Apegados a uma narrativa que apela apenas a flashbacks, os dirigentes cubanos perdem de vista o presente e ignoram os sinais que o mundo real lhes envia.
Gustavo Arcos Fernández-Britto, La Joven Cuba/Esquerda.net, 1 de janeiro de 2022
Alguém, brincando, disse certo dia que em Cuba só há três problemas: pequeno almoço, almoço e jantar. Se, em certas instâncias, toda a conversa se dá em torno dos grandes desafios da nação, o quotidiano dos cidadãos decorre n(link is external)outra dimensão(link is external).
Talvez pareça banal, mas nenhuma análise séria de Cuba pode ignorar esse drama que representa, para a maioria da população, todo o sentido atual da sua existência. Por isso, não são os chamados dissidentes, nem os mercenários, nem os inimigos externos que estão a gerar uma rotura com a Revolução; é ela própria que está a implodir, destruindo-se por dentro. Apegados a uma narrativa que apela apenas a flashbacks, os nossos dirigentes e funcionários perdem de vista o presente e ignoram os sinais que o mundo real lhes envia.
A História, os heróis, as razões de Cuba são muito corretas; mas o frango que trouxeram da esquina é melhor. Foi se impondo uma pragmática do quotidiano, uma perigosa tendência para o “salve-se quem puder!”, normalmente desconhecida nos estudos sobre a Ilha, reduzindo esta grande história à dicotomia entre o bem e o mal, o passado e o presente, Cuba versus Estados Unidos, Revolução-Contrarrevolução.
Para as pessoas comuns – e cada dia há mais nessa lista – o tempo das promessas(link is external) acabou. Isso é, como diria La Lupe, “puro teatro, falsidade bem ensaiada, simulacro estudado”… Nos anos sessenta e setenta, as pessoas trabalhavam incansável e voluntariamente por um futuro que, dizia-se, pertencia inteiramente ao socialismo. Um conceito de sacrifício que fazia sentido para os nossos pais. O homem novo, a nova sociedade, a nova trova e o povo novo.
Tudo era visto a partir de um prisma positivista e transformador, sustentado nas palavras e nos livros escolares por um discurso que estigmatizava o passado, visto como retrógrado e burguês. A História, os paradigmas, os valores começaram a ser reescritos para legitimar o caminho traçado pelo Partido que, embora não fosse novo, começou a ser… imortal!
A Revolução mudou muitas coisas, entre elas a linguagem. Há toda uma gramática gerada pelos ideólogos do Partido e da Cultura que permeou todas as esferas do pensamento. A alfabetização(link is external) era boa, mas a doutrinação da sociedade mostrou ser mais eficaz. É grandioso pensar, mas o ideal seria citar o líder, aplaudir e nunca questionar.
Como toda cultura é construída sobre lendas e símbolos, o governo cubano pôs especial empenho em inventar os seus. A primeira apropriação viria com a palavra Revolução, agora reconfigurada para definir, não uma ação legítima e universal praticada durante séculos, mas sim um sistema político concreto, o nosso, que é único e indestrutível. Qualquer outra leitura dos seus significados ficava anulada ou sancionada.
A Pátria não é o lugar onde nascemos, onde encontramos as nossas raízes e cultura; é, antes de mais nada, a Revolução, e só se é um bom cubano defendendo a Pátria que é, ao mesmo tempo, a Revolução. No filme Morangos e Chocolate (Tomas G. Alea – 1993) encontramos um exemplo de como a existência dos cidadãos pode ser estigmatizada sob esta analogia perversa e excludente.
A independência só será lida como uma ação libertadora de um domínio externo, qualquer outro significado é suspeito, pois, num país institucionalizado e controlado por um único partido e ideologia, qualquer gesto de independência torna-se equívoco. Ao mesmo tempo, pode ver-se como se exacerba o conceito de unidade, palavra que perpassa cada parágrafo do discurso, das leis ou da mensagem pública. A independência é uma fissura, um agravo a esse povo unido que jamais será vencido.
Há apenas três anos, o parlamento cubano, como se não tivesse outro assunto importante a tratar, reservou uma manhã inteira! para debater o termo propriedade privada, porque no país o que temos são… trabalhadores por conta própria. Assim, os eufemismos ou o gerúndio moldaram toda a estrutura discursiva de nossos políticos. As cartas estão a ser levantadas, os problemas a ser resolvidos, as leis estudadas. Os emigrantes passaram de ser vermes (gusanos), escórias vilipendiadas, ratos que abandonaram o navio, a uma comunidade residente no estrangeiro, graças à qual, aliás, vive boa parte da nação.
