Julia Almeida V. da Silva, militante da Insurgência. Novembro de 2023. Em Le Monde Diplomatique.
Perspectiva de mudança tinha um apelo próprio e mobilizava os afetos de indignação e esperança de uma população que enfrentou muitas adversidades nos últimos anos.
O desfecho das eleições na Argentina demonstra a força e o dinamismo dos movimentos de extrema direita e sua capacidade de disputar hegemonia social. Deixa evidente também o quanto esse fenômeno global está articulado e mantém, mesmo depois de perdas eleitorais importantes (Brasil e Estados Unidos, por exemplo), sua capacidade de mobilização, disputa da sociedade, síntese e construção de novos projetos de poder. A vitória de Javier Milei abre um novo momento de disputa desses movimentos, em especial na América do Sul.
Embora o kirschnerista Sergio Massa (União pela Pátria) tenha aberto uma vantagem no primeiro turno de quase 7 pontos para Milei (A Liberdade Avança), no segundo turno das eleições que ocorreram em 19 de novembro, foi o candidato de extrema direita que obteve cerca de onze pontos percentuais em relação à Massa. São cerca de 3 milhões de votos de diferença e uma enorme distância das pesquisas eleitorais e análises que esperavam um cenário apertado. É comum uma dificuldade de mapeamento dos votos de extrema direita, em especial quando cresce a polarização por fatores como: utilização das redes sociais fragmentadas, o receio dos eleitores de perfil mais moderado de apontarem seu voto num candidato extremista e indecisos que escolhem no último momento seu candidato.
Milei representa uma articulação de inúmeros elementos neoconservadores da sociedade argentina,[1] um rechaço ao kirchnerismo e à situação econômica (hiperinflação, desvalorização cambial, aumento da pobreza, precarização das condições de trabalho e vida) e um avanço da política do ódio como forma de disputa dessa sociedade em crise. A política do ódio avançou na Argentina como em inúmeros outros países por meio da perseguição de professores por suposta doutrinação ideológica, xenofobia, racismo, misoginia, LGBTQIfobia e violência política (tendo o atentado contra Cristina Kirchner seu principal marco). No entanto, para vencer as eleições, Milei precisava ampliar sua base eleitoral e ser mais palatável para setores sociais que não compartilham a totalidade desses sentidos, desses valores, mas não queriam a manutenção de uma chapa governista. Teve que fazer um jogo paradoxal, mantendo parte de suas propostas mais extremistas e suavizando ou promovendo ambiguidades em outras – além de buscar ampliação eleitoral com alianças tradicionais e com políticos que ele mesmo chegou a dizer que compunham a tal “casta” (que controla e se apropria da sociedade argentina).
Podemos apontar inicialmente duas grandes diferenças de Milei na sua estratégia de campanha no segundo turno em relação ao primeiro. A primeira questão é que Milei, por meio de evidentes contradições, moderou seu discurso e permitiu a atração de um eleitorado mais amplo. A contradição, em verdade, é uma estratégia determinante para esse sucesso, pois o fato dele negar que vai realizar parte de sua plataforma eleitoral mais radical (como venda de órgãos, liberalização de porte de armas etc.), fortalece um eleitorado que nunca achou possível que ele fosse tão longe, que acreditava que ele dizia isso da boca para fora. Ao mesmo tempo que para sua base mais radical ele continuava instigando nas redes sociais seus discursos mais violentos, segmentando um pouco a estratégia de campanha que consistia em relativizar o que havia dito antes, sem negar completamente. Com isso, ele mantém seu público mais fiel mobilizado e amplia sua base eleitoral.
