NOTAS SOBRE 1968
O que impressiona nos anos 1960 é a disseminação, a amplitude e a intensidade dos movimentos sociais e políticos
Daniel Aarão Reis, A terra é redonda, 13 de outubro de 2021
As datas redondas têm quase imposto uma reflexão sobre processos sociais considerados relevantes. Na contracorrente, surgem também críticas à febre das comemorações.
Entretanto, a opção de evitar os debates associados às comemorações pode não ser boa conselheira, eis que as batalhas de memória, não raro, são tão ou mais importantes quanto os objetos a que se referem, porque têm a capacidade de reconstruí-los ou remodelá-los, confirmando-se o velho aforisma de que a versão vale mais do que o fato, sobretudo quando não há consenso sobre as evidências disponíveis. Alguns inclusive pretendem, na vertigem dos relativismos, que a versão é o próprio fato, na medida em que a ele se sobrepõe, modificando os contornos e conferindo sentido às ações empreendidas no passado. Segundo esta orientação, os fatos dependeriam das versões e não travar os debates sobre elas seria abandonar os fatos à própria sorte ou ao controle dos que imaginam deles se apropriar.
Trata-se portanto de assumir os riscos inerentes ao exercício das comemorações, sobretudo quando somos críticos à tendência a comemorar no sentido usual da palavra, de celebrar acriticamente uma data ou um processo histórico. Nas celebrações, como se sabe, tendem a desaparecer as contradições e as disputas, e a história é narrada, segundo as conveniências das circunstâncias, e/ou dos celebrantes, ou dos valores dominantes. Pode acontecer com os chamados veteranos, convertidos em ex-combatentes, obrigados a conviver com os avatares inevitáveis deste tipo de situação. Mas pode acontecer também, em chave negativa, com os que desejam se livrar de acontecimentos considerados indesejados. Estes se dedicam a celebrar, não a vigência de algo, mas o seu desaparecimento. E isto se aplica a processos mais recentes ou mais remotos.
Sustento a possibilidade de comemorar (relembrar juntos) sem celebrar, o que, de modo algum, significa, como se verá, que pretenda entrar no debate sem premissas ou pontos de vista determinados.
1.
O que impressiona nos anos 1960, e especialmente em 1968, é a disseminação, a amplitude e a intensidade dos movimentos sociais e políticos. Um pouco por toda a parte, e com diferentes motivações, houve embates e lutas sociais e políticas, de diferentes naturezas.
Nos Estados Unidos, apareceram distintos movimentos com força imprevista: jovens, contra a guerra do Vietnã; mulheres, pela emancipação feminina; negros e chicanos, por direitos civis e políticos; gays, pelo direito de exercer livremente suas preferências sexuais; povos originários, afirmando demandas identitárias. Eram novos atores que se apresentavam na cena política com demandas e reivindicações próprias, muitas das quais ignoradas ou subestimadas pelos partidos e sindicatos tradicionais[i]. Vale registrar que algumas organizações tomariam, em 1968 e nos anos seguintes, o caminho da luta armada contra o poder[ii].
Na América Latina[iii], destacaram-se, entre muitos outros, os conflitos que tiveram lugar no México, na Argentina e no Brasil[iv]. Tiveram como protagonistas principais estudantes universitários e secundaristas, mas ganhariam também expressão entre as camadas populares urbanas. Os dois últimos países conheceriam, nos anos seguintes, um processo de guerrilhas urbanas e de tentativas de focos guerrilheiros rurais. Associado a este processo, e numa outra dimensão, permanecia vivo o mito do Che Guevara e a saga guerrilheira inspirada e estimulada pela revolução cubana, vitoriosa em 1959[v].
No ocidente da Europa, destacaram-se os movimentos na França, muito intensos, embora condensados no tempo (maio-junho de 1968), mobilizando estudantes universitários e uma greve geral, que chegou a reunir entre 8-10 milhões de trabalhadores assalariados; na República Federal Alemanha/RFA, destaque ainda para os estudantes; e na Itália, uma combinação de greves operárias e lutas estudantis. Nestes dois últimos países, registre-se o aparecimento, nos anos seguintes, de uma onda de guerrilhas urbanas, sobretudo na Itália.
Na então chamada Europa Oriental, houve movimentos sociais na Polônia, protestos de intelectuais e de estudantes em outros países e, em particular, um amplo processo de reformas na Tchecoslováquia. Iniciado em janeiro de 1968 no âmbito do próprio partido comunista, o processo ganhou força e expressão social desenhando a perspectiva de um socialismo de “rosto humano”. Durou pouco, sufocado pela invasão soviética, em agosto de 1968[vi].
No outro extremo do mundo, na China, desde o segundo semestre de 1965, desencadeava-se a chamada grande revolução cultural proletária. Mobilizando fundamentalmente estudantes mas, em algumas cidades, como Xangai, também trabalhadores de diversos setores, o processo questionaria em profundidade a ordem socialista existente e seus padrões de organização política e alcançaria um auge na virada de 1966 para 1967 com a proclamação da Comuna de Xangai. No entanto, apesar de experiências inovadoras nos campos da educação e da organização do trabalho, o movimento revolucionário recuou e, já em 1969, com a reorganização do Partido Comunista Chinês, pode ser considerado encerrado[vii].
Outro polo revolucionário na Ásia era representado pelo Vietnã. Depois de se bater contra os japoneses (1941-1945) e os franceses (1946-1954), e vencê-los, os vietnamitas, desde 1960, iniciaram uma terceira guerra de guerrilhas para garantir a independência e a unificação nacionais. A partir de 1964-1965, a intervenção dos EUA se tornaria um fator relevante e a guerra do Vietnã ocupará gradativamente o proscênio das relações e das mídias internacionais.[viii]
Nesta brevíssima resenha, constata-se a amplitude geográfica e a diversidade política, econômica e social dos regimes alcançados pelo terremoto dos anos 1960. Foram atingidos países capitalistas e socialistas, regimes democráticos e ditatoriais, sociedades desenvolvidas e ainda em desenvolvimento (na época, eram chamadas sem eufemismos de “subdesenvolvidas”).
