Diante da convocatória da manifestação do dia 15 de novembro, defendi que o mais inteligente e acertado politicamente seria autorizar e garantir a proteção dos manifestantes. Mas o governo fez o oposto.
Ivette García González, Joven Cuba, 9 de novembro de 2021
O cenário político cubano é cada vez mais conflituoso e tóxico. A proibição governamental da marcha pacífica convocada para o 15 de novembro por cidadãos de várias províncias e da capital piorou a situação. Os promotores reivindicam com energia o exercício desse direito. As atuações posteriores do governo são preocupantes e as suas consequências podem ser lamentáveis.
Durante décadas, as contradições e dissidências não foram geridas com mínimos democráticos. Hoje, eclodem em novas formas de aglutinação e ativismo cívico liderado por jovens. O governo não sabe lidar com isso.
Mesmo aqueles que divergem a partir de posições socialistas são um desafio ao poder. Trata-se de um modelo centralizado, burocrático e opressor que não tolera a divergência. Nunca se viu obrigado a prestar contas, até há pouco tempo pôde reprimir seletivamente e manipulou a cidadania de múltiplas formas.
As reivindicações da marcha foram claras desde o início: “Contra a violência, para exigir que se respeitem todos os direitos de todos os cubanos, pela libertação dos presos políticos e pela solução das nossas diferenças através de vias democráticas e pacíficas”.
O governo tem consciência de que existem muitas outras reivindicações pelas quais se poderia marchar em Cuba, mas admiti-las implicaria uma postura autocrítica que não lhe é própria.
O governo tem consciência de que existem muitas outras reivindicações pelas quais se poderia marchar em Cuba, mas admiti-las implicaria uma postura autocrítica que não lhe é própria. Sabe que está a violar direitos inalienáveis reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na sua Constituição.
Em “Ativando alarmes contra uma marcha cívica”(link is external), destaquei a importância de naturalizar “o exercício dos direitos cívicos e políticos”, assim como “diminuir as tensões e eliminar o discurso ameaçador e excludente”. Escrevi que “o mais inteligente e acertado politicamente seria autorizar e garantir a proteção dos manifestantes”.
Nada disso ocorreu. Pelo contrário, o governo opta por entricheirar-se, violentar a soberania popular e o ordenamento constitucional. Manifesta demagogia ao sustentar o seu discurso em nome da Revolução e do Socialismo, mas a realidade demonstra que nem uma coisa nem a outra existem em Cuba já faz tempo. Em consequência, o conflito continua a aumentar.
-I-
A violência política não é nova entre nós. Porém, cresceu exponencialmente nos últimos anos, à medida em que se complexifica o conflito e se amplia o espectro da contestação. Hoje a repressão é massiva. As fórmulas são diversas e cada vez menos racionais, sem medir o seu impacto sociopolítico. Todas servem para amedrontar e justificar maior violência. A ordem de combate do 11-J repetiu-se para o 15-N, atualizada e preparada com tempo.
A ordem de combate do 11-J repetiu-se para o 15-N, atualizada e preparada com tempo.
Com o objetivo de manipular a cidadania, usam-se diversos recursos nos meios de comunicação de massa. Tenta-se criminalizar os principais ativistas, o protesto e aprofundar o medo nas famílias para evitar que compareçam. Também para que se comprometam a apoiar o governo, que mais uma vez se vitimiza.
Numerosas e reiteradas “entrevistas”, são aproveitadas para acusar e caluniar promotores da marcha, pressionar os cidadãos a serem delatores e ameaçá-los no caso de decidirem participar. Intimida-se com vigilância, com chamadas – anónimas ou não – aos cidadãos e às suas famílias e até mesmo aos seus parentes emigrados. Retomaram as expulsões laborais e a vigilância aos cidadãos que assinaram alguma carta, ou que presumivelmente poderiam manifestar-se
A ética é fundamental para a vida, mesmo na guerra. O fim não deve justificar os meios. Em política, mentir para conseguir submissão de qualquer forma, complica o conflito, indigna mais os opositores e desgasta as bases sociais próprias. Os discursos recentes do presidente/(link is external)primeiro(link is external) secretário do PCC(link is external) e do Chefe do Departamento Ideológico (link is external)no Comité Central são evidências.
Também é infame o papel dos média oficiais – como o programa de TV (link is external)da passada segunda-feira -, em simultâneo com outras ações repressivas. São parte da ofensiva governamental que envolve instituições e organizações de apoio contra alguns dos líderes e ativistas principais, vítimas de meetings de repúdio e outros atos desprezíveis.
