1. O fato de a desaceleração econômica ser anterior à Covid-19 não deve nos levar a negar nem o impacto econômico da epidemia (interrupção da produção, ruptura das cadeias de abastecimento, impactos setoriais no transporte aéreo e no turismo, etc.), nem a gravidade da ameaça que ela representa enquanto tal. Fenômeno disruptivo com dinâmica exponencial, a epidemia é um amplificador específico da crise econômica e social. Revela também a fragilidade do sistema capitalista e os perigos que ele representa para as classes populares, particularmente pelo seu produtivismo congênito baseado no uso dos combustíveis fósseis, a causa fundamental da crise ecológica e climática.
2. A contenção da epidemia teria exigido a rápida implementação de medidas rigorosas de controle sanitário dos viajantes provenientes de regiões contaminadas, identificação e isolamento das pessoas infectadas, limitação dos transportes e fortalecimento dos serviços de saúde. Atrasados nas políticas neoliberais com as quais tentavam combater a desaceleração econômica, os governos capitalistas demoraram para tomar medidas severas e depois ainda as aplicaram demasiado lentamente, não conseguindo parar a propagação do vírus. As políticas de estoque zero, a austeridade orçamentária nas áreas da saúde e da pesquisa e as condições de trabalho flexíveis e precárias devem ser destacadas no processo da crise.
4. Como qualquer fenômeno disruptivo, a epidemia provoca, antes de mais nada, reações de negação. Estes podem então dar lugar ao pânico, e o pânico pode ser instrumentalizado por conspiradores e outros demagogos para aplicar estratégias autoritárias de controle tecnológico das populações e de limitação dos direitos democráticos, como na China e na Rússia. Além disso, há um sério risco de que o Covid-19 seja usado pelos fascistas como pretexto para justificar e intensificar as políticas racistas de expulsão de migrantes.
5. A esquerda não pode de forma alguma se contentar em simplesmente deslocar o fator exógeno da crise de saúde para a crise econômica capitalista endógena. Deve ter em conta a crise de saúde enquanto tal e desenvolver propostas para a combater de uma forma social, democrática, antirracista, feminista e internacionalista. À contracorrente do individualismo, também deve adotar para si e propagar nos movimentos sociais comportamentos coletivos responsáveis do ponto de vista da não-propagação do vírus. Ao contrário das medidas para limitar o uso de carros tomadas por alguns governos em resposta ao “choque petrolífero”, por exemplo, ninguém pode escapar da responsabilidade pela sua própria saúde, dos seus entes queridos e da saúde pública, sem esquecer a sua responsabilidade para com o Sul global. Ou os movimentos sociais tomam esta questão nas suas próprias mãos, democraticamente e com base nas realidades sociais dos dominad@s, ou os dominadores vão impor as suas soluções liberticidas.
6. O maior perigo da epidemia é poder ultrapassar o limiar de saturação dos sistemas hospitalares. Isso levaria inevitavelmente a um agravamento do preço pago pelos mais pobres e fracos, especialmente entre os idosos, e a uma transferência das tarefas de cuidado para a esfera doméstica, ou seja, geralmente para as costas das mulheres. O limiar depende obviamente dos países, dos sistemas de saúde e das políticas de austeridade-precaridade que foram impostas. Será alcançado ainda mais rapidamente se os governos correrem atrás da epidemia em vez de a previnirem. A epidemia requer, portanto, claramente, uma ruptura com políticas de austeridade, uma redistribuição da riqueza, refinanciamento e desliberalização do setor da saúde, a abolição de patentes no campo médico, justiça Norte-Sul e prioridade às necessidades sociais. Esta última implica em particular: proibição das demissões das pessoas infectadas, manutenção dos salários em caso de desemprego parcial, fim do controle, da “ativação” e das sanções contra os beneficiários dos sistemas sociais etc. É principalmente sobre estas questões que é necessário intervir evitar respostas irracionais e o seu potencial de desvio racista-autoritário.
7. Há muitas semelhanças entre a crise da Covid-19 e a crise climática. Em ambos os casos, sua lógica de acumulação de lucro torna o sistema capitalista incapaz de agir frente a um perigo do qual está consciente. Em ambos os casos, os governos oscilam entre a negação e a inadequação de políticas concebidas principalmente de acordo com as necessidades de capital, e não com as necessidades das populações. Em ambos os casos, @s mais pobres, @s racializados e @s mais frac@s, especialmente nos países do Sul, estão na mira, enquanto os ricos dizem a si mesmos que sempre sairão dela. Em ambos os casos, os governos usam a ameaça para avançar para um estado forte, enquanto forças de extrema direita tentam usar o medo para impulsionar torpes respostas malthusianas e racistas. Em ambos os casos, finalmente, a lei social de valor capitalista entra em contradição frontal com as leis da natureza com dinâmica exponencial (a multiplicação das infecções virais num caso, o aquecimento global e suas retroalimentações positivas no outro).
8. O perigo climático é, porém, infinitamente mais global e mais grave do que o do vírus. Da mesma forma, suas consequências se os explorados e os oprimidos não se unirem para derrubar este modo de produção absurdo e criminoso. Covid-19 é um aviso, mais um aviso: é necessário acabar com o capitalismo, que arrasta a humanidade para a barbárie.
Publicado originalmente no site Europe Solidaire Sans Frontière, em 9 de Março de 2020