Fabio Marton, The Intercept Brasil, 28 de agosto de 2020
É uma luta que provavelmente as gerações mais jovens não conhecem. A guerra da televisão. Nos tempos de TV CRT de 30 quilos, anos 1990, era comum ter uma só em casa. Então, um controle-remoto dava um poder desproporcional a quem dele se apossava.
Na minha casa, quem detinha o poder era o pastor. Meu avô. Como um toque de recolher, minha liberdade de escolher o que ver na TV terminava todo dia às 4h da tarde. Era quando começava a maratona de programas favoritos dele. O primeiro era Carlos Alborghetti, o furioso apresentador que virou um meme. Depois o “Aqui Agora”, um ambicioso e bem financiado projeto de jornalismo sensacionalista, que duraria até 1997. Terminava com o Telejornal Brasil, de Boris Casoy. O primeiro de uma afiliada da TV Gazeta em Curitiba, os demais, por uma do SBT de Sílvio Santos. No total, a tirania do pastor sobre a TV durava cinco horas.
Talvez o velho estivesse se esbaldando com um novo vício. Ser pastor da Assembleia de Deus era guiar uma igreja na qual o consenso era que crente nem sequer devia ter TV em casa. Não chegava a ser proibido, mas passava a impressão que o dono da TV não tinha compromisso com o modo de vida cristão e permitia às tentações do mundo entrarem em casa pela antena. E, dentro do espaço possível na Assembleia na década de 90, meu avô era até moderno: não tinha nada contra calças para mulher ou cortar o cabelo. Dizia que essas coisas eram só costumes, não doutrina (isto é, são coisas não bíblicas, só hábitos da igreja). Mas TV mesmo, ele só foi ter depois de aposentado.
Mas quando teve uma, esbaldava-se em programas pinga-sangue. Hoje ou 30 anos atrás, quem viu a cobertura jornalística de um programa pinga-sangue, viu todas. “Travesti injeta silicone industrial e pede ajuda para não morrer” – apresentador chama de imbecil, mas ajuda. “Esposa queima marido com álcool”. “Marido esfaqueia esposa e joga no riacho”. Alguém faz sexo com animais. Crimes menos espetaculares. Gente pobre. Sempre o bandido tentando esconder a cara da câmera, o policial forçando. Alguns vítimas terminando tão humilhadas como seus abusadores.
Programas pinga-sangue estão entre os maiores eleitores de Bolsonaro: eles influenciaram os crentes a odiar não só o pecado, mas o pecador.
O pinga-sangue educou o brasileiro no ódio ao “bandido” – ódio também ao “amigo do bandido” e seus “direitos humanos”. Por diversas razões, parece ter falado de forma particular ao coração dos fundamentalistas, ajudando-os a desabrochar nas figuras agressivamente políticas do presente.
Um pouco de história: programas pinga-sangue têm origem nos tempos da ditadura. “Um dos pioneiros nesta linha foi Jacinto Figueira Júnior, que estreou, em 1966, o programa ‘O Homem do Sapato Branco‘ e permaneceu no ar com seu show de misérias por vários anos”, escreveu o filósofo e teólogo padre Jaime Carlos Patias, em “O telejornal sensacionalista, a violência e o sagrado”. “Seu programa foi veiculado pela Bandeirantes, Globo, SBT e até mesmo pela TV Cultura, emissora teoricamente mais preocupada com o padrão de qualidade da sua programação.”
Jacinto começou na TV e depois foi também para o rádio. Várias outras figuras pioneiras, como Gil Gomes, Afanásio Jazadji e Carlos Alborghetti, começaram como radialistas de noticiário policial antes do fim do regime. Em 1968, Gil Gomes descobriu que um crime sexual havia ocorrido no mesmo prédio de sua rádio e resolveu, pela primeira vez, cobrir ao vivo, andando com o microfone, inaugurando seu estilo dramático.
Nessa época, a ditadura e os sensacionalistas estavam mais ou menos em lados opostos. Jacinto, eleito em 1966 deputado estadual em SP pelo MDB, a oposição permitida pela ditadura, perdeu o mandato (por “atentado contra a moral e bons costumes”), em 1969, após o AI-5, e foi tirado do ar até 1979. Gil Gomes relatou que foi preso 30 vezes no período.
A era de ouro do sensacionalismo viria na democracia. No momento em que a censura foi banida, com a Constituição de 88. Foi uma época em que as TVs partiram para testar os limites. Fausto Silva falando palavrão no meio da tarde – parece difícil de acreditar hoje, mas babaca e pentelho já foram palavrões. No SBT, surgia um programa baseado em mostrar seios, “Cocktail”. A banheira do Gugu. Em 1991, o já citado noticiário pinga-sangue “Aqui Agora” (que o Sílvio Santos, aliás, pretende trazer de volta).
É um paradoxo. A ditadura não se entendia com o pinga-sangue, mas no final das contas o pinga-sangue acabou por abraçar, reproduzir e divulgar talvez a mais duradoura herança da guerra suja, do porão da ditadura. A cultura da brutalidade policial, da ilegalidade, do grupo de extermínio.
Isso porque, nesse ramo, de certa forma, o papel do jornalista não é só ser simpático ao policial. Ele se confunde com o próprio policial. Em entrevista ao Intercept, o jornalista Danilo Angrimani, autor de “Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa”, traz um exemplo antigo. “Essa ‘promiscuidade’ entre o repórter policial e a polícia não é nova. Lembro de Nelson Gatto, que prendeu, pessoalmente, um bandido e rendeu a manchete ‘Promessinha preso’, em letras garrafais no Última Hora, em 1958. Ou seja, ele não se limitava a informar. Ele mesmo ‘criava’ a notícia”.