2.
Por que os anos 1960? Por que exatamente o ano de 1968?
A rigor, como já mostraram vários estudiosos[ix], há um processo histórico mais amplo no qual o ano de 1968 se insere, propondo-se diferentes “grandes conjunturas” para compreendê-lo melhor. Como se pode observar na resenha acima, houve sociedades em que a temperatura mais quente – social e politicamente – elevou-se em anos anteriores (China e EUA) ou atingiu seu clímax posteriormente (Argentina e Itália) ao ano de 1968.
A simultaneidade dos processos evocou a “primavera dos povos”, de 1848[x], em escala ainda maior, mas cumpre não perder de vista, para além da inegável internacionalização dos conflitos, o seu caráter especificamente nacional, cujas raízes precisam ser elucidadas, evitando-se aproximações uniformizadoras de uma diversidade que não poderia ser subestimada (M. Ridenti, 2018).
Querer descortinar melhor as circunstâncias dos conflitos não significa aprisionar a história em determinações estruturais, nem anular as margens de liberdade dos movimentos sociais e de suas lideranças, assim como a especificidade de cada processo ou acontecimento. Não se trata igualmente de recusar a imprevisibilidade da história humana, mas é inegável que os anos 1960 se inserem – e anunciam – um período de mudanças vertiginosas, suscitadas por uma grande revolução científica tecnológica, cujo dinamismo permanece presente até os dias atuais, mudando radicalmente a paisagem das sociedades humanas em todos os níveis: cultura, política, economia, sociedade.
À “civilização fordista”, proposta em fins do século XIX, e que, em seus termos, também alterou profundamente as sociedades humanas da época, alcançando um momento de apogeu nos anos 1940/1950, vai se seguir uma outra revolução que fez emergir a “cultura-mundo”(J.F. Sirinelli, 2017), a “world history”, o “apequenamento do mundo” ou a “aldeia global” (M. McLuhan) marcados pela simultaneidade e pela instantaneidade[xi].
Abriram-se, desde os anos 1960, tempos de instabilidade, as instituições e corporações centralizadas, verticais e piramidais começaram a ruir, mas não seria, como alguns imaginaram, uma implosão rápida e catastrófica. Como eram muito densas e pesadas e eram diversos os interesses nelas investidos, seus escombros continuam caindo, até hoje, sobre as sociedades existentes. Basta observar os partidos e os sindicatos, filhos diletos do mundo da segunda revolução industrial, que monopolizavam a representação dos interesses políticos e sindicais e que passam, há décadas, por uma profunda crise estrutural, não mais capazes de dar vida à voz, às demandas e aos sentimentos das populações concernidas, mas, ainda assim, conservando importância no jogo político institucional.
Estes processos de transformação incidiram também em mudanças nas relações entre os indivíduos e o tempo. Reinhart Koselleck e François Hartog chamaram a atenção para o fenômeno, ao propor que as concepções de tempo têm igualmente uma história. Enquanto no Ancien Régime, prevaleciam noções que tratavam indistintamente o passado, o presente e o futuro, sendo o futuro uma mera projeção do passado, a partir das grandes revoluções atlânticas de fins do século XVIII (americana e francesa), como observou H. Arendt, estas noções alteraram-se radicalmente: o futuro seria o aperfeiçoamento do passado (conceito de progresso), sendo as revoluções equiparadas a saltos para o desconhecido. Já no quadro da revolução científico-tecnológica a partir dos anos 1950/1960, o presente amplia-se, englobando o passado e o futuro, configurando-se como “presentismo”[xii].
Assim, numa perspectiva mais ampla, os movimentos dos anos 1960 teriam sido precursores dos terremotos que apenas então iniciavam seus trabalhos e que permaneceriam – até hoje – chacoalhando e convulsionando o mundo projetado e construído a partir de fins do século XIX. Exatamente por isso é que as questões suscitadas naqueles anos permanecem vivas e atuais, porque a grande conjuntura e a revolução científica e tecnológica que condicionaram aqueles movimentos continuam se desdobrando com notável dinamismo.
3.
Os anos 1960 foram marcados por propostas de mudanças – e eles próprios foram expressão de mudanças. Reformas e revoluções estavam na ordem do dia. Na política, na sociedade, nos costumes, na economia. Trata-se de meditar sobre as questões em jogo, as disputas e, em especial, sobre os paradigmas de mudança social que suscitaram apoios, resistências e manifestações favoráveis e contrárias.
Neste caldeirão é interessante refletir sobre a tradicional díade esquerdas-direitas[xiii]. Tradicionalmente às primeiras – às esquerdas – cabia lutar pelas mudanças, na perspectiva da igualdade social, enquanto às direitas, sempre conservadoras, cabia encarnar o papel da antirreforma e das concepções naturalizadas das desigualdades sociais. No quadro da revolução científico-tecnológica e dos movimentos dos anos 1960, sem perder de todo o valor operacional e explicativo, a díade já não mais seria capaz de dar conta da complexidade das questões em jogo e dos movimentos das forças políticas.
Com efeito, na defesa da Ordem e das tradições, seria possível encontrar forças de direita e de esquerda. Vamos chamá-las de forças frias ou tradicionais[xiv].
As mais notórias foram indubitavelmente as direitas que se poderiam chamar de passadistas ou arcaizantes. São as forças reacionárias no sentido próprio da palavra, forças frias por excelência. Exasperaram-se frente aos movimentos de 1968, sobretudo em relação às propostas de revolução dos costumes. Acreditavam em valores que estavam sendo profundamente questionados. Temiam pela existência de uma sociedade que ruía. Sentiam liquefazer-se o solo onde pisavam. Sem bússola, erravam sem orientação no tumulto dos protestos. Aquilo estava além da imaginação, não podia ser tolerado. Combateram com a última energia a “bagunça” proposta pelas alternativas que vieram à tona nos anos 1960.