O segundo elemento fundamental foi o apoio do Juntos pela Mudança, que faz parte do principal grupo de oposição do país. Patricia Bullrich, terceira colocada no primeiro turno, teve cerca de 24% dos votos e seu apoio a Milei foi o mais importante para a definição das eleições. Se somarmos os resultados que os dois obtiveram no primeiro turno, chegamos 14,1 milhões de votos, muito próximo do total que Milei teve agora no segundo turno (14,4 milhões). Massa, por sua vez não obteve nenhum apoio formal, nem mesmo da FIT (Frente de Esquerda e de Trabalhadores – Unidade), que preferiu não indicar voto no segundo turno. É evidente que a votação de Patrícia não foi toda para Milei, mas como o quórum caiu 1% e havia apenas 2 milhões de eleitores em disputa depois dessas três candidaturas (quase o que Massa conseguiu crescer do primeiro para o segundo turno), sabemos que a transferência do Juntos pela Mudança foi muito bem realizada.
Tanto Macri como Bullrich apresentaram seu apoio e entraram na campanha com força – o que ajudou muito na migração de votos. A estrutura de campanha, máquina de governadores e distribuição das cédulas eleitorais, foi decisiva nessa reta final. Embora com algumas rupturas (o que faz com que alguns entendam que há um desmantelamento desse bloco), a vitória de Milei coloca esse setor em posição de força. Se analisarmos o mapa do primeiro para o segundo turno, vemos que onde o Juntos pela Mudança tem importantes governos e resultados eleitorais, a transferência de votos para Milei foi alta. Em outras palavras, a máquina eleitoral clássica também foi muito relevante para a definição das eleições – e Milei foi capaz de fazer esses acordos.
Reforçando a ampliação para uma base eleitoral mais ampla, a estratégia do Juntos pela Mudança foi apresentar seu programa (um total de onze pontos) junto com seu apoio. Nesse documento, discordavam expressamente de alguns pontos de Milei (defesa da educação pública de qualidade; permanência da atual legislação de venda de armas e proibição de venda de órgãos) e afirmavam pontos como a oposição ao kirchnerismo, a política penal de mão dura, desburocratização estatal por meio de reformas e privatizações; dentre outros. Essa modulação e exposição de diferenças auxilia a construção de uma ideia de discurso “moderado”. Tanto Milei como Bullrich e Mauricio Macri disseram que não concordavam em tudo, que tinham plataformas eleitorais distintas (o que inclusive foi a razão de saírem separados no primeiro turno) mas que eram anti-governistas e lutavam pela mudança. Milei nunca se comprometeu com os pontos em desacordo apresentados pelo Juntos pela Mudança. Todavia, ele sinaliza esse movimento como uma postura tolerante, de diálogo e união entre diferentes pela mudança. Essa ambiguidade é e foi fundamental para esse duplo discurso de seu segundo turno (radical para seu público orgânico e moderado para a base eleitoral mais ampla).
Já desenvolvemos em outro artigo os setores sociais que compõe a candidatura de Milei, mas cumpre ressaltar novamente a dimensão econômica desse processo. Milei apresenta um programa que na relação capital/trabalho significa o aprofundamento de uma perspectiva ultraneoliberal. Não é circunstancial toda a visibilidade que o presidente eleito teve por anos em vários programas de televisão, a crise dos combustíveis por falta de estoque das empresas petrolíferas (o que é bastante duvidoso) no começo do segundo turno, assim como o apoio de setores do agronegócio argentino. A adesão de Bulrich também contribui para a campanha de Milei ser mais atrativa para setores econômicos, carregando uma dimensão de credibilidade a essa candidatura.
ELEMENTOS CENTRAIS DA CAMPANHA NO SEGUNDO TURNO
A campanha eleitoral foi marcada por altos e baixos para ambos os lados. Massa melhorou o controle do dólar, que chegou a sofrer uma desvalorização de cerca de 20% em relação ao primeiro turno, e ampliou a aplicação de algumas políticas de subsídios públicos. No entanto, em razão de uma espécie de lockdown de empresas de petróleo (o que também foi uma forma de apoio velado a Milei e busca de acordos com Massa), houve uma crise de combustíveis logo nas primeiras semanas, gerando desabastecimento em algumas regiões do país, o que foi muito explorado por Milei e Bullrich. De igual modo, em entrevista no dia 26 de outubro no canal America24, Milei esteve muito mal e parecia completamente desorientado, com sintomas paranoicos, o que chegou a gerar uma má repercussão inclusive sobre seus apoiadores (evidentemente, que ele soube se recuperar) – além de virar uma fonte inesgotável de memes.