A verdadeira democracia só pode ser se for socialista. O parlamento não é tal, mas sim uma Assembleia do Poder Popular que é o verdadeiro poder, visto que representa o poder do povo. A Constituição é a lei das leis, mas acima dela está, como vimos na televisão, o poder do Partido que representa a força motriz da sociedade, ainda que seja integrado por pouco mais de meio milhão de cidadãos.
Não há país mais culto do que o nosso, nem exército mais nobre, nem democracia mais plena, nem bloqueio mais genocida, nem eleições mais transparentes. Os heróis são sagrados, o líder é eterno, as ruas e as universidades pertencem aos revolucionários, os que discordam são mercenários e os que criticam estão confundidos. A arte é uma arma da Revolução, os CDRs são a sociedade civil, as crises não existem porque são apenas conjunturas e os problemas serão resolvidos... quando chegar o momento indicado.
Os dirigentes raramente oferecem um discurso próprio e, sem exceção, para se legitimar, citam Fidel ou Martí, e quanto mais o fizerem, melhor. Os debates sobre os direitos de cidadania, as liberdades, a justiça ou a ética estão sempre condicionados a uma interpretação de caráter ideológico.
Nas leis e disposições emitidas pela direção do país existem muitas questões favoráveis à cidadania ou à ordem constitucional, salvo se atentarem contra os princípios da Revolução e por isso qualquer greve, manifestação pública ou protesto cidadão serão proibidos.
Já foi dito que o meio é a mensagem. Em Cuba, a mensagem é o meio, enquanto a televisão, o rádio e a imprensa foram totalmente controlados e supervisionados pelo Departamento de Ideologia do Comité Central do Partido. Esse casamento teve uma existência feliz e harmoniosa, oferecendo durante décadas uma imagem de Cuba com dois lados: o paraíso tropical e a ilha indomável. Os turistas, amigos da Revolução, os empresários viajavam para o parque temático que guardava, para cada segmento, os seus roteiros, as suas bugigangas – a exacerbada comercialização da imagem de Che é um exemplo – e as suas narrativas.
Não há narrativa maior do que aquela desenhada em torno do bloqueio dos Estados Unidos. A história de David a fazer face a Golias sempre terá milhões de seguidores. Esta dramaturgia foi obtusamente escrita por todos os governos americanos e alguns cubanos, numa ópera trágica de mil vozes. Enquanto cada parte se ataca e nega, encontra suas razões e falta delas, as famílias cubanas sofrem as maiores consequências. Confronto, divisões, ódios que se exacerbam, rancores que não são superados.
Tudo serve para alimentar essa dramaturgia diabólica. Como se fosse um videojogo macabro, cada parte espera as ações do oponente. Ação e reação. Às vezes imagino os políticos de plantão ao lado do telefone, comunicando-se todas as semanas para delinear as estratégias e os obstáculos que vão colocar no caminho dos cidadãos, antes de passar ao próximo nível.
Pode-se perguntar como é possível que, depois de 60 anos, Cuba ainda dependa tanto das decisões de um presidente dos Estados Unidos. Lembro que entre os motivos que levaram às ações revolucionárias no final dos anos 1950 estava a necessidade de romper com aquela subordinação económica que tínhamos do vizinho.
Enquanto o campo socialista existiu – transformado numa nova subordinação – o bloqueio estava em décimo lugar na agenda cubana, realmente tinha pouca importância. Desde há anos, os nossos políticos, como um pesadelo recorrente, não pararam de falar dele e todos os problemas que temos são atribuídos à sua existência. Não há um olhar objetivo para dentro, para essa incapacidade de gerar uma economia própria que se sustente. Quantas limitações, leis, decretos e medidas foram assinados que entravam a vida dos cubanos e que nada, ou muito pouco têm a ver com o bloqueio!
Quando, no passado 11 de julho, milhares de cidadãos saíram às ruas de toda a Ilha, mostraram a sua ira e frustração com o estado de certas coisas. Neles há também a angústia pela falta de diálogo real, as vozes de quem já não quer continuar em silêncio, e o gesto inconformado, por que não?, diante da errática gestão de um governo.
São os mesmos cidadãos que talvez tenham marchado ontem, 1º de maio, que nalgum momento aplaudiram Fidel e que, sem dúvida, trabalham ou estudam dia a dia tentando gerar riqueza e progresso; mas que são, antes de tudo, seres com necessidades, carências, angústias e expectativas não satisfeitas. Para eles, os discursos deixaram de funcionar, as reuniões são inoperantes, as queixas não têm sentido e as promessas nunca são cumpridas. O drama da nação cubana encontrou, desde esse dia, o seu novo ponto de inflexão.