Daí porque estas forças detestam até hoje o ano de 1968. Nas comemorações do ano, estas gentes não comparecem, querem mais é esquecer.
No entanto, provavelmente por terem sido forças frias no contexto dos embates travados, no contexto de um ano quente, e vencedoras, não atraindo a simpatia que os vencidos costumam suscitar, sobretudo quando estão definitivamente vencidos, tais propostas não têm sido estudadas com a importância merecida.
Enquanto seus fundamentos sociais e históricos não forem suficientemente evidenciados, o ano continuará relativamente incompreendido, porque suas ações e reações determinaram, em grande medida, as derrotas dos que pretendiam mudar o mundo[xv].
À esquerda, porém, também apareceram forças de defesa da tradição e da ordem, lutando pela manutenção de suas posições e pela conservação de situações que lhes conferiam prestígio e força.
No mundo capitalista, foram esquerdas frias, tradicionais, e salvo exceções, o movimento comunista internacional, em suas diferentes tendências e, também em suas diversas faces, a social-democracia internacional. Na América Latina, o movimento nacionalista tradicional também se ergueria contra a maré montante das propostas de mudança e dos novos métodos de luta, o que não impediria que setores minoritários se incorporassem a guerrilhas urbanas e rurais[xvi].
Comunistas, socialistas e nacionalistas, na Europa e na América Latina, imaginando-se direções/vanguardas políticas, foram surpreendidos pela irrupção e pela dinâmica dos movimentos. Catando cavaco, correram atrás, tentando segurar o ímpeto ou/e canalizá-lo, ou/e controlá-lo. Segundo as circunstâncias, chegaram a desempenhar algum papel, quase sempre moderador em relação às propostas e às paixões, caracterizadas como esquerdistas, sectárias, porra-loucas. Não sem razão, respiraram aliviadas quando a ondas de choque tenderam a refluir. Emblemática, desde ponto de vista, seria a atitude dos socialistas e dos comunistas franceses que, em maio-junho de 1968, fizeram o possível para canalizar os movimentos para vias institucionais, moderando-os e neutralizando-os.
Da mesma forma situaram-se os regimes socialistas vigentes. A repressão desencadeada contra a “primavera de Praga” é a maior evidência do comportamento frio e conservador destes regimes. Temiam o contágio das propostas reformistas e as reprimiram com violência. Na Tchecoslováquia, cuja “Primavera” teve início no mês de janeiro de 1968, o processo democratizante durou pouco tempo: em agosto, as tropas do pacto de Varsóvia, lideradas pela União Soviética, invadiam o pequeno país e puseram fim a uma experiência que, apesar de começada pelo alto, estendia-se pela sociedade, mobilizando as gentes, fazendo-as propor e construir formas autônomas de organização política e social. Uma chance histórica perdida, com profundas consequências a longo prazo. Assinale-se que a invasão soviética mereceu elogios de Fidel Castro e também o apoio, ou o silêncio omisso, dos demais Estados socialistas. Apoio e omissão compartilhados pelos partidos comunistas em todo o mundo, com a notável exceção do Partido Comunista Italiano.
Na Polônia e em outros estados socialistas, e até na União Soviética, onde quer que se encontrassem, foram igualmente atacados grupos de dissidentes, mesmo que suas propostas se limitassem a uma defesa tímida dos direitos humanos.
Na China, depois de alguma hesitação, e assustados diante das tendências antiautoritárias dos movimentos rebeldes que dissolviam as estruturas partidárias e queimavam os arquivos da polícia política (Comuna de Xangai), trataram de canalizar os protestos e os questionamentos para o leito da reorganização do Partido Comunista e do culto à personalidade de Mao Dze-Dong. Onde isto não foi possível, reprimiram com violência, desqualificando as tentativas revolucionárias como “esquerdistas” e “cúmplices dos inimigos capitalistas”.
Desde então, tais esquerdas frias permanecem apresentando os movimentos de 1968 como uma febre inconsequente, um acidente de percurso, algo a ser riscado do mapa e do calendário.
4.
Entre as tendências favoráveis às mudanças, forças quentes, o quadro não seria menos diverso e complexo. Ao longo dos anos 1960, algumas tenderam a ancorar-se no passado, enquanto outras foram capazes de abrir horizontes e perspectivas de futuro.
Trata-se de uma questão chave, não trabalhada com o devido aprofundamento ou qualificação. Os movimentos que se desencadearam foram extremamente diversos. Ocorridos ao mesmo tempo, às vezes nos mesmos espaços, inspiravam-se em diferentes paradigmas de mudança social, com distintas propostas, feições e dinâmicas internas.
Em primeiro lugar, caberia voltar a considerar a guerra do Vietnã.
Para qualquer observador, mesmo para o mais desatento, seria impossível negar a centralidade das lutas revolucionárias de libertação nacional, entre as quais, em lugar de destaque, a guerra do povo do Vietnã.
Estava em todos os noticiários e mídias, nos cartazes, em cada uma e em todas as passeatas. A guerra entrava literalmente no cotidiano de todos e de cada um. Assim, era muito difícil se dizer indiferente. Ou se era favorável à intervenção armada dos EUA, ou se era a favor da luta de libertação nacional dos vietnamitas. Uma formidável polarização.
Nos EUA, em especial, a questão do Vietnã foi decisiva na articulação e no desencadeamento dos movimentos sociais contra a guerra. Jovens, e particularmente os jovens negros, começaram a fazer valer suas vozes de protesto[xvii].
