
Mesmo em Havana, que goza de um estatuto privilegiado, as lojas MLC não conseguem acompanhar a procura. As horas de espera em frente destes estabelecimentos ou a tentativa de comprar nas suas ineficientes plataformas virtuais há muito que fazem parte da vida quotidiana, tal como os seus preços, que são mais elevados do que em qualquer país vizinho.
"Apesar disto, os cubanos 'inventam' e procuram dinheiro - vá-se lá saber como", brinca Ariel, um pedreiro que confirma o seu lugar na lista de espera para o frigorífico numa loja MLC. Três ou quatro vezes por mês, quando os produtos chegam, a lista de espera é ativada e dezenas de subscritores são alertados para os vir comprar, a preços que raramente descem abaixo de MLC 500 (cada MLC é equivalente a um dólar). Se não fosse a pandemia, disse Ariel, há muito teria comprado o frigorífico e os aparelhos de ar condicionado para o quarto dele e das suas filhas, entre outros artigos. "A covid veio e complicou tudo. Não trabalho desde Junho por causa da falta de cimento. Tive mesmo de deixar a meio uma piscina que estava a construir para uma cubano-americana repatriada. Esperemos, como dizem, que as coisas melhorem com a reabertura", disse ele.
O que mudou com a crise, o que não mudou?
Em Junho de 2018, Yotuel e os seus colegas do grupo de rap e hip-hop Orishas [popular em Espanha, Portugal e América do Sul: o nome refere-se a uma divindade na religião - Santeria - de descendentes africanos escravizados] reuniram-se para uma digressão generosamente paga pelo Ministério da Cultura cubano. O rapper teve uma relação harmoniosa com as autoridades da ilha e beneficiou de ser o rosto de Cuba Ron SA, a companhia nacional de bebidas alcoólicas. Uma das suas composições musicais foi o tema de campanhas organizadas pelo Ministério do Turismo. Na altura, a economia local ainda não tinha sofrido as sanções impostas por Donald Trump: nesse ano, o turismo atingiu um recorde de 4,7 milhões de turistas estrangeiros, missões médicas à Bolívia e ao Brasil estavam a trazer receitas, e a Western Union [uma empresa especializada em transferências internacionais de dinheiro, incluindo para particulares] estava a registar um crescimento constante nas remessas familiares.
Três anos mais tarde, Yotuel é o porta-estandarte da oposição ao Governo de Havana. No final de Julho de 2021, viajou de Madrid para Washington para se encontrar com Joe Biden e pedir-lhe que não aliviasse a pressão sobre a ilha, e em meados de Setembro celebrou a nomeação da sua canção "Patria y vida" como melhor canção do ano nos Prémios Grammy Latinos como reconhecimento "daqueles que lutam contra a ditadura"! Os promissores dados económicos do passado quase não são lembrados: a queda de 11% do Produto Interno Bruto que encerrou 2020 será provavelmente ultrapassada pelo declínio em 2021, enquanto que a reforma monetária só tem ajudado até agora a acelerar a inflação.
No entanto, há nuances na crise. Para os profissionais que vendem os seus serviços a clientes estrangeiros e são pagos em dólares ou moedas virtuais, a desvalorização do peso cubano (CUP), decretada em Janeiro de 2021, multiplicou os seus rendimentos. O mesmo é válido para as "mulas" [um termo utilizado por analogia com aqueles que transportam drogas] que entram no país com uma vasta gama de artigos para revenda, e para os emigrantes que enviam remessas para as suas famílias de volta a Cuba ou investem em negócios na ilha. Estes incluem o actual cliente de Ariel, o pedreiro. Depois de ter vivido nos EUA durante muitos anos, com a sua cidadania americana e uma pensão, decidiu regressar a Cuba. Passou o último ano e meio a renovar uma casa que comprou, com o objetivo de a transformar num alojamento para estrangeiros. "Mil dólares não é nada nos Estados Unidos, mas em Cuba, se se tem esse dinheiro todos os meses, vive-se como um rei", diz Ariel.
Do outro lado da moeda, há milhares de idosos que vivem sozinhos, mães solteiras que encabeçam famílias numerosas e pessoas deficientes sem formação profissional. Em Setembro, durante uma sessão do Conselho de Ministros, o Presidente Miguel Díaz-Canel reconheceu implicitamente a urgência de “aproximá—los através do trabalho social e da ajuda". Mas entre a retórica oficial e a ação concreta está o formidável obstáculo da crise financeira. O programa demográfico [envelhecimento da população, baixa fertilidade e migração líquida negativa], por exemplo, foi praticamente suspenso durante mais de um ano; a maior parte do orçamento para novos centros de reprodução assistida teve de ser reorientado para fazer face à covid-19 e a construção de habitações caiu para o seu nível mais baixo num século [embora em abril de 2019 tenha sido declarada uma prioridade para aumentar a dimensão das casas para famílias com 3 ou mais filhos].
As prioridades económicas do Governo também não são propícias à mudança, pelo menos não a curto prazo. Em maio, um relatório do Gabinete Nacional de Estatística e Informação sobre a utilização sectorial dos fundos de investimento público causou controvérsia. Numa lógica difícil de compreender durante uma pandemia, em 2020 e no primeiro trimestre de 2021, metade deste dinheiro foi gasto em hotéis, centros de lazer e respectivas infra-estruturas. "[No turismo] foi investido 3,5 vezes mais que na indústria, 7,5 vezes mais que na agricultura e pecuária, e 72 vezes mais que na ciência e inovação tecnológica", tweetou o economista cubano Pedro Monreal, um especialista da Unesco. [Ele tem um blogue: https://elestadocomotal.com/(link is external)] . A prioridade dada pelas autoridades à indústria do turismo e seus derivados reflete-se na nomeação de Manuel Marrero como primeiro-ministro em Dezembro de 2019. No momento em que assumiu o cargo de Primeiro-Ministro, que foi restabelecido pela nova Constituição [tinha desaparecido em 1976], Manuel Marrero nem sequer foi considerado como candidato, pois o prestígio e a experiência de outros dificilmente poderiam ser compensados pelo facto de ter chefiado o Ministério do Turismo desde 2004. [Manuel Marrero Cruz era vice-presidente do grupo hoteleiro Gaviota, que pertence ao Exército, desde 1999; da presidência do grupo em 2000, mudou-se para o Ministério do Turismo em 2004, mas não foi colocado na direção do PCC].
