Maristella Svampa e Enrique Viale, Revista Anfíbia, maio de 2020
A pandemia abriu um portal para discutir o futuro. Como construir uma agenda capaz de pôr em xeque o capitalismo? Svampa e Viale nos propõem um Pacto Ecossocial e Econômico como guia nessa trilha.
Vivemos em uma encruzilhada civilizatória, cujo escopo e conseqüências ainda incertas envolvem as diferentes esferas da vida. A pandemia expôs e exacerbou as desigualdades sociais e econômicas, tornando-as mais insuportáveis do que nunca. Hoje, torna-se necessário retornar as alternativas que pareciam inviáveis, poucos meses atrás, para encontrarmos uma maneira diferente de sair dessa crise. Como poucas vezes aconteceu, a pandemia nos leva a parar de olhar da forma tradicional para o Estado, os mercados, a família, a comunidade. À luz da nossa vulnerabilidade social e da nossa condição humana, como seres inter e ecodependentes, devemos repensar uma reconfiguração integral, isto é, social, sanitária, econômica e ecológica, que valorize a vida e os povos.
Assim, a capacidade do Estado, que hoje parece fundamental para superar a crise em nível global e nacional, deve ser posta a serviço de um grande New Green Deal ou de um grande pacto ecossocial e econômico para transformar a economia através de um plano holístico que salve o planeta e, ao mesmo tempo, persiga uma sociedade mais justa e igualitária. O pior que poderia acontecer é que, com o propósito de voltar a crescer economicamente, o Estado pretenda legislar contra o meio-ambiente, acentuando a crise ambiental e climática, bem como as desigualdades Norte-Sul e entre os diferentes grupos sociais. Devemos entender de uma vez por todas que a Justiça Ecológica e Social caminham juntas, que não há uma sem a outra.
Cinco são, do nosso ponto de vista, os eixos fundamentais do Pacto Ecossocial e Econômico a serem debatidos: renda universal da cidadania, reforma tributária progressiva, suspensão do pagamento da dívida externa, sistema nacional de atendimento e compromisso sério e radical com a transição socioecológica.
1. A catástrofe atual mostra que todo ser humano deve ter uma renda básica garantida que abra a possibilidade de uma vida decente. Para acessar essa renda universal ou renda básica, historicamente promovida em nosso país pelo economista Rubén Lo Vuolo e por certas organizações sociais, nenhuma outra condição pessoal é necessária além da de existir e, com ela, de ser cidadão. Diferente das políticas sociais focadas e fragmentárias que foram implementadas na América Latina e em nosso país nas últimas décadas, a Renda Cidadã Universal não tem relação com o emprego assalariado, não exige compensação, não reforça a armadilha da pobreza (como nos planos sociais focados) ou o clientelismo, e busca garantir um rendimento suficiente para o acesso ao consumo básico. Longe de ser inviável, a Renda Universal hoje está no centro do debate sobre a agenda global, assim como a proposta de reduzir a jornada de trabalho, estabelecendo um limite entre 30 e 36 horas por semana, sem redução salário. Entre outros benefícios, essa redução não apenas melhoraria a qualidade de vida dos trabalhadores, mas também permitiria criar novos empregos para cobrir as horas reduzidas. Além disso, uma aposta na distribuição de tarefas implica enfrentar de forma proativa a realidade da automação dos processos de produção e o avanço da sociedade digital, sem ter que multiplicar o desemprego e a insegurança no emprego.
2. A implementação da renda universal não apenas coloca a questão da cidadania no centro do cenário, mas também a necessidade de sistemas tributários progressivos, como base para sua viabilidade e bom funcionamento. Não se deve esquecer que nosso país possui um sistema tributário regressivo, baseado em impostos indiretos ou de consumo (como o IVA) e um imposto sobre lucros (incluindo o imposto sobre salários) que atinge principalmente os setores médio e baixo. Grandes propriedades, heranças, danos ambientais, receita financeira, são todas as fontes tributárias que têm pouca ou nenhuma presença no sistema tributário do país. Como afirma José Nun, ex-Secretário de Cultura, que há muito tempo discute essas questões, “esse caminho exige uma profunda reforma tributária, cujo significado e importância devem ser instalados na consciência coletiva para distingui-la dos remendos e esparadrapos que hoje recebem esse nome". Assim, o segundo eixo do Pacto Ecossocial e Econômico não apenas aponta para um imposto necessário sobre grandes fortunas que ajuda a enfrentar o custo da crise. Também é essencial uma Reforma Tributária Progressiva que reconfigure da base o atual sistema tributário em todas as jurisdições, em um sentido eqüitativo, e que inclua o imposto sucessório erradicado de uma só vez por Martínez de Hoz durante a última ditadura militar, além de novos impostos ecológicos sobre atividades poluentes.
