Conselho Editorial de Joven Cuba*, Esquerda.net, 16 de novembro de 2021.
Um fantasma assombra Cuba: o fantasma da repressão. A sua brutalidade e ignomínia afastam em anos luz a possibilidade de que o sonho de uma nação “com todos e para o bem de todos”, de um projeto social “dos humildes, pelos humildes e para os humildes”, se materialize. Botas manchadas com a tinta da Constituição da República aprofundaram nestes dias a fratura que divide os cubanos em alas aparentemente irreconciliáveis.
Vimos com vergonha e horror que em muitos pontos do território nacional realizaram-se manifestações de repúdio contra pessoas que desejavam exercer o direito a se manifestarem pacificamente. Os vídeos e denúncias inundam as redes. Os gritos, palavras de ordem e objetivos são os mesmos de anos atrás; os repudiantes, no entanto, são menos em quantidade e em não poucas ocasiões tiveram de ser transportados de lugares distantes para injuriar pessoas que nem sequer conheciam.
Cidadãos foram privados do seu direito de circular livremente, sem que existissem ordens judiciais nem processos legais. Outros foram detidos por levar peças de roupa e uma flor brancas, como se isso fosse um delito. Representantes da imprensa estrangeira acreditada no país foram privados das suas credenciais para exercer o jornalismo.
Tudo isto, agudizado nos últimos dois dias, foi precedido por uma campanha de intimidação iniciada quase na mesma data em que a plataforma Arquipélago convocou uma marcha pacífica, marcada primeiro para 20 de novembro e adiantada para 15 depois do anúncio de exercícios militares por parte do governo. Despedimentos laborais(link is external), assédio policial, intimações constantes, assassinatos de reputação nos média oficiais foram algumas das ações desta operação.
Estas ações constituíram um exercício de terror de Estado, materializado por um poder quase absoluto contra os cidadãos que divergem. Para analisá-lo não são válidos os recursos da lógica, da legalidade ou da ética.
Que o governo e os seus seguidores acríticos assumam essa atitude contra os seus próprios compatriotas, afasta a possibilidade de que a atual crise económica, social e política que atravessa Cuba se resolva. Com isso não só danificam, talvez de maneira irreversível, a imagem do socialismo – que é entendido por muitas pessoas como um sistema naturalmente repressivo –, como também evidenciam uma atitude francamente reacionária.
Carolina Barrero, historiadora de Arte e ativista, foi presa no dia 15
Os jovens que ofereceram ou arriscaram as suas vidas, nos anos 50, pela Revolução, não o fizeram para que acontecessem estas coisas. Hoje, os revolucionários não são os que se vestem de vermelho; a reação pode pintar-se de qualquer cor. Abusar dos outros quando se tem todo o poder, por muito em desacordo que se esteja com o pensamento desses outros, é uma atitude covarde e imoral que cobre de ignomínia os que a exercem.
Se existem provas concretas para demonstrar os vínculos dessa convocatória com ações financiadas e coordenadas pelo governo dos Estados Unidos e os seus programas de mudança de regime, as soluções não deveriam ser atos de repúdio, detenções arbitrárias, ou ações extrajudiciais.
Supostamente é Cuba um Estado de Direito, com leis e procedimentos que podem ser aplicados; faça-se então o que a lei estipula, com justiça e verdade. Caso contrário, fica evidente a falsidade das acusações e o desrespeito à legalidade por parte daqueles que a devem proteger. Atuando assim, parecemos um desses povos sem lei dos western de Hollywood.
Esta espiral repressiva é, além disso, lenha para a fogueira daqueles que pedem mais sanções contra o povo cubano. As ameaças vêm sendo formuladas desde há muito e não é preciso procurar a demonstração das apetências imperialistas para além das centenas de milhares de dólares que anualmente o governo dos Estados Unidos dedica à subversão da ordem em Cuba. Não o ver é desconhecer uma parte importante do problema.
Seja qual for a perspetiva de análise, os acontecimentos destes últimos dias têm resultados nefastos para o país. A repressão só silencia as vozes por um tempo, a cidadania despertou e exige ser ouvida.
A atuação do Governo revelou o seu desespero por impedir que seja visível o alto nível de desaprovação cidadã que tem hoje; uma coisa que sabe muito bem pois, durante o 8º Congresso do PCC, em abril passado, foi discutido pelo Bureau Político um “Estudo do clima sociopolítico da sociedade cubana”, cujo conteúdo jamais transpirou para a opinião pública.
Apenas três meses depois, aconteceu a explosão social do 11 de julho. A marcha anunciada para 15 de novembro permitiu que as autoridades se preparassem. A mensagem que transmitiram é confusa e perigosa: preferem ações incontroláveis, à margem da lei, a ações negociadas e autorizadas?
Uma vez mais consideramos que a única saída possível para a crise atual é a realização de um diálogo nacional(link is external), sem ingerências externas nem autoritarismos internos. Cuba é de todos os cubanos, não é feudo de uns para oprimir os outros. Se o caminho seguido não for invertido e as políticas repressivas não forem alteradas, o desfecho pode ser terrível. E um país fraturado e fraco é presa fácil, como o foi no final do século XIX, depois do fim da Guerra de Independência. Retifique-se a tempo esta rota para o abismo, o ponto de não retorno está próximo.
Todos os cubanos devem ter todos os direitos.
*La Joven Cuba é um projeto especializado em investigação e opinião(link is external), com uma equipa de intelectuais analisando políticas públicas e outra equipa de jornalistas para dar seguimento ao acontecer noticioso. Existe há mais de 10 anos. Artigo do Conselho Editorial de Joven Cuba. Tradução de Luís Leiria para o Esquerda.net