Depois da ofensiva do Tet, em janeiro/fevereiro de 1968, evidenciando a impossibilidade de uma vitória militar estadunidense, as manifestações contra a guerra ganharam dinamismo. O presidente dos EUA, Lindon Johnson, foi então obrigado a desistir da reeleição, abrindo-se quase imediatamente negociações de paz, em Paris (maio de 1968). Os revolucionários ainda não haviam ganho a guerra, o que só aconteceria em 1975, mas os EUA já a haviam perdido.
A guerra do Vietnã não merece destaque apenas pelos combates intensos que se travavam naquela região do mundo e pela polarização que suscitava, ou pelos efeitos que produziu, sobretudo, como já foi referido, nos EUA.
Ela era típica também do conjunto dos movimentos nacionalistas revolucionários que se desdobravam no mundo desde o fim da II Guerra Mundial, sobretudo aqueles com propósitos socialistas ou socializantes. E, mais importante, para nossos propósitos, típica de um determinado paradigma de mudança social, herdado das revoluções russas – a revolução catastrófica, empreendida através de insurreições ou/e guerras apocalípticas, visando tomar o poder do Estado para, através dele, realizar profundas reformas sociais, econômicas e culturais, entre elas, a construção do chamado Homem Novo[xviii]. Neste sentido, a guerra revolucionária vietnamita ocorre na esteira, e no contexto, das revoluções vitoriosas chinesa (1949) e cubana (1959) e argelina (1962). Na Ásia e na África, em particular, mas também em terras de Nuestra America, múltiplos movimentos questionavam a preponderância das potências europeias e dos EUA que, em muitos momentos e lugares, tentavam se substituir àquelas, embora exercitando outras formas de dominação. Desmoronavam-se os velhos impérios coloniais, considerados até muito recentemente como inexpugnáveis. Desafiavam-se as políticas neocoloniais e a dependência em todas as suas formas.
Neste enfoque, a luta dos vietnamitas era também emblemática, porque inserida na corrente nacionalista mais radical, comprometida com a construção de projetos de revolucionarização das sociedades em todos os níveis. Não queriam apenas a liberdade, queriam a libertação, ganhando este último termo uma conotação revolucionária no sentido da associação proposta entre independência nacional e construção do socialismo no quadro de ditaduras políticas revolucionárias.
O Vietnã na Ásia, Cuba nas Américas e a Argélia na África. Três revoluções vitoriosas, através de guerras catastróficas. Pequenos povos que haviam lutado de armas nas mãos contras as grandes potências do mundo de então. E haviam vencido, construindo ditaduras políticas revolucionárias. Não haveria ali um caminho a indicar que valia a pena ser ousado? Mesmo que já aparecessem sinais sombrios de derrotas (o golpe que derrubou Ben Bella, em 1965; a morte de Che Guevara, em 1967), nem sempre, aliás, devidamente avaliadas?
Estas lutas pareciam abrir amplos horizontes de futuro. As tentativas de formar organizações revolucionárias internacionais, como a Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina (OSPAAAL), em 1966, e a Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), em 1967, para viabilizar a articulação das lutas revolucionárias nos três continentes pareceram, então, promissoras[xix]. Mas não foi o caso.
A revolução vietnamita, embora vitoriosa em 1975, não abriu, com ela, nenhum novo ciclo revolucionário, segundo os padrões que foram os seus, como no caso das revoluções cubana e argelina.
Ao contrário do que se imaginou nos anos 1960, estas vitórias, ao invés de abrir, fechavam um grande ciclo, o das revoluções catastróficas. As grandes transformações por vir já não se dariam nos padrões estabelecidos em 1917.
A situação atual destas três sociedades o evidencia. Muito se poderá dizer que o fato se deveu ao isolamento em que ficaram, entravadas por circunstâncias hostis. Mas será preciso também considerar as implicações dos processos de guerra, de onde emergiram estas revoluções vitoriosas e a qualidade de suas propostas. Sem falar das ditaduras revolucionárias, comuns às três, com seus Estados hipertrofiados, partidos únicos, predominância das lideranças militares, perseguição implacável a todo tipo de oposição política[xx].
Assim, o nacionalismo revolucionário dos anos 1960 e 1970, que então parecia tão promissor, perdeu muito rapidamente sua capacidade de sedução política e de mobilização social. Parecendo na época inovador, tinha mais âncoras no passado do que se poderia imaginar. E foi no passado que estas revoluções de libertação nacional se aninharam, sem abrir perspectivas de futuro.
5.
Enquanto tais paradigmas de mudança social, até então hegemônicos, tendiam a “envelhecer”, outros, ao contrário, embora já existentes, ganharam força e tenderam a se afirmar. Destacaram-se, em muitos momentos e lugares, no quadro de alternativas radicais de construção democrática. Criticavam simultaneamente os limites do liberalismo democrático e o autoritarismo das esquerdas frias, conservadoras. Repudiavam as rotinas tradicionais do liberalismo democrático, quase que exclusivamente centrado em calendários e jogos político-institucionais onde acaba primando, apesar das boas intenções, o cretinismo parlamentar.
Arenas fechadas, debates previsíveis, moderação extrema de propósitos, sentido corporativista da mal chamada classe política, distância insuperável entre representantes e representados, distanciando-se os primeiros em relação aos segundos, os quais são apenas consultados em momentos eleitorais. A rigor, a democracia representativa, apoiada em partidos e sindicatos, embora produto de grandes lutas sociais travadas a partir da segunda metade do século XIX, já se encontrava historicamente minada por ser expressão de um mundo em declínio. Vem dos anos 1960 e 1970 um processo lento de desgaste deste modelo de democracia, cuja crise é evidenciada pelas massas, cada vez mais volumosas, de votos brancos, nulos e abstenções. Sobretudo entre os jovens, é quase universal o desencanto pelas tradições da democracia representativa, desafiada a se reinventar, se quiser sobreviver.