Não podemos aceitar o fato de que, como já aconteceu globalmente com a crise financeira de 2008, o Estado venha em auxílio de bancos e instituições financeiras e que os mais vulneráveis acabem financiando essa crise. A concentração de riqueza que estamos testemunhando nesta fase do capitalismo globalizado e neoliberal é apenas comparável à do capitalismo desregulado do final do século XIX e início do século XX. Enquanto isso, embora a pobreza tenha diminuído, de acordo com períodos e sociedades, as desigualdades aumentaram, tanto no norte quanto no sul do mundo. Segundo dados da Oxfam, o 1% mais rico da população mundial tem mais que o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de pessoas: quase metade da humanidade vive com menos de US $ 5,50 por dia. Em questões ecológicas, os dados também são escandalosos: apenas 100 grandes empresas transnacionais são responsáveis por 70% dos gases de efeito estufa em todo o mundo.
3. Em momentos extraordinários, é justificada a suspensão de grandes dívidas do Estado. Não é necessário ser radical ou heterodoxo em questões políticas e econômicas para perceber isso. Nas economias desenvolvidas, a dívida total - famílias, empresas, governo - representa 383% do PIB. Nas economias emergentes, é de 168%. Nenhum país pode pagar quantidades colossais de moeda estrangeira sem primeiro garantir uma vida decente a seus habitantes, muito menos em um contexto de recessão econômica global e nacional sem precedentes. E muito menos, também, em uma situação de quase inadimplência causada principalmente pelos empréstimos contratados pelo governo anterior, que serviram apenas para vazar dinheiro e sustentar déficits fiscais que não beneficiaram os setores mais vulneráveis. Algumas semanas atrás, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) propôs um novo Plano Marshall que libera 2,5 trilhões de dólares em ajuda aos países emergentes e implica perdão de dívidas, um plano habitacional nos serviços de saúde e programas sociais. A necessidade de reconstruir a ordem econômica mundial, que abarque inclusive um jubileu de dívida, hoje parece viável e plausível.
4. A pandemia deve abrir caminho para a construção de sociedades ligadas ao paradigma do cuidado, por meio da implementação e reconhecimento da solidariedade e interdependência também nas políticas públicas. É necessário, assim, implantar um Sistema Nacional de Cuidado Público voltado para atender as necessidades dos idosos em situação de dependência, meninos e meninas, pessoas com deficiências graves e outros indivíduos que não conseguem atender às suas necessidades básicas. Superada a pandemia, global e nacionalmente, a recuperação da economia deve priorizar o fortalecimento de um sistema nacional de saúde e assistência, que exige o abandono da lógica mercantil, classista e concentradora que gera lucros para monopólios farmacêuticos e um redirecionamento dos investimentos do Estado em tarefas de assistência, bem como no equilíbrio e cuidado da Mãe Terra.
Lembremos que, ligados aos problemas de saúde da atual pandemia, os vírus mais recentes - como SARS, gripe aviária, gripe suína e Covid 19 - estão relacionados à destruição de habitats de espécies selvagens para plantar monoculturas em grande escala. É necessário deixar para trás o discurso bélico, assumir as causas socioambientais da pandemia e colocá-las na agenda político-estatal para responder a novos desafios. Nesse sentido, as vozes e a experiência do pessoal de saúde serão cada vez mais necessárias para colocar na agenda pública a relação inextricável que existe entre cuidados, saúde e meio ambiente, diante do colapso climático. Não apenas outras pandemias nos aguardam, mas também a multiplicação de doenças ligadas à poluição e ao agravamento da crise climática.
5. Não podemos mais tornar invisíveis os debates sobre a crise ecológica e o colapso climático. Chegou a hora da Argentina iniciar uma transição sócio-ecológica, uma saída ordenada e progressiva do modelo de produção puramente fossilista e extrativista. Transição e Transformação, pois trata-se de promover uma mudança no sistema energético em direção a uma sociedade pós-fóssil baseada em energias limpas e renováveis. Algo que até agora não era possível ou concebível, em um contexto em que a visão eldoradista do fracking associada a Vaca Muerta dificultou ainda mais a expansão do imaginário energético alternativo e sustentável.
