Prefácio do autor à edição inglesa do livro “Marx, o intempestivo”.
Daniel Bensaïd, Marxismo Revolucionário Internacional, 5 de maio de 2021
Este livro é resultado de um trabalho realizado durante os anos 1980. Sua versão francesa foi publicada em outubro de 1995, no mesmo ano em que seu livro gêmeo, A discordância dos tempos.[*] Nestes tempos de contrarreforma e de reação liberal, Marx havia se tornado para o senso comum midiático “um cachorro morto”. O que sobreviveu de marxismo foi cercado por todas as partes.
A releitura crítica de Marx representou então um ato de resistência, uma recusa de se resignar aos maus ventos, a decisão de pensar à contracorrente e a contrapelo, com a convicção de que uma crítica fundacional como a do Capital não poderia estar obsoleta. Porque a sua atualidade é a de seu objeto, de seu inimigo íntimo e implacável, o próprio capital, vampiro insaciável e fetiche autômato mais agressivo do que nunca.
Na primavera de 1848, um espectro assombrava a Europa: o espectro do comunismo. Um século e meio após tal proclamação inaugural do Manifesto comunista, esse espectro parece ter desaparecido sob os escombros do socialismo realmente inexistente. Há vinte anos, o semanário Newsweek anunciou solenemente, em sua primeira página, a morte de Marx. Era a hora das contrarreformas e Restaurações. Francis Fukuyama decretou o fim da história. Em O passado de uma ilusão, François Furet pretendeu ter encerrado de uma vez por todas a questão do comunismo. Imobilizado em sua eternidade mercantil, o capitalismo se tornou, por sua vez, o horizonte insuperável de todos os tempos!
Morte de Marx, morte das vanguardas? Fim da história, fim do comunismo?
No entanto, os fins não param de terminar. A história se revolta. Após Seattle, Gênova, Porto Alegre e Florença, ela recupera as cores. Os fantasmas se agitam. Os espíritos vêm perturbar a quietude da ordem ordinária.
Desde 1993, de fato, o trabalho de luto se concluiu. Não haverá futuro sem Marx, escreveu então Jacques Derrida em seu Espectros de Marx, não haverá futuro sem a memória e sem a herança de Marx, em todo caso de um certo Marx e de pelo menos um de seus espíritos. Porque, acrescentou ele, “há mais de um, deve haver mais de um”.[1]
No mesmo ano, Gilles Deleuze declarou a um jornalista do Nouvel Observateur não compreender o que as pessoas queriam dizer quando afirmavam que Marx estava errado, e ainda menos quando diziam que Marx estava morto: as tarefas urgentes de análise do mercado mundial e de suas transformações exigem passar por Marx. “Meu próximo livro – e ele será o último –, confidenciou Deleuze, se chamará Grandeza de Marx”. Infelizmente, ele não teve tempo de levar a cabo esse projeto.
Hoje, Marx é coloquializado, seminarizado e mesmo “pleiadizado”.[2] Seu futuro parece garantido. O do comunismo, isto é uma outra questão. A palavra parece estar associada para sempre aos crimes burocráticos cometidos em seu nome, como se o cristianismo estivesse reduzido à Inquisição, às dragonadas e às conversões forçadas.
Se torna fácil localizar retrospectivamente os nós do acontecimento, e de descobrir o que, de modo obscuro, se tramava em silêncio. Desde o início dos anos 90, livrado de seus “ismos” pela queda do Muro de Berlim e pela decomposição da União Soviética, Marx saiu da quarentena. Nós não temos mais a desculpa de sua captura burocrática e de seu confisco estatista para fugir da responsabilidade de relê-lo e de interpretá-lo. A disputa teria permanecido acadêmica se ela não tivesse entrado em ressonância com uma renovação das lutas. Na França, esta foi a fúria vermelha de dezembro de 1995, uma bela explosão de resistência invernal, a frágil recusa por parte de uma “esquerda de esquerda” (segundo a fórmula de Pierre Bourdieu).
Mas o que podem as resistências enquanto o horizonte de expectativa está destroçado? Após os desastres acumulados no século, e diante do silêncio inquietante dos amanhãs que se tornaram mudos, pode se tornar forte a tentação de voltar para trás, do “socialismo científico” ao “socialismo utópico”; de escapar das ilusões dogmáticas do primeiro, para recair nas quimeras senis e desbotadas do segundo, sem mesmo a desculpa da inocência, nem o entusiasmo, dos primeiros impulsos. A questão crucial, a questão sempre nova, disse ainda Jacques Derrida, “não é o comunismo, é o capital” e a “formação da mais-valia em suas novas formas”. Evidentemente, o capital não joga [jouer] mais como ele jogava no século XIX, somente idiotas ignoram isso. Mas “ele joga”.[3] Ler seu jogo, desfazer suas fantasmagorias, responder a seus enigmas, tal é sempre a questão de Marx – e a do comunismo.