Foi neste sentido que trabalharam os movimentos renovadores dos anos 1960 e isto se tornou evidente tanto no mundo capitalista quanto no mundo socialista.
Propostas democráticas radicais, alternativas, surgiram na Europa, nos EUA, e mesmo no Brasil, sobretudo nos meios estudantis, mas também, dependendo das circunstâncias, formuladas por operários em luta, como ocorreu, às vezes, na França, na Itália e na China. O que aproximava estes experimentos democráticos realizados em latitudes tão distintas?
A formosa ideia da autonomia dos movimentos sociais em relação ao Estado e aos partidos. Críticas radicais às distâncias que se cavavam, entre dirigentes e dirigidos, entre representantes e representados. Formas participativas de democracia. Instituições de controle sobre os representantes e sobre as elites dirigentes. Uma profunda desconfiança quanto à delegação de poderes. A vontade, que parecia imensa, em tomar os freios dos próprios destinos nas mãos. Diretamente. Sem intermediários.
Ensaios, não mais do que ensaios, carecendo ainda de inventários rigorosos. Experiências derrotadas, mas não eliminadas da História. Se também elas tinham referências no passado, o que as distingue são as promessas de futuro, e por isso têm despontado sempre que se acirram as contradições sociais e as gentes voltam a se interessar pela Res Publica e pelo destino da Cidade.
Tais críticas apareceram igualmente ao padrão do que viria a ser chamado, anos mais tarde, de socialismo realmente existente. Intitulados de ditaduras do proletariado, estes regimes, embora revolucionários, de proletários não tinham nada. Eram, no melhor dos casos, ditaduras de partido único, no pior, o que desgraçadamente não era tão raro, ditaduras de líderes carismáticos e suas nuvens de aderentes. Apoiados pelos povos em virtude das reformas sociais e econômicas que haviam sido capazes de empreender, modelavam instituições liberticidas, transformando oposicionistas em dissidentes, para os quais eram reservados o exílio, as cadeias e os asilos psiquiátricos.
Incorporando estas críticas, dois casos tornaram-se emblemáticos – a primavera de Praga e os primeiros movimentos da revolução cultural na China.
Na Tchecoslováquia, como referido, tratava-se de reformar o modelo soviético até então prevalecente, baseado na centralização do poder e na estatização da economia, na repressão política e na uniformidade ideológica, substituindo-o por uma sociedade socialista democrática e plural.
Na China, no âmbito da revolução cultural, movimentos sociais fugiram do controle do Partido Comunista e construíram, em determinados momentos (Comuna de Xangai), formas de organização inovadoras, fundamentadas em princípios de democracia participativa e que recuperaram, em distintos momentos, referências avançadas por pensadores favoráveis à democracia direta. Sem falar na crítica contundente às tradições de mando vertical e descontrolado, presentes na China antiga e mantidas pelo Partido Comunista, com outras feições, mas características semelhantes, depois do triunfo da revolução de 1949.
Ainda não suficientemente estudados, estes movimentos, depois de anular em muitas cidades a preponderância do Partido Comunista, não foram, porém, capazes de construir sólidas alternativas. Ao contrário, perderam-se em processos (auto)destruidores que acabaram proporcionando condições à restauração da Ordem revolucionária ditatorial.
Assim, as propostas democráticas radicais pretenderam construir, simultaneamente, alternativas ao liberalismo democrático e às ditaduras revolucionárias. Autonomia, participação e controle eram seus principais motes. Desafios de difícil construção e realização, a exigir tempo histórico de maturação.
Em medida diversa, os chamados “novos movimentos sociais” dos anos 1960 recuperaram estas referências.
Como tudo o que surge na História, tinham raízes no passado, mas se apresentaram com força inusitada em 1968 e não mais sairiam de cena nas décadas seguintes. Nos EUA principalmente, mas também na Europa Ocidental, e um pouco por toda a parte, tais movimentos articulavam-se em torno de programas específicos, referidos a suas inserções particulares na sociedade, devidas a aspectos próprios, que os diferenciavam de conjuntos maiores.
Assim, entre outros, as mulheres e os movimentos feministas, a segunda metade do céu, segundo a poética metáfora chinesa. Os negros, os chicanos e os povos originários nos EUA. Os movimentos gays. De início chamados de “minorias”, termo nem sempre adequado, questionavam antigos programas e formas de fazer política e permaneceram algum tempo (ou muito tempo, segundo as condições de tempo e lugar) incompreendidos ou/e hostilizados por organizações políticas de direita e de esquerda.
As direitas passadistas os detestavam pelo caráter ousado de suas reivindicações. Simplesmente não admitiam considerá-las. Entretanto, as direitas modernizantes, de que falaremos a seguir, dispuseram-se, em não pequena medida, a incorporar aspectos importantes dos programas avançados por mulheres, negros e gays, entre outros. O fenômeno só acirrou as prevenções e resistências das esquerdas tradicionais que os acusavam de divisionistas, eis que tais movimentos privilegiavam programas que lhes pareciam demasiadamente particularistas.
Apesar das contradições, os novos movimentos firmaram-se como perspectivas de futuro. Extraíam sua força de reivindicações muito concretas, que diziam respeito ao cotidiano das pessoas. Por isso se disseminaram pelo mundo, conquistando força e amplitude, realizando, em alguns lugares, parte considerável de seus programas e remodelando substancialmente a sociedade contemporânea. Ganharam um lugar ao sol e não mais o perderiam, arrastando a reboque direitas e esquerdas e se tornando atores de primeira grandeza do jogo político atual.
Finalmente, mas não menos importante, seria preciso também mencionar as propostas de revoluções dos costumes e dos comportamentos cotidianos. Intimamente associadas aos novos movimentos sociais, mas com autonomia própria, tais referências também contribuíram para modificar tendências e características das sociedades contemporâneas.