Ritual na TVOs dois estudiosos descrevem o papel do apresentador-sensacionalista como um agente da notícia. “O sensacionalismo opera em uma espécie de balança, atuando, às vezes, como transgressor e, em outros momentos, como ‘instrumento’ de punição”, afirma Angrimani. “O veículo sensacionalista, em alguns momentos, alardeia a quebra da ordem e, em outros, glorifica o restaurador da moralidade.”
O filósofo e teólogo Jaime Patias faz uma análise sob a ótica religiosa dos programas sensacionalistas. Com base no trabalho do filósofo francês René Girard, estabelece uma distinção entre violência sagrada e profana, suja e limpa, pecaminosa ou purificadora. Como funciona: as vítimas em um programa policial, lesadas pela violência profana, são resgatadas pela violência sagrada. “Quando um sistema ou instituição se coloca acima das demais instituições, ao combater a violência, o faz como violência purificadora”, afirma. “A sua atuação se dá numa dimensão religiosa, transcendental.”
Isto é a polícia, acima das leis, ocupando uma função sagrada, e o apresentador cumprindo um papel de sacerdote, numa espécie de ritual de expiação do pecado. “No apresentador [José Luiz] Datena, do Brasil Urgente, percebe-se traços característicos de mediador religioso que se pretende purificador ante a violência comum”, define.
E aqui retornamos ao meu avô. Patias defende que essa relação do espectador com o apresentador é uma substituta da religião. “De certa forma, a mídia é, ao mesmo tempo, produtora da notícia e detentora das grandes verdades e soluções. Dessa forma, ocupa o lugar que outrora foi de Deus, como a verdadeira religião a quem a pessoa recorre.”
Não consigo imaginar meu avô pastor realmente trocando Deus por Datena. Acredito que é algo que corre em paralelo. Uma espécie de sincretismo, digamos assim.
Quando a gente brigava pelo controle da TV, eu achava que o entusiasmo do meu avô por programas policialescos era mero mau gosto, falta de estudo – apesar de, por causa de sua profissão, o pastor ser o único na família a ter uma biblioteca não era decorativa.
Mas a relação era mais profunda. Bíblica. A TV sensacionalista traz uma visão do mundo externo que condiz com o que os evangélicos fundamentalistas pensam. É um mundo caído, em pecado, onde a falta de Jesus no coração leva a todo tipo de abominação, de desgraça, de vergonha. A violência profana da qual fala o professor Patias, que domina o mundo fora da igreja. Ou simplesmente “O Mundo”, como gostam de falar.
Basicamente tudo na vida de um crente fundamentalista se divide entre O Mundo e a Graça, a vida em pecado e em comunhão com Cristo. Coisas d’O Mundo são ruins: música, filmes, ciência que contradiz a Bíblia, bebida, drogas, sexo, tudo o que pode levar o crente a se perder. Um filme ou música profana são a porta de entrada do Diabo na vida de alguém. O objetivo da vida de um evangélico fundamentalista é viver ao máximo segregado d’O Mundo. Essa era a razão para os crentes antigos rejeitarem a televisão.
“O pastor, ao falar para seus fiéis, cita o Diabo como responsável por todas as transgressões”, afirma Danilo Angrimani. O crente precisa se afastar do Diabo, para não pecar mais, para não transgredir.” Os pinga-sangues mostram a vida profana, o mundo do Diabo, exatamente como os crentes o imaginam.
Do lado oposto, eles já trazem uma visão que se parece com a do policial encarnado em anjo vingador por esses programas. Uma cultura de autoridade, de leis duras, de tradições pétreas e de guerra – uma guerra constante com o Mundo, o pecado, como é a “guerra” contra o crime do policial militar brasileiro. Uma cultura na qual o bandido está do lado do diabo, em que é basicamente um possesso. E uma cultura policialesca na qual aqueles que se opõem às ações da polícia são como pedras no caminho desse trabalho sagrado. Defender os direitos humanos dos encarcerados e dos alvos da polícia é estar do errado da guerra santa contra o crime. Os que fazem isso costumam ser os mesmos que defendem aborto, religiões afro e “gayzismo”. A esquerda, assim, passa a ter algo de satânico.
Em um programa de 2010, José Luiz Datena demonstrou, de forma transparente, essa relação. Atribuiu a execução de uma criança de dois anos à “ausência de Deus”, num nietzschianismo vulgar.
“Esse é o exemplo típico de um sujeito que não acredita em Deus. Matou um menino de dois anos de idade. Essa gente é quem mata, enterra pessoas vivas, quem estupra, quem violenta nossas mulheres. (…) É por isso que o mundo está essa porcaria, guerra, peste, fome e tudo mais. São os caras do mal. (…) Quem não acredita em Deus não tem limite. Quem não acredita em Deus não respeita limite porque se acha o próprio Deus”.
O insulto mobilizou os descrentes do Brasil. Datena acabou perdendo judicialmente contra a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, a Atea. Mas o resultado foi, segundo o presidente da entidade, “vinhetas bem aguadas e genéricas sobre tolerância religiosa”.
Da minha parte, na época, soou uma coisa óbvia a alguém como Datena dizer. Um insulto no topo de uma montanha. Datena – e pouco importa o que pense ou diga sobre Bolsonaro em si – representa uma faceta central desse bolsonarismo ancestral no qual eu fui criado.
Mas poderia ter sido diferente. Eu mesmo nunca imaginei que um dia haveria um presidente “deles”. Quem sabe os crentes fundamentalistas – e o Brasil – tivessem ficado melhor se continuassem sem televisão.