Por outro lado, a forte queda no valor de um barril de petróleo põe fim ao compromisso de explorar combustíveis fósseis não convencionais instalados em nosso país desde a descoberta das jazidas de Vaca Muerta, pouco menos de uma década atrás. A verdade é que a inviabilidade econômica desse projeto é evidente há vários anos nos subsídios milionários que as empresas de petróleo desfrutavam para sustentar a produção, pagas por enormes aumentos nas tarifas dos consumidores. O colapso histórico do preço do petróleo interrompe o “consenso de fraturamento” que une setores do campo político e econômico e derruba o mito de Eldorado sobre esse campo subterrâneo - que o mostrava como “o salvador” do nosso país -, ao mesmo tempo que também abre uma oportunidade extraordinária para repensar completamente o sistema de energia.
Talvez seja utópico pensar que a Argentina tenha 100% de sua energia renovável no ano de 2040, mas essa é a direção na qual o país deve caminhar. Ao mesmo tempo, trata-se também de avançar em termos de democratização, pois a energia é um direito humano, e uma das principais tarefas em um país como o nosso é acabar com a pobreza energética que caracteriza os bairros populares. A justiça social e justiça ambiental devem ser articuladas.
O outro lado da transição é promover a agroecologia para transformar o sistema agroalimentar argentino. Nesse sentido, a criação e promoção de faixas verdes para a agricultura orgânica nas cidades é fundamental para gerar emprego e garantir alimentos saudáveis, seguros e baratos. Essas iniciativas, além disso, promoveriam a soberania alimentar com sistemas de produção e distribuição destinados a desenvolver mercados agroecológicos e solidários locais para pequenos produtores, focados em promover uma cultura associativa e comunitária e a responsabilidade cidadã no consumo. Pode-se começar com a compra obrigatória, por parte dos governos, dos produtos para escolas, hospitais e outros órgãos públicos. Isso incentivaria o enraizamento da população em pequenas e médias cidades semi-rurais, que se complementaria com o acesso nelas à terra, moradia, saúde (de qualidade), educação (em todos os níveis, dos jardins de infância à universidades) e alimentos.
O Antropoceno como crise também é um Urbanoceno. Vamos considerar que na Argentina 92% da população vive em cidades (a média mundial é de 54%) concentrada em 30,34% do nosso território. Somente na Região Metropolitana de Buenos Aires, 0,4% da superfície total do país, vive 31,9% da população total. Habitamos cidades planejadas por e para especulação imobiliária (cuja contrapartida é a emergência habitacional e a falta de espaços verdes) e dominadas pela ditadura do automóvel (com transporte público saturado). Isso colocou sob o microscópio a vida urbana em quarentena e mostra a necessidade de uma mudança radical na maneira como vivemos nas metrópoles. Devemos ruralizar a urbanidade, especialmente nas grandes cidades onde a relação com a natureza é praticamente nula. Devemos reparar a separação que os habitantes urbanos têm da natureza, bem como das fontes de nossos alimentos e nossas vidas.
Finalmente, estamos convencidos de que uma parte fundamental do Pacto Ecossocial e Econômico é o reconhecimento legal dos Direitos da Natureza. Em outras palavras, os seres humanos devem admitir a Natureza como um sujeito de direitos e não como um mero objeto. Devemos viver harmoniosamente, respeitar seus ritmos e capacidades.
Precisamos nos reconciliar com a natureza, reconstruir com ela e conosco um vínculo de vida e não destruição. Ninguém diz que será fácil, mas também não é impossível. Mas não nos enganemos: o "retorno à normalidade" é a volta às falsas soluções. Tampouco é a solução "voltar a crescer como antes". Só poderia levar a mais colapso dos ecossistemas, mais desigualdades, mais capitalismo do caos. Com todos os horrores que a pandemia trouxe, também é verdade que estamos diante de um portal: o debate e a instalação de uma agenda de transição justa por meio de um Grande Pacto Ecossocial e Econômico podem se tornar uma bandeira para combater o pensamento neoliberal - hoje na defensiva -, neutralizar as visões colapsistas e distópicas dominantes e superar a cegueira epistêmica persistente de tantos progressismos desenvolvimentistas, que privilegiam a lógica do crescimento econômico e da exploração e mercantilização dos bens naturais.
A aposta é construir uma verdadeira agenda nacional e global com uma bateria de políticas públicas, orientadas para a transição justa, que exigem a participação e imaginação popular, bem como a interseccionalidade entre lutas novas e antigas, sociais e interculturais, feministas e ecologistas. Isso demanda, sem dúvida, não apenas o aprofundamento e debate sobre todas as questões que tentamos resumir aqui, mas também a construção de um diálogo Norte-Sul, Centro-Periferia, em novas bases geopolíticas, com quem pensa em um Novo Acordo Verde, baseado em uma nova redefinição do multilateralismo em termos de solidariedade e igualdade.