O questionamento das rígidas hierarquias que marcavam as relações sociais em todos os níveis; a ambição de conferir um mínimo de coerência na relação entre o público e o privado; entre a teoria e a prática; entre o discurso e a ação. A crítica às noções consagradas de representação. O questionamento da importância decisiva do poder político central em proveito de novas ênfases em mudanças aparentemente pequenas, moleculares, mas sem as quais, como se constatava na análise do socialismo realmente existente, de nada valiam as utopias grandiloquentes, eis que perdiam substância na medida mesma em que eram incapazes de transformar a vida imediata das pessoas. Como se o aqui e o agora merecessem prevalecer em relação a um futuro anunciado como glorioso, mas tão distante, que se tornava intocável pelas pessoas comuns em suas vidas correntes.
As propostas revolucionárias de mudança dos costumes não se realizaram plenamente. Longe disso. Mas registraram avanços consideráveis. E mais importante: a força bruta da reação (de direita e de esquerda) não conseguiu eliminá-las da cena política. Com efeito, é perceptível como se instalaram na agenda dos debates políticos das sociedades contemporâneas.
Todas estas forças desejosas de mudança – quentes – não se guiariam mais pelas referências e paradigmas das revoluções russas – a tomada violenta do poder central como condição para a realização das mudanças revolucionárias – mas conceberiam estas últimas como possíveis de realização através mudanças/revoluções moleculares, pela mudança das consciências e pela conquista progressiva de direitos.
Em suas perspectivas, ainda tateantes, as rupturas no sentido de uma sociedade alternativa poderiam – e deveriam – acontecer de forma gradual, diluindo-se pretensas muralhas entre reformas e revolução[xxi]. Embora muitos fossem declaradamente pacifistas, o recurso à violência não seria radicalmente descartado por todos, mas, quando era considerado, o tinham como recurso in extremis, provisório, e não como chave fundamental para a abertura das portas do futuro.
Em visita ao Harlem, em 2006, Fidel Castro reconheceu, com palavras próprias, a emergência e a força de um novo paradigma de mudança social. Disse ele, então, “Um novo movimento de massas está se formando com tremenda força. Já não será a velha tática – de estilo bolchevique. Nem sequer o nosso estilo. Porque é outro mundo – diferente. Estamos passando de uma etapa onde as armas podiam resolver a outra etapa na que a consciência das massas, as necessidades da história e as ideias, são as que farão o mundo mudar”.[xxii]
6.
Na apresentação do conjunto de forças quentes dos anos 1960, entretanto, ainda haveria a mencionar uma força nem sempre considerada ou avaliada com adequação: queremos nos referir às direitas modernizantes, liberais.[xxiii] Eram flexíveis e viram as mudanças com nuanças. Porque sintonizadas, por interesse próprio ou por compartilhar valores, ao que havia de essencial na revolução científica e tecnológica em curso, se mostrariam, no futuro mais abertas a certas, e importantes, transformações no plano da economia, da política, dos costumes e dos comportamentos[xxiv]. No entanto, contra as turbulências imediatas, no próprio ano de 1968, foi comum a estas forças elaborarem alianças provisórias com as direitas frias, passadistas e arcaizantes, e até mesmo com as esquerdas conservadoras, também frias , como no caso emblemático do maio-junho francês, já considerado. Tratava-se, naquele momento, de erguer um dique à maré montante dos questionamentos à Ordem e vencer os perigos que se acumulavam. Assim, pode-se dizer, sem querer formular amálgamas injustificados, ao contrário, marcando as diferenças de motivações e de propósitos, que as direitas (passadistas e modernizantes) e as esquerdas tradicionais, em não poucos momentos, deram-se as mãos na contenção ou na canalização institucional dos movimentos de 1968.
Entretanto, importa enfatizar que as direitas modernizantes souberam, no poder ou fora dele, em anos seguintes, incorporar muitas das demandas formuladas pelas contestações apresentadas pelos anos 1960.
Outro aspecto a ser destacado, para evitar simplificações, é que, no fluxo extraordinariamente complexo dos movimentos e lutas sociais e políticas da época, os diferentes paradigmas descritos podiam aparecer de forma entrelaçada. A quem visite a época, através de documentação apropriada, de filmes e canções, das diversas formas midiáticas, será comum encontrar, misturadas, entrelaçadas, referências aos paradigmas das revoluções catastróficas e violentas, de um lado, e, de outro, aos das revoluções moleculares, baseados na mudança das consciências e na conquista progressiva – e democrática – de direitos.
Assim, a solidariedade à guerra do Vietnã e à saga do Che Guevara (processos identificados com os modelos propostos pelas revoluções russas) era frequentemente manifestada por movimentos estudantis, democráticos, feministas, cujo escopo, porém, era radicalmente distinto. Da mesma forma, o grupo Panteras Negras, partidários da autodefesa armada, não escondia a admiração por Martim Luther King, envolvido num outro tipo de luta – a da conquista pacífica de direitos civis e políticos. Na solidariedade não havia propriamente identidade de propósitos, mas compartilhamento de uma mesma rejeição à opressão e à exploração ressentida como inaceitável por todos. Eram forças quentes, pelas mudanças, mas sob coordenadas e concepções distintas.
7.
Ainda para tornar o quadro mais complexo, como complexas são sempre a vida e a história, importaria considerar as forças frias e quentes, para além de um esquema binário e simplista. Dois exemplos, entre outros: houve forças frias, em determinados momentos, que se mostraram capazes de incorporar mudanças, ao menos em termos propagandísticos (apoio de partidos comunistas a movimentos de libertação nacional ou/e à guerra dos vietnamitas); houve forças quentes que se aliaram à defesa da Ordem, em certas situações (liberais franceses em aliança com direitas conservadoras para conter o fluxo dos movimentos do maio-junho francês).