Uma reforma com limites
A 29 de setembro de 2021, foi aprovada a existência das primeiras 35 micro, pequenas e médias empresas (mipymes) em Cuba após 50 anos, 32 das quais são privadas.
A sua criação foi altamente mediatizada como resultado do pacote legislativo adotado no final de Agosto pelo Conselho de Estado [de acordo com a Constituição de 2019, órgão responsável perante a Assembleia Nacional do Poder Popular] e vários ministérios, a fim de permitir às empresas independentes adquirirem estatuto legal e aumentarem a sua dimensão para 100 empregados. Ao mesmo tempo, foi levantada a moratória que tinha sido imposta quatro anos antes sobre o registo de novas cooperativas não agrícolas. No entanto, a generosidade do Governo não chegou ao ponto de levantar a proibição do trabalho profissional independente.
A 16 de Abril de 2021, no VIII Congresso do Partido Comunista, Raúl Castro bradou contra aqueles que "exigem o exercício privado de certas profissões enquanto outras não são permitidas": "Parece que o egoísmo, a ganância e o desejo de obter rendimentos mais elevados [...] encorajam o desejo de iniciar um processo de privatização que varreria as fundações e a essência da sociedade socialista". Isto foi em resposta à recolha de assinaturas de arquitetos, engenheiros e outros licenciados que pedem para serem autorizados a registar os seus estudos e empresas, que, especialmente em Havana, operam ilegalmente há anos.
Cerca de 600 de entre eles enviaram uma carta ao Primeiro Ministro criticando a existência da "lista de atividades proibidas", uma lista de 124 atividades que o Estado reserva para si como sua competência exclusiva. Seguindo os precedentes da China e do Vietname, inclui profissões como o jornalismo e o direito ou atividades relacionadas com a defesa (por exemplo, fabrico de explosivos), mas também outras que há muito foram liberalizadas por Pequim e Hanói.
"É triste que tantos jovens tenham de emigrar porque não conseguem encontrar perspetivas profissionais e sentem-se excluídos de um país onde são necessários", lamentou Jorge Veliz, um dos arquitetos que assinou a carta na semana passada.
Encontrar alojamento para os milhares de licenciados que deixam as suas universidades todos os anos é um desafio para o Governo. Embora todos sejam oficialmente empregados, a maioria dos cargos em organismos públicos recebem salários que não são suficientes para cobrir as necessidades básicas. "Mesmo os varredores de rua aqui não vivem dos seus salários", disse um engenheiro informático, que usa a ligação à Internet no seu local de trabalho público para fazer programação para vários clientes que vivem no estrangeiro. Outros jovens candidatam-se a bolsas de estudo que lhes permitem emigrar ou, após tirarem os seus cursos, trabalhar em profissões economicamente mais rentáveis.
Uma reforma da legislação sobre empresas públicas, que foi implementada por fases ao longo do ano passado, tem como objetivo alterar esta situação. Mas tem encontrado obstáculos pelo caminho, tais como a existência do MLC - após duas décadas de dupla moeda (peso cubano e peso convertível) - o que levou a uma distorção das normas contabilísticas.
As sanções dos EUA [cujo levantamento é uma exigência democrática e social básica], primeiro, e depois os erros das autoridades e o efeito da covid-19, conjugaram-se para resultar, em muitos casos, na sequência da reforma, em salários reais mais baixos. Enquanto no final de 2020 a taxa de câmbio informal do euro era de cerca de 30 CUP (quase a mesma que a taxa oficial), desde então a moeda da UE tem seguido uma curva ascendente, atingindo a sua taxa atual de 85 CUP. O efeito desta flutuação é tanto mais notório quanto o euro e, em menor medida, o dólar são os pontos de referência para o MLC e, consequentemente, para uma grande parte do mercado de bens e serviços.
No entanto, alguns acreditam que o pior da crise pandémica pode ter terminado e que, com uma hipotética recuperação do turismo, o Governo pode ter uma mão vencedora neste jogo de reformas. Analistas como Pedro Monreal estimam que, só no sector das novas mipymes, cerca de 15.000 empresas poderiam aderir à rede comercial da ilha até finais de 2022, gerando milhares de milhões de CUP em impostos e cobrindo algumas das áreas mais negligenciadas pelo sector público, tais como os serviços. Uma marcha nacional de oposição convocada para 20 de Novembro - cinco dias após a reabertura das fronteiras - aposta na manutenção do estado de agitação social antes que a enésima recuperação económica faça o Governo ganhar tempo.
Para já, a vitalidade da "flexibilidade" inventiva própria de Havana colocou um travão nas previsões pessimistas transmitidas a partir de Miami. O rendimento dos cubanos na ilha ainda é inferior ao de outros países do continente, mas inexplicavelmente a muitos não parece faltar dinheiro para festejar como se não houvesse amanhã.
Amaury Valdivia é jornalista cubano e colabora com imprensa de Cuba, Espanha, Suécia e Uruguai. Artigo publicado no semanário uruguaio Brecha, a 8 de Outubro de 2021. Tradução de Luís Branco para o Esquerda.net.