Esquecem convenientemente que Revolução é “sentido do momento histórico; (…) é não mentir jamais nem violar princípios éticos (...)”.
Ao que parece, esquecem convenientemente que Revolução (link is external)é “sentido do momento histórico; (…) é não mentir jamais nem violar princípios éticos (...)”. Tanto isso como o amor, a tolerância e a justiça de que tanto falam os média oficiais são contrários à realidade de muitos cubanos.
-II-
É preciso identificar alguns fatores que, direta ou indiretamente, influenciam o conflito cubano.
No âmbito interno:
1. O conflito é de caráter nacional, pelo fracasso de um modelo alheio a mínimos democráticos que realizem a soberania popular. Só se aceita mexer de modo limitado no âmbito económico, onde também é conservador, apesar das tentativas de reforma, e usa-se o fator externo como justificativa de repetidos fracassos das suas políticas.
2. Politólogos, economistas e a cidadania em redes sociais reivindicam(link is external) há anos reformas reais. Especialistas alertaram até ao cansaço para o esgotamento do tempo de implementá-las com o menor custo social e político. Fica demonstrado nessas análises que a crise do modelo económico é muito anterior às sanções trumpistas e que a maioria das reformas não depende do bloqueio.
3. Os pacotes de medidas (link is external)dos últimos anos com o novo governo foram impopulares, com erros desde o projeto e as conhecidas consequências sociais. Em todos faltou participação popular e serviram para blindar mais o Estado. Hoje, os prejuízos aos direitos humanos – económicos, sociais, cívicos e políticos – são constatáveis.
4. Não obstante, chegada a agudização do conflito, mantém-se uma zona de silêncio por parte de muitos atores que poderiam influenciar o curso dos acontecimentos. O reformismo cubano – alinhado ou não com o governo –, faz malabarismos teóricos e práticos para desviar a atenção, apoiar em última instância a postura oficial e deslegitimar e travar a iniciativa cidadã. Como se fosse uma marcha que impedisse agora ou limitasse as reformas e os bons ofícios e intenções do governo e do parlamento. É a dicotomia que vivemos noutras épocas da nossa história: reforma ou revolução.
5. Dizia José Martí que “na política o real é o que não se vê”. Por trás da desproporcionada resposta governamental contra a marcha cívica estão os anteriores elementos de fundo e outros. O governo tenta desviar a atenção da raiz dos problemas e da insistência em políticas erráticas. Preparam a opinião pública – com os seus habituais recursos – para aceitar e participar na repressão, vestindo de povo a violência institucional sob o pressuposto de que é em defesa da Revolução “contra o inimigo externo” e os seus “operadores internos”.
6. O real é que pela primeira vez surgiu em Cuba um movimento cívico contestatário da jovem geração, sem compromissos prévios, com liderança horizontal e reivindicações próprias. Com uma linha que traz até ao nosso tempo o melhor da tradição cívica e patriótica cubana em diversas expressões. É lógico que atraia milhares de cidadãos.
No âmbito externo:
1. Muitas das reivindicações do movimento cívico cubano são comuns aos seus similares de outros países. Mas o amordaçamento permanente da dissidência, a construção oficial durante anos de uma imagem de excecionalidade diante do mundo e o ativismo da política exterior governamental com iguais fins dificultam a compreensão do que realmente está a ocorrer na Ilha.
2. O povo de Cuba sempre foi refém do conflito bilateral entre o seu governo e o dos Estados Unidos. Hoje, apesar das diferenças, ambos poderes gravitam negativamente sobre o movimento cívico cubano.
O primeiro, com o seu afã de perpetuar a nova classe no poder, apressa-se a destruí-lo de qualquer modo e veste-o com a roupagem do “mercenarismo” que tanto rejeita grande parte do povo. O segundo tem os seus próprios interesses geopolíticos, uma tradição de ingerência em Cuba muito anterior a 1959 e de franca hostilidade desde essa data.
Agora mostra-se solidário com a nova dissidência e ameaçador com o governo da Ilha. Por mais que o conteúdo possa parecer justo, é uma solidariedade hipócrita, ao tratar-se de um governo hostil que insiste em ditar pautas (link is external)para a transição democrática e cujo bloqueio extraterritorial prejudicou por décadas, acima de tudo, a cidadania cubana.
A sua identificação e aproximação àqueles que articulam um novo movimento cívico em Cuba prejudica-os a longo prazo e beneficia o governo porque lhe facilita os ataques contra esse movimento e a sua criminalização.