Assim, a proposta da díade forças quentes-frias deveria ser tomada como referência para compreender os processos históricos em seu conjunto e não para formular esquemas que, tomados rigidamente, seriam incapazes de compreender o fluxo rico e contraditório dos acontecimentos[xxv].
Considerado nestas múltiplas dimensões e propostas, percebe-se que os anos 1960, e especialmente o ano de 1968, apesar dos 50 anos dele decorridos, ainda interpela os contemporâneos, demandando inventários críticos, suscitando questões. É necessário estudar a força dos que venceram.
As direitas passadistas, reacionárias no sentido literal do termo, recusam-se a passar e ainda aparecem no cenário político com seus ressentimentos atávicos, tentando segurar e impedir o que muda, o que renova. Basta ver o governo Trump e seus inimigos íntimos do Estado Islâmico para constatar a força dos que ainda só sentem náuseas em relação aos fenômenos próprios da modernidade. Infelizmente atraem pouco a pesquisa acadêmica, o que é lamentável, porque são forças ainda presentes e extremamente perigosas.
As direitas modernas também mereceriam maior atenção. Ganharam a parada em 1968 e evidenciaram uma notável capacidade de adaptação, inclusive do ponto de vista da incorporação de aspectos importantes das propostas dos novos movimentos sociais e daquelas comprometidas com a revolução dos costumes e dos comportamentos. Aglutinadas em torno de programas neoliberais, partidárias da globalização à outrance, desprezando os valores da igualdade e da solidariedade, sua hegemonia e domínio constituem, sem dúvida, a principal barreira oposta às eventuais propostas comprometidas com a construção de um mundo democrático, livre e informado pelos valores da justiça social e do socialismo.
As esquerdas tradicionais também ainda marcam presença no cenário internacional, particularmente através da socialdemocracia na Europa Ocidental e Central, onde mais se consolidaram ao longo do século XX. Mas não fazem mais do que resistir, o que não é pouco na conjuntura atual, embora incapazes de apresentar alternativas futuras, o que não significa dizer que seriam sempre insensíveis a mudanças. O mesmo se pode dizer dos remanescentes dos movimentos comunistas do século XX. Ainda governam Estados (China, Vietnã, Cuba, Coréia do Norte) e organizam partidos relativamente fortes em alguns lugares, mas se alimentam mais das glórias do passado do que da capacidade de formular propostas sedutoras para o futuro.
Restam as demais propostas revolucionárias que adquiriram vigência em 1968. Em termos imediatos foram derrotadas, sem dúvida, mas não eliminadas, ao contrário, permaneceram vivas, ressurgindo, como a velha Toupeira de que falava Marx, sempre que se reconstituem processos de questionamento da Ordem. Não são catastróficas, mas suas propostas de mudanças moleculares e parciais não excluem rupturas, propondo-se a novas sínteses, reformistas revolucionárias.
Basta conferir os avanços efetivos da revolução molecular das mulheres, a (re) valorização e as conquistas inegáveis dos movimentos étnicos-nacionais, a disseminação progressiva do programa favorável às liberdades no plano comportamental, como, por exemplo, a liberdade de opção sexual, já consagrada e protegida juridicamente em muitos Estados. Também é possível estabelecer laços de continuidade entre os movimentos de 1968 e os que levaram à desagregação da União Soviética, sem falar das manifestações na Praça da Paz Celestial em Pequim, em 1989, as passeatas anti-globalização iniciadas em 1999, os movimentos autônomos dos povos originários da América andina, a guerrilha inovadora de Chiapas, os enfrentamentos de Oaxaca, no México,as propostas de certos segmentos no interior da onda nacionalista revolucionária na América andina e, não menos importantes, os movimentos democráticos que agitaram recentemente o mundo árabe (a “primavera” árabe).
Trata-se de considerar estas propostas. O que propuseram e têm proposto. O que fizeram e têm feito. O que se perdeu, o que se ganhou. O que ficou para trás, o que permanece. Até que ponto foram recuperadas pelas tendências conservadoras. Seus pontos fracos, visíveis na fragmentação de suas lutas. Seus desafios, sobretudo a necessidade de articulação entre os diferentes movimentos particulares. Seus aspectos fortes, enraizados em interesses cotidianos, que não se querem desconsiderados em nome de utopias épicas que nunca se realizam, e que são, ao contrário, validados pela medida com que foram capazes de mudar as sociedades. A que sínteses é preciso ainda chegar para resgatar, superando, experiências que tiveram sua importância, mas que precisam ser reelaboradas para continuarem abrindo perspectivas de futuro.
Neste quadro complexo, as comemorações de 1968, no sentido próprio do termo – recordar juntos – não carecem de celebrações, mas de debates, avaliações e inventários sobre estas questões, e que de preferência sejam controvertidos. Se servirem para isto, terão impedido, como querem alguns afoitos, o apagamento da memória. E terão oferecido, em honra às lutas travadas, uma contribuição válida, à altura do que merecem.
*Daniel Aarão Reis é professor titular de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor, entre outros livros, de A Revolução que mudou o mundo – Rússia, 1917 (Companhia das Letras).
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Notas
[i] Cf. T. Blanchette e R. Barreto (2018); A. Kaspi (1988); P. Berman (1988); B. Burrough (2015)
[ii] Entre os negros, destaque para os Panteras Negras e os Muçulmanos radicais, embora em grande parte dos casos, usavam a força armada apenas para a autodefesa.Cf. T. Blanchette e R. Barreto, op. cit.. Entre os estudantes, os Weathermen lutavam diretamente contra o poder político. Cf. R. F. de Sousa (2009)
[iii] O termo é usado apenas para facilitar a comunicação, pois se sabe que ele não abrange a complexidade étnico-racial do sub-continente que compreende, além dos povos originários e de povos de ascendência latina, populações provindas da África, Europa não-latina e Ásia.
