Quantas caras/versões tem o Direito Internacional (DI)? Estaremos sempre a falar do mesmo DI ou há diferentes versões em função da região do mundo, dos poderes em conflito, ou ainda do momento em que deve ser aplicado?
José Manoel Rosendo, meumundominhaaldeia, 28 de maio de 2022
Para ilustrar esta situação esquizofrénica, já nem vale a pena falar do caso de Israel e da ocupação ilegal dos territórios palestinianos, dos colonatos ou do muro de separação, mas a questão torna-se ainda mais interessante quando envolve um país da NATO, precisamente porque é a própria organização – face ao que está a acontecer na Ucrânia – que tem feito bandeira do Direito Internacional e do direito de cada Estado, e cada povo, escolher o seu caminho, em liberdade, tal como as suas alianças de segurança. Nada a opor, como princípio teórico. E agora vem o “mas”.
A invasão da Síria
E o “mas” é um país da NATO – a Turquia – estar a fazer algo muito semelhante ao que a Federação Russa está a fazer na Ucrânia. A Turquia tem tropas, e milícias aliadas, no norte da Síria e, há muito mais tempo, décadas, bases militares no norte do Iraque. No norte do Iraque, a presença militar turca é contestada pelo governo central de Bagdad mas acaba por ter o acordo do Governo Regional do Curdistão (GRC), enquanto na Síria o Governo de Bashar Al Assad não concorda, tal como os curdos da Região do Rojava, que controlam essa zona do país. A presença turca no norte da Síria tem por objetivo evitar que os curdos tenham/construam uma continuidade territorial entre a zona da Síria que actualmente controlam e a zona sul da Turquia, também ela de maioria curda. O objetivo turco é semelhante no norte do Iraque, sendo que o GRC é um aliado da Turquia, por motivos económicos, e vê no PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) um adversário político perigoso.
Na Síria, os turcos dizem combater as YPG (sigla em inglês das Unidades de Protecção Popular) que integram as FDS (Forças Democráticas da Síria), uma força decisiva na derrota imposta à organização Estado Islâmico. As YPG são vistas como a extensão síria do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), que também combateu ferozmente o Estado Islâmico, e que a Turquia combate há décadas, mantendo o líder, Abdullah Öcalan, preso desde 1999.
PKK e YPG
É aliás surpreendente a diferente leitura feita por Estados Unidos e União Europeia quanto às milícias curdas: o PKK é considerado organização terrorista, mas YPG escapam a essa classificação.
PKK e YPG foram fundamentais na luta contra a organização Estado Islâmico, principalmente na Síria e nas montanhas de Sinjar, no Iraque, zona dos Yazidi, povo martirizado pelo Estado Islâmico. Actualmente, reconhece-se esse papel às YPG, mas recusa-se o mesmo reconhecimento ao PKK. Se alguém quiser saber as diferenças basta ir ao Curdistão sírio e verificar como as fotografias de Abdullah Öcalan, líder do PKK, estão por todo o lado, inclusivamente nas fardas das milícias YPG. Depois é preciso perceber a lógica interna das diferentes comunidades curdas.
Travar os curdos
Para todos os efeitos, principalmente na Síria, houve, e vai ser intensificada, uma invasão turca que pretende impor um controlo territorial, em nome da segurança, criando uma zona tampão – 30 km em território do lado sírio da fronteira – ou como se lhe queira chamar, entre as áreas curdas da Síria e as áreas curdas da Turquia. O que, aliás, poderia ser feito do lado turco da fronteira, mas não é. No Iraque, a Turquia pretende evitar que curdos do PKK possam cruzar a fronteira e alimentar a guerrilha que mantêm com o governo turco.
Há poucos dias, o conselho de segurança da Turquia aprovou uma nova operação militar: o objetivo é “terminar o que já foi começado” e consiste em controlar totalmente uma zona de fronteira com a Síria de quase 500 km, entre Afrin e Qamishli, abrangendo a cidade mártir de Kobani, símbolo da resistência curda ao Estado islâmico.
Sementes de conflito
Para além de pretender este controlo de território sírio em nome da segurança turca, o Presidente Recep Tayyip Erdogan anunciou o plano de enviar para esta região cerca de um milhão de refugiados sírios que neste momento estão na Turquia. Duzentas mil habitações vão ser construídas. Acontece que muitos destes refugiados não são curdos. Sabemos o que tem acontecido nesta zona do mundo – e em outras – quando se forçam alterações demográficas: cedo ou tarde estala o conflito. Para além de, no imediato, a medida poder render apoios eleitorais em 2023, Erdogan parece apostar em deixar sementes de conflito que, no futuro, coloquem sírios árabes contra sírios curdos, num potencial conflito interno que servirá de travão a eventuais ambições curdas na região e, em particular, em território turco.
Neste momento, a Turquia está a aproveitar o pedido de adesão (Finlândia e Suécia) à NATO, para colocar exigências, ameaçando vetar essas adesões. Um dos objetivos pode ser obter um “fechar de olhos” ao que está a fazer na Síria e no Iraque.
Quantos nomes tem uma invasão?
Mesmo que a presença militar turca no Curdistão iraquiano tenha o apoio do GRC, ela tem a oposição firme do governo de Bagdad e é ao governo central que a Constituição iraquiana atribui o poder de defender a soberania do país. O Iraque é um Estado federal.
Na Síria, o Direito Internacional também está a ser mandado às urtigas e apesar de sanções muito tímidas aplicadas pelos Estados Unidos e União Europeia, a Turquia continua a fazer o que bem entende.
A Rússia não chama guerra à invasão da Ucrânia, preferindo referir-se a uma “operação militar especial”; a Turquia também não fala de guerra, nem de invasão, prefere chamar-lhe “operações além-fronteiras”. Recorde-se que a NATO também tinha as “operações fora de área”. A semântica da guerra é, de facto, surpreendente. E os curdos, será que mais uma vez vão ficar sozinhos?