A estratégia de comunicação da campanha de Massa foi utilizar e frisar o risco que Milei representava para algumas conquistas da população argentina: o tema da punição de agentes da ditadura (e o consenso que isso mobiliza), os riscos da liberalização das armas e munições (inclusive ligando a atentados em escolas), os riscos da privatização da saúde e educação pública, além de mudanças na seguridade social com reduções ou extinção de benefícios, a perda de soberania relacionada à dolarização da economia e do fim do banco central. Já a candidatura de Milei utilizava a noção de que a política do medo não podia ganhar as eleições, que ele representava o voto da mudança enquanto Massa da continuidade. Por fim, defendia que o que estava em jogo era “liberdade ou kirscherismo”. Como as condições concretas econômicas da Argentina estão muito difíceis, em especial com aumento da pobreza, hiperinflação e precarização do trabalho (com maior impacto para os mais jovens), a perspectiva de mudança tinha um apelo próprio e mobilizava os afetos de indignação e esperança de uma população que enfrentou muitas adversidades nos últimos anos.
FORTALECIMENTO DA BASE PROTOFASCISTA
Essa breve avaliação de alguns pontos de estratégias de campanha não pode deixar de lado a base social, as relações sociais que advêm dessas disputas. Numa eleição vence quem consegue disputar mais os afetos das pessoas, e nesse sentido o cenário era favorável para Milei (em especial em razão do encantamento dos mais jovens com sua figura). Contudo, a disputa dos afetos não se faz só nas eleições, ela é realizada por meio da realidade concreta das pessoas e como se explora as contradições que elas vivenciam no seu cotidiano e se disputa ou afirma o que elas pensam. Há um setor importante na sociedade argentina que é neoconservador. Este se mobilizou contra a legalização do aborto, contra a educação sexual nas escolas e contra professores que tinham determinadas visões políticas de esquerda (e outras coisas mais). Esse setor vem sendo incendiado pelo ódio à “casta”, à política, ao sistema e, mesmo quando perde suas pautas e se encontra minoritário, vem destruindo consensos sobre as regras do jogo da democracia liberal. Milei chegou a agitar possibilidade de fraudes eleitorais tanto no primeiro turno como no segundo turno e estaria disposto a colocar o sistema eleitoral em xeque se tivesse perdido (assim como fez Trump e Bolsonaro). Essa visão não tem maioria social, mas representa um percentual significativo e que vai ganhando batalhas importantes na disputa política, cultural e econômica – é o que podemos denominar de uma base neofascista que vem ganhando força, atingindo dimensões de massas e mobilização social relevantes.
A disputa do significado de liberdade foi uma marca importante da candidatura de Milei. Esse é um traço do fascismo histórico e de uma série de movimentos da extrema direita mundial contemporânea. Uma liberdade individualista, ultraneoliberal, de mercado, e do fim de laços de solidariedade social, de que temos que proteger uns aos outros, foi disputada com afinco pela sua candidatura. E essa é uma base ideológica importante para o desmonte previsto por sua candidatura: ataques a direitos sociais, privatizações, dolarização da economia, fim do banco central, desregulamentação do trabalho, legalização das armas, dentre outros.
Essa estratégia está absolutamente atrelada ao que virá. Para a proteção dessa liberdade é possível violações aos direitos humanos, retiradas de direitos sociais, violência policial e judicial, mais espaço para as Forças Armadas e polícias.
Eduardo Galeano dizia em As veias abertas da América Latina que quanto mais liberdade se permite ao “mercado”, mais cárceres se faz necessário construir para quem adoece do “mercado”. Essa chave é fundamental para entender o autoritarismo que estamos arriscando com Milei. Não há liberdade para transformar vidas em mercadorias, e numa sociedade como a Argentina, com histórico importante de luta social e organização social, essa política de Milei terá enfrentamento e, nesse sentido, embates e utilização ainda maior do aparelho repressivo estatal.