Herdar nunca é fácil. A herança nunca é simples. Não é um bem, que se recebe e se coloca no banco. Ao mesmo tempo ferramenta e obstáculo, arma e fardo, deve ser sempre transformada. E tudo depende do que se fará com tal herança sem proprietários nem manual de instruções.
Como destaca Stathis Kouvelakis,[4] o marxismo é constitutivamente “pensamento da crise”. Sua primeira onda de difusão internacional, ao fim do século XIX, coincide com o que Georges Sorel já havia chamado de sua “decomposição”. Esta crise significou imediatamente uma passagem ao plural da herança, e o início das lutas de tendência que, ecoando os desafios da época, desde então não cessaram de atravessar o campo da teoria. A crise dos anos 80 apresentou assim certos traços comuns com as crises precedentes. Uma vez mais, o programa de pesquisa que surgiu da obra inaugural de Marx se encontrou confrontado com as questões de um período de expansão e de transformação do próprio sistema capitalista.
As práticas e as formas do movimento foram colocadas à prova das metamorfoses das relações sociais, da divisão do trabalho e da organização da produção. O fim da sequência histórica designada pelos historiadores como “o curto século vinte” acrescenta a tais traços recorrentes o colapso das sociedades e das ortodoxias apresentadas após mais de meio século como a encarnação temporal do espectro comunista.
Sob os golpes da contrarreforma liberal, os anos 1980 foram para o marxismo militante anos de chumbo. Os desiludidos do maoísmo se reciclaram em larga medida no anticomunismo dos direitos humanos, encantados por poderem ser o anjo depois de muito terem sido a besta.
Outros se entregaram ao pensamento fraco e à resignação pós-moderna. Em sua Confissão de um filho do século, Musset evocou a propósito da Restauração e dos anos 1830, algo de confuso e flutuante, marcando a passagem entre um passado encerrado e um futuro incerto. Uma geração desencantada atravessando então a época, “apertada no manto dos egoístas”. Na ausência de grandes promessas e grandes ambições, o tempo, neste “terrível mar de ação sem objetivo”, era o do cinismo dos vencedores, dos pequenos prazeres e das pequenas virtudes.
Diante de novas reações e de novas restaurações, estaríamos nós, por nosso turno, reduzidos ao minimalismo e à miniatura?
Na França, as greves do inverno de 1995 marcaram uma virada antiliberal, confirmada posteriormente, à escala internacional, pelas manifestações contra a mundialização capitalista: “O mundo não está à venda! O mundo não é uma mercadoria!”. Sobre os escombros do século XX, começaram a reflorescer “mil marxismos”. Sem se tornar vermelha, a essência do ar recuperou as cores. Em 1993, foram publicados Os espectros de Marx de Jacques Derrida e A miséria do mundo sob a direção de Pierre Bourdieu. No outono, no mesmo momento em que começava o movimento grevista, deu-se por iniciativa da revista Actuel Marx o primeiro Congresso Marx Internacional. Marx, o intempestivo foi publicado em novembro. A imprensa se surpreendeu com esta ressurreição intelectual paralela ao “retorno da questão social”.
Neste contexto de renovação, o arborescer dos “mil marxismos” apareceu como um momento de liberação em que o pensamento rompe os seus grilhões doutrinários. Ele anuncia a possibilidade de recomeçar, superando as experiências traumáticas de um século trágico sem ao mesmo tempo fazer tábula rasa do passado. Tão plurais quanto atuais, tais marxismos deram prova de uma bela curiosidade e de uma promissora fecundidade. Sua proliferação coloca, no entanto, a questão do que, para além de suas diferenças e de sua fragmentação disciplinar, pode constituir o tronco comum de um programa de pesquisa.
Pode-se ainda falar do marxismo ou seria necessário se contentar com um Marx “sem ismos” e com um marxismo desconstruído? Esses mil marxismos presentes e futuros colocam, segundo André Tosel, a questão do acordo teórico mínimo sobre o campo dos desacordos legítimos. Sua generosa multiplicação pode de fato conduzir ao esmigalhamento do núcleo teórico e à sua dissolução em um caldo de cultura pós-moderno.