Se o governo tem o controlo de tudo, não pode esperar somente aplausos pela sua gestão benfeitora, mas que também é responsável por todas as misérias e problemas que nos rodeiam. O exercício do poder implica uma responsabilidade, para o bem e para o mal.
Os jovens de hoje nasceram em pleno período especial. Os que estudam agora nas universidades são uma geração do século XXI, movendo-se à velocidade da luz e colada num ecrã, numa dinâmica virtual que se afasta da mensagem unívoca e enfadonha veiculada pelos nossos meios de comunicação.
As recentes medidas de unificação da moeda foram uma bomba-relógio, lançada na face já maltratada das famílias cubanas, mas alguns preferem conversar e passar longas horas procurando culpados noutro lugar, ignorando que não existe o tal golpe brando, como gostam de dizer, mas sim um verdadeiro, duro e terrível, originado nas próprias instâncias do governo.
Enquanto alguns se entretêm seguindo os caminhos do dinheiro, procurando analogias em velhos manuais ou aprisionando supostos líderes, milhares de cubanos emigram todos os anos(link is external), numa sangria incontrolável que põe em suspenso qualquer ideia que tenhamos do futuro. Jovens formados pela Revolução que pouco ou nada querem saber dela.
A narrativa oficial gosta de repetir que a cultura é a alma da nação. Deveria então prestar mais atenção ao que essa cultura popular lhe está dizendo, porque os dois fenómenos culturais e sociais mais relevantes nos últimos 15 anos foram gerados precisamente em contraposição com as instituições. O reguetón1 e o paquete semanal2 representam duas formas de resistência e articulação social em confronto com um modelo de coisificação cultural já instaurado no país por volta de 1971 e que hoje – decreto 3493 entre outros recentes – retorna com novos brios.
Atualmente, um blogger, um streamer, um cantor de reguetón, um grupo de pessoas que compartilham preferências ou desejos através do WhatsApp, podem exercer mais influência numa comunidade do que todos os cursos e aulas recebidos numa escola. Os valores são diferentes, a sociedade é diferente, as práticas sexuais são diferentes. Há outros mitos, outras leituras, outras canções, outros sonhos, novas imagens, vilões e heróis. Definitivamente há outra conversa social que tem de ser ouvida e respeitada. É aqui que está a ocorrer a nova e verdadeira Revolução.
9 de dezembro de 2021.
Gustavo Arcos Fernández-Britto é professor e crítico de cinema. Especializado em cinema e sociedade em Cuba. Publicado originalmente em La Joven Cuba(link is external). Traduzido por Luis Leiria para o Esquerda.net
Notas:
1. O reggaeton (ou reguetão) é um estilo musical que tem suas raízes na música latina, caribenha e europeia. Seu som deriva do ritmo reggae em espanhol do Panamá, influenciado pelo hip hop, pela salsa e pela música eletrónica. Esse género musical surgiu no Panamá, tirado do estilo eletrónico e logo se popularizou em Porto Rico, Espanha e se espalhou pelo mundo. A maioria das músicas contém letras com conteúdo sexual, porém, existem temas pop, românticos, urbanos contando a realidade das ruas, das drogas e, claro, sobre festas e ostentação. (Wikipédia)(link is external)
2. O Pacote Semanal ou o Pacote é uma coleção de material digital distribuído aproximadamente desde 2008 no mercado clandestino de Cuba como substituto da Internet de banda larga e da própria televisão cubana. A sua distribuição é ilegal, ainda que tolerada pelo governo cubano. O Pacote Semanal pode ser comparado a um streaming quanto aos conteúdos que oferece. Desconhece-se quem está por trás da compilação do material. (Wikipédia)(link is external)
3. O decreto 349 obriga os artistas a obterem autorização prévia para fazer exibições ou performances públicas ou privadas. A lei foi proposta em 20 de abril de 2018 pelo presidente cubano Miguel Díaz-Canel e foi publicada na Gazeta de Cuba(link is external) em 10 de julho. A lei dá ao governo o direito de fechar vendas de arte e de livros, apresentações, concertos e performances que contenham conteúdo proibido. Em particular, a lei bane a arte que contenha “linguagem sexista, vulgar e obscena” e a arte usando “símbolos nacionais” para “contrariar legislação corrente”. Os inspetores do governo multam os que não cumprirem, e confiscam as obras artísticas consideradas em contradição com a lei. Os artistas enfrentam também restrições à venda das suas obras sem a aprovação do governo. A lei entrou em vigor em 7 de dezembro de 2018. Um grupo de artistas denominado Movimento de San Isidro formou-se em setembro de 2018 para protestar contra a lei. (Wikipédia)