REVERSÃO NA POLÍTICA DE MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA
A Argentina é referência mundial no tema de memória, verdade e justiça. Diferentemente de outros países latino-americanos (e não apenas, mas mesmo para países europeus que tiveram governos fascistas como Espanha e Itália), ela sai do seu processo ditatorial com um consenso mínimo de que era importante um grau de punição para os militares. Em parte pela derrota na guerra das Malvinas, que descredibilizaram as Forças Armadas e impediram que elas conduzissem por completo o processo de abertura política (como ocorreu no Brasil), em parte pelo já intenso movimento de familiares de desaparecidos políticos e movimentos sociais.
No processo de disputa sobre a ditadura militar argentina prevaleceu a “Teoria dos Dois Demônios”, que se caracterizava pela defesa de que todos os excessos (do lado do Estado e da resistência armada) deveriam ser punidos. Foi assim que se iniciou o processo de abertura democrática com Raúl Alfonsín. Naquele momento, esse foi o consenso possível na sociedade. A ideia de que deveria haver punição para os militares, que a condução dos militares não poderia ficar impune, representava um avanço importante. Embora essa teoria fosse majoritária, em verdade, ela nunca se concretizou completamente pois não houve uma preocupação com também processar os militantes da luta armada. Por outro lado, apesar de iniciados na metade da década de 1980, os julgamentos contra militares foram interrompidos após uma série de ameaças e atentados de integrantes das Forças Armadas durante o governo de Carlos Menem, que também anistiou boa parte dos militares já condenados. Durante o governo Néstor Kirchner foram reabertos os processos contra militares e julgados inúmeros abusos da ditadura (além da ampliação de políticas de memória e de busca dos desaparecidos políticos). A disputa sobre os 30 mil mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura e as atrocidades da ditadura foram um marco e uma conquista da sociedade argentina. Milei e sua vice Victoria Villarruel puseram fim a esse consenso e seu governo ameaça ampliar poderes das Forças Armadas de defesa interna e perseguir militantes de esquerda (além de poder anistiar militares já condenados).
Não é por mero acaso que Villarruel é a vice de Milei. Filha de militar agente da ditadura, defensora de punição judicial para militantes da luta armada, negacionista em relação ao quantitativo de 30 mil mortos e desaparecidos políticos. Essa estratégia busca relativizar determinados consensos sobre proteção de liberdades individuais na Argentina para, inclusive, viabilizar aumentos autoritários de repressão de movimentos sociais (que certamente vão resistir a essa agenda ultraliberal e neoconservadoras) e de autoritarismo de Estado, em nome da proteção dessa “liberdade”.
APONTAMENTOS FINAIS
Nesse sentido, Milei pode ter um papel importante de ser o principal porta-voz da extrema direita mundial na América do Sul, dando fôlego e articulação para movimentos desse campo no continente. O convite de Milei à família Bolsonaro para ir à posse, a perspectiva de privilegiar a política externa com Estados Unidos e Israel e a força de ser um país grande na América do sul dão ânimo para os movimentos de extrema direita no continente.
O dilema da Argentina é sobre as nossas veias abertas, é uma disputa geracional e das crises do capitalismo. Massa não era uma alternativa anticapitalista, era uma alternativa dentro de uma sociedade que vê engendrar dentro de seus próprios fracassos, uma ameaça fascista. E é assim, com particularidades e diferenças, que uma disputa mundial tem um lugar próprio na Argentina. As reações dos movimentos sociais a essa vitória já aparecem e o cenário que se avizinha é de intensificação da luta social e da resistência. Portanto, a profundidade das mudanças que produzirá Milei permanece em disputa.
Julia Almeida V. da Silva, pesquisadora, realizou trabalho de campo na Argentina sobre as eleições e é autora do livro “A militarização da política no Brasil contemporâneo” (Ed. Alameda, 2023), doutorada em Direito pela USP, mestre em Direito pela UFRJ, pesquisadora do DHCTEM/USP e NEV/USP e professora na Anhembi Morumbi/SP.