3. A imigração. A maior parte identifica-se com as reivindicações dos seu compatriotas da Ilha e, seja para regressar ou não, também sonha com uma Cuba democrática. Daí o seu ativismo crescente. A complicação está em que uma parte da emigração estabelecida nos EUA estimulou o endurecimento das posturas governamentais desse país. Nem todo o seu espectro é o chamado exílio histórico e nem todo está associado diretamente à oposição tradicional cubana.
Como resultado das erradas políticas migratórias do governo até hoje – apesar de algumas reformas – e de usar a emigração como válvula de escape para libertar-se da dissidência, temos atualmente uma diáspora nostálgica e ressentida que nos EUA foi muito bem acolhida, ganhando espaços no tecido político desse país. A isso junta-se a transnacionalização do extremismo político em que nos formamos durante anos, cuja expressão mais notória se manifesta no setor radical dessa comunidade.
4. O complexo cenário para a solidariedade mundial com a causa cívica da Ilha. Ainda que pudesse parecer simples e legítimo, também é complicado. Recentemente foram feitos apelos(link is external) de cidadãos cubanos e do mundo ao Conselho de Direitos Humanos da ONU e a outros organismos internacionais, assim como da sociedade civil internacional(link is external), incluídos líderes de opinião.
No entanto, as ideias e direitos que defende o movimento cívico liderado pela nova geração cubana deveriam principalmente ser apoiados pela esquerda mundial. E ainda que desde os acontecimentos do 11-J se tenham registado algumas reações positivas a nível global(link is external) e regional(link is external), ainda predomina o silêncio daninho, que confirma o que disse, há mais de dez anos, o intelectual luso Boaventura de Sousa Santos(link is external): “Cuba se tornou um problema difícil para a esquerda”.
O certo é que a esquerda tradicional(link is external) partilha certos traços da cubana oficial, em parte devido à raiz estalinista comum. Em consequência, dão a Cuba um tratamento seletivo, identificando povo com governo e priorizando a sua luta contra o capitalismo e os EUA. Assim preferem uma Cuba imolada a perder a referência da Ilha irredutível diante do imperialismo, útil para a luta política nos seus países.
Alguns preferem preservar os seus interesses económicos e compromissos com o governo cubano, ou ver o conflito como é apresentado pela narrativa oficial: Cuba versus EUA. Portanto, alinham-se com o poder, reproduzem o seu discurso e, às vezes, a sua prática e ignoram reivindicações cívicas que nos seus países são ou foram bandeiras das suas próprias lutas.
-III-
Ainda que num contexto adverso, muitos cubanos, essencialmente jovens, persistem em ter o seu 15-N, convocado por Arquipélago(link is external), plataforma cidadã que derivou do 11-J. Com o seu lema “Por uma Cuba plural, com todos e para o bem de todos”, atraiu rapidamente milhares de cubanos da Ilha e da diáspora.
Neste complexo cenário, o novo movimento cívico insular terá de abrir caminho. Cada vez ganha mais recetividade em diversos setores sociais e conta com o acompanhamento de atores da sociedade civil (link is external)e da diáspora(link is external). Hoje estão a ser preparadas manifestações de cubanos em mais de 60 cidades do mundo.
O governo está num momento político muito complexo. Não compreende ou não aceita que o protesto apresente exigências que excedem as carências materiais ou a influência externa. Há uma tomada de consciência, uma emergente vanguarda política que perdeu a confiança no governo e está disposta a lutar pelos seus direitos.
O Estado poderia ter evitado uma boa parte desses problemas se aceitasse a iniciativa cidadã e a protegesse como devia. Mas continua contando com recursos de antanho num contexto totalmente diferente, confirmando assim o seu anacronismo. É preciso gerir politicamente o conflito, respeitar a soberania popular, aceitar a divergência e o exercício de direitos constitucionais pelos cidadãos.
As proibições e práticas contra direitos na sociedade cubana atual são muito danosas ao país e, como afirmou o escritor russo Isaac Asimov(link is external): “A violência é o último recurso do incompetente”.
A repressão é o limite de tolerância de muitas pessoas. Só consegue resultados efémeros; os principais e duradouros são a indignação e ampliação da dissidência e do conflito. Chegados a este ponto e frente ao 15-N não se trata de posturas, de compromissos e de militâncias políticas. Trata-se das novas gerações de cubanos; de direitos, civismo e humanidade. As reações são ainda resultado da prática política de violentar direitos, mas as consequências podem ser lamentáveis.
6 de novembro de 2021
Ivette García González é doutora em Ciências Históricas, professora titular e escritora cubana. Artigo publicado originalmente em Joven Cuba. (link is external)Traduzido por Luis Leiria e Cristina Portella