O longo jejum teórico do período stalinista aguçou os apetites de redescoberta. O manto do marxismo de Estado e a experiência das excomunhões inquisitoriais alimentaram igualmente uma aspiração profunda e legítima de uma liberdade de pensamento da qual os grandes heréticos do período precedente (Ernst Bloch, o último Lukács, Louis Althusser, mas também Henri Lefebvre ou Ernest Mandel) foram os precursores. Stathis Kouvelakis enfatiza o risco doravante inverso: que os mil marxismos coexistam de maneira polida em uma paisagem apaziguada na qual a necessidade de fazer uma disputa parece estranhamente ausente. Este perigo andaria de mãos dadas com uma reabilitação institucional de um Marx curvado ao decoro de uma marxologia acadêmica destituída de visão subversiva. Em seus Espectros de Marx, Derrida adverte contra esta tentação de jogar Marx contra o marxismo, para melhor neutralizar o imperativo da ação política na exegese tranquila de uma obra classificada.
O fundamento desta ameaça reside na discordância entre os ritmos do renascimento intelectual e os da mobilização social, na cisão mantida entre teoria e prática, cisão que, segundo Perry Anderson, caracterizou por muito tempo o “marxismo ocidental”. Como destaca Alex Callinicos, reivindicando a unidade da teoria e da prática, o marxismo se submete corajosamente a um duplo critério de julgamento. Porque, se ele não foi seriamente refutado no plano teórico, [por outro lado] foi incontestavelmente colocado à prova pelas graves derrotas políticas do século passado.
Certas “escolas” não resistiram à prova da reação liberal e das derrotas sociais dos anos 80. As contribuições ao Dicionário Marx contemporâneo colocam em evidência a crise paralela de três dentre elas.[5]
Desde seu livro de balanço de 1987, Robert Boyer reconhece as dificuldades e os impasses da escola dita da regulação.[6] Renunciando claramente a sua referência no marxismo, ela não tardou a deixar de existir enquanto escola, desmembrada entre a trajetória gestionária de um Aglietta, o encontro de Robert Boyer com as teorias das convenções e o “novo paradigma” ecológico não descoberto prometido por Alain Lipietz. Desde 1995, o núcleo inicial da corrente havia passado de uma perspectiva pós-fordista para o compromisso histórico com o capitalismo patrimonial, com alguns chegando à apologia de assalariados no mercado de ações [actionnariat salarial], e outros se transformando em assessores de diretores de recursos humanos.[7]
A corrente do “marxismo analítico” também não resistiu à virada dos anos 1990. O “marxismo da escolha racional” e alguns de seus eminentes animadores mal passaram na prova das lutas contra a globalização imperial. Desde de sua origem, o grupo estava marcado por um certo ecletismo, dividido entre a problemática marxista de Robert Brenner, Erik Olin Wright ou Gerald Cohen, e a de um Philippe Van Parijs que jamais pretendeu ter grande coisa em comum com qualquer marxismo que seja. O próprio John Elster terminou por reconhecer a impossibilidade de associar de maneira séria o marxismo com a teoria dos jogos e o individualismo metodológico. Se seus trabalhos ou os de John Roemer permanecem estimulantes, seus adeus a Marx fornecem uma clarificação leal.[8]
Enfim, a corrente conhecida sob o nome de “operaísmo” italiano, ilustrada nos anos 60 e 70 pelos trabalhos de Mario Tronti ou de Toni Negri, não sobreviveu às metamorfoses do transcorrer de duas décadas, à desconcentração industrial e às derrotas sociais da classe operária industrial na Europa, nos Estados Unidos ou no Japão. Parece que o obreirismo desiludido de ontem se traduz hoje em um desamor com relação à herança de Marx. Mario Tronti admite uma espécie de “desespero teórico”, enquanto as últimas produções de Toni Negri permanecem no equívoco.
Não se sabe muito bem, ao se ler Império, se se trata da forma nova, do “estágio supremo” do imperialismo, ou de uma realidade qualitativamente diferente, acêntrica, acéfala e rizomática, na qual as relações de dominação e desigualdade entre o Norte e o Sul se apagam no “espaço liso” do mercado mundial. Do mesmo modo, não se sabe mais se o conceito (sociologicamente vazio) de “multidão” é simplesmente um nome novo – uma espécie de pseudônimo – para o proletariado mundializado, ou uma dissolução das classes na diversidade das subjetividades oprimidas pelo capital e nos seus contrapoderes reticulares.