[iv] Para o México, cf. L. Gonçalves (2018), H.G. Cantera (2017) e E. Poniatowska (1971); para o Brasil, cf. D. Aarão Reis (2008); para a Argentina, cf. J. Brennan (1993) e J.C. Cena (2000)
[v] Para a revolução cubana, cf. R. Gott (2006) e D. Aarão Reis (2010). Para a saga do Che e das guerrilhas latino-americanas, cf. J.L. Anderson (1997), M. Lowy (1999), Benigno (1996) e F. Tavares (2017)
[vi] Para a Polônia, cf. G. Mink (2008). Para a Tchecoslováquia, cf. G. Bischoff (2009)
[vii] Para a revolução cultural chinesa, cf. Hongsheng Jiang (2014) e R. MacFarquhar (1997).
[viii] Para a guerra do Vietnã, cf. J.H. Willbanks (2007); S. Karnow (1983) e M.A. Lawrence (2014).
[ix]Cf., entre muitos outros, M. Ridenti (2000 e 2018); Ph. Artières & M. Zancarini-Fournel (2015); P. Berman (1996); M. Margairaz e D. Tartakowsky (2010); A. Kaspi (1988); J. F. Sirinelli (2017) e P. Rotman (2008).
[x] As revoluções de 1848, a seu modo, também foram precursoras de processos que então apenas se esboçavam – a formação do proletariado urbano; o crescimento exponencial da importância das cidades; a unificação nacional da Itália e da Alemanha; o reforçamento dos nacionalismos na Europa e em todo o mundo. Tais processos, apesar das derrotas, a curto prazo, das revoluções, assim como ocorreu nos anos 1960, se afirmariam, porém, redefinidos, nas décadas seguintes. A título de curiosidade, registre-se que, do ponto de vista astrológico, há uma interessante coincidência entre os “mapas astrais” de 1848 e de 1968. Cf. Raquel A. Menezes: O que diziam os astros, in D. Aarão Reis, op. cit., 2008, pp 235-239.
[xi] J.F. Sirinelli, op. cit., registra acontecimentos de impacto mundial – o assassinato de J. Kennedy (novembro, 1963); a guerra do Vietnã (anos 1960), primeiro grande conflito fortemente mediatizado; a morte do Che Guevara (outubro, 1967) e, culminando a década, os passos do primeiro homem na Lua, Neil Amstrong (julho, 1969), cuja fala, inspirada, foi dirigida à inteira humanidade.
[xii] Cf. R. Koselleck, 2006 e F. Hartog, 2017. E H. Arendt, 2011. Devo estas observações a Natasha Piedras, 2018.
[xiii] Cf. N. Bobbio (1996).
[xiv]O termo tradicionais não está empregado aqui com conotação negativa ou pejorativa, apenas refere o fato de que dispunham da força conferida por um passado reconhecido de décadas. Tinham mais tradição, e o fato pode ser objeto de aferição objetiva.
[xv] As direitas passadistas ou arcaizantes continuam presentes nas atuais lutas políticas. Os surtos religiosos em toda a parte, ancorados em concepções religiosas ultraconservadoras, os movimentos racistas e anticosmopolitas, contra a diversidade e o pluralismo culturais , as gentes deslocadas e marginalizadas pela revolução científico-tecnológica, e não raro desprezadas pelas forças que se consideram “progressistas”, o eleitorado à procura de “salvadores da pátria” e de lideranças com “mão forte”, são evidências neste sentido.
[xvi] A rigor, o próprio Fidel Castro e o Movimento Revolucionário 26 de julho se inscrevem, até a tomada do poder, em 1959, e mesmo um pouco depois, no radicalismo de esquerda dos nacionalismos latino-americanos. Outros setores nacionalistas, em vários países, inclusive no Brasil, tomariam o mesmo rumo. Convém enfatizar a complexidade dos movimentos nacionalistas com suas diferentes alas e faces: de direita e de esquerda: arcaizantes e modernas.
[xvii]Martin Luther King, já em 1967, denunciaria a guerra do Vietnã como sorvedouro de vidas de jovens negros, mortos ali em proporção muito superior ao peso demográfico que tinham na sociedade estadunidense.
[xviii] Para as revoluções russas, cf. D. Aarão Reis (2017), M. Ferro (1967 e 2011) e M. Lewin (1985 e 2007).
[xix] Ambas reuniões se realizaram em Havana. Desde 1957, fundara-se, no Cairo, uma Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia e da África. Com a radicalização da revolução cubana e a liderança de setores mais radicais, integrou-se a América Latina, formando-se, com a OSPAAAL, um esboço de internacional revolucionária.
[xx]O caso de Cuba é emblemático. Os dirigentes políticos, civis, tornaram-se “comandantes”, militarizando-se o regime no quadro da ditadura política. Na Argélia também, a partir do golpe de 1965, assumiria Houari Boumediene, chefe do exército argelino.
[xxi] Nos anos 1980, apoiando-se em leituras de A. Gramsci, Carlos Nelson Coutinho proporia uma síntese entre os dois termos no que chamava de reformismo revolucionário, uma formulação bastante aproximada das propostas que estamos considerando. Cf. C. N. Coutinho, 1980.
[xxii]Cf.https://www.google.com/search?q=fidel+castro+voltando+ao+harlem&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=2ahUKEwj_zraQ1ffdAhWnpFkKHQrcD60Q7Al6BAgGEA0&biw=1280&bih=621. Consultado em 8 de outubro de 2018.
[xxiii] Cf. M. Margairaz e D. Tartakowski, op. cit., 2010.
[xxiv] Entre muitas lideranças políticas na época, duas poderiam ser destacadas: R. Kennedy, nos EUA; e Valéry Giscard d’Estaing na França.
[xxv] A conveniência desta observação foi proposta em debate por Marcelo Ridenti.