O programa de pesquisa inspirado em Marx permanece, no entanto, robusto. Mas só terá um verdadeiro futuro se conseguir, ao invés de se confinar no cercado universitário, estabelecer uma relação orgânica com a prática renovada dos movimentos sociais, em particular com as resistências à mundialização imperialista.
É aqui que se exprime efetivamente, de maneira explosiva, a atualidade de Marx: a da privatização do mundo, do fetiche capitalista e de sua fuga mortífera na aceleração frenética da corrida ao lucro e na conquista insaciável dos espaços submetidos à lei impessoal dos mercados. A obra teórica e militante de Marx surgiu na época da mundialização vitoriana. A ascensão das ferrovias, do telégrafo e da navegação a vapor foram então o equivalente da internet e das telecomunicações via satélite; o crédito e a especulação conheceram um desenvolvimento impetuoso; foram celebradas as núpcias bárbaras do mercado e da técnica; apareceu a “indústria do massacre”. Surgiu também o movimento operário da Primeira Internacional. A “crítica da economia política” efetuada em O capital permanece sem dúvida alguma a leitura fundadora dos hieróglifos da modernidade e o ponto de partida de um programa de pesquisa que ainda não está esgotado.
A crise hoje aberta da mundialização liberal e de seus discursos apologéticos constitui o fundamento do renascimento dos marxismos. São testemunhas disso os trabalhos marxológicos como os de Enrique Dussel, Stathis Kouvelakis e Jacques Bidet, assim como, no campo da economia, os de Robert Brenner nos Estados Unidos, de Francisco Louçã sobre as ondas longas, de Gérard Duménil e Jacques Lévy; os as pesquisas militantes sobre as lógicas da mundialização, como as de François Chesnais, Issac Johsua e Michel Husson na França. Sob o impulso de David Harvey, a exploração de um “materialismo histórico-geográfico” aprofunda as pistas abertas por Henri Lefebvre sobre a produção do espaço. Os estudos feministas relançam a reflexão sobre as relações entre as classes sociais, pertencimentos de gênero ou identidades comunitárias.
Os estudos culturais, ilustrados particularmente pelos trabalhos de Fredric Jameson ou Terry Eagleton, abrem novas perspectivas à crítica das representações, das ideologias e das formas estéticas. A crítica da filosofia política encontra um novo fôlego com os ensaios de Domenico Losurdo ou de Ellen Meiksins Wood sobre o liberalismo; com a releitura crítica de grandes figuras como as de Georg Lukács ou Walter Benjamin; com a investigação de uma historiografia crítica sobre a revolução francesa; com as leituras renovadas do corpus marxista por jovens filósofos; com as questões de juristas e universitários sobre as metamorfoses e as incertezas do direito; com as controvérsias sobre o papel da ciência e das técnicas e sobre seu controle democrático, como as contribuições a uma crítica da ecologia política feita por autores como John Bellamy Foster, Ted Benton, Jean-Marie Harribey, Jean-Paul Deléage e José Manuel Naredo; com uma interpretação original da psicanálise lacaniana por Slavoj Zizek; com uma confrontação entre a herança marxista e obras como as de Hannah Arendt ou Pierre Bourdieu.
Obras como as de Alex Callinicos, engajada nas grandes controvérsias do presente, ilustram a possibilidade e a vitalidade de um marxismo militante.
Este florescimento responde às exigências de uma pesquisa rigorosa, se preservando das armadilhas da exegese acadêmica. Ele mostra a que ponto os espectros de Marx assombram o nosso presente, e quão errado seria opor uma era de ouro imaginária do marxismo dos anos 1960 (E. P. Thompson criticou corretamente a “miséria da teoria”) à esterilidade dos marxismos contemporâneos. Certo, os anos 1980 foram relativamente desérticos. Mas o novo século promete mais do que um oásis.
O trabalho molecular da teoria é sem dúvida menos visível do que ontem. Não se beneficia de novos mestres-pensadores cuja notoriedade seria comparável à dos antigos. Sofre também de uma falta de diálogo estratégico com um projeto político suscetível de reunir e combinar as energias. Mas ele é provavelmente mais denso, mais coletivo, mais livre e mais secular. Rico, então, de novas promessas.
Daniel Bensaïd (1946-2010) foi professor de filosofia na Universidade de Paris VIII (Vincennes – Saint-Denis) e dirigente da IV Internacional – Secretariado Unificado. Autor, entre outros livros de Marx, Manual de instruções (Boitampo). Tradução: Pedro Barbosa.