Alejandro Pedregal e Jaime Vindel, Esquerda.net, 9 de Maio de 2020
A crise não derrotou magicamente o neoliberalismo nem abre caminho para um Green New Deal. É necessária “radiografia o mais precisa possível da situação” e das relações de forças sociais .
Face à situação de exceção que vivemos durante estas semanas devido a pandemia da Covid-19, alguns setores da esquerda política trouxeram à baila um certo “otimismo da vontade” segundo o qual iríamos ficar à beira do fim do neoliberalismo. A presente crise e a sua previsível acentuação futura incentivaram as esperanças daqueles que vislumbram a derrota definitiva de toda a austeridade e o advento de uma gestão política mais social. Estes espaços políticos interpelam a população confinada nas suas casas para partilhar esse projeto, de forma a criar as condições subjetivas que permitam impulsionar uma agenda de reformas ambiciosa após o dia em que o governo decrete o fim do estado de emergência.
Não é nosso objetivo alimentar tristes paixões face ao desafio político que enfrentamos, mas sim que consideremos que – parafraseando a expressão de Antonio Gramsci – convém que façamos o contrapeso desse “otimismo da vontade” com um certo “pessimismo da razão” que nos permita focar o futuro imediato a partir do realismo analítico e da radicalidade política.
Deste modo, de seguida iremos expor alguns dos pontos que entendemos relevantes para a reflexão, ao mesmo tempo que assumimos que existem muitos outros que, por questões de urgência, espaço ou outras limitações vinculadas às nossas próprias particularidades, deixamos fora e que será necessário acrescentar ao debate.
A batalha política e ideológica
Em primeiro lugar, queremos destacar algo óbvio: não é necessário alimentar hipóteses conspiratórias para supor que diversos setores do poder político e económico também estão envolvidos na tarefa de configurar novas regras para depois do confinamento. Face a forças de esquerda submetidas a tensões internas e a uma população imobilizada, a direita conta com instrumentos eficazes (em particular, a aliança neoliberal entre as instituições estatais e o poder financeiro) que lhe conferem à partida uma vantagem para enfrentar a conjuntura atual. A situação em que vivemos faz que se depare com menos resistências reais: no caso particular de Espanha, há alguns diques de contenção – de um alcance relativo, ainda que, sem dúvida, de valorizar – que surgem no interior do Conselho de Ministros e em iniciativas cidadãs como a greve promovida pelo Sindicato de Inquilinas e Inquilinos.
A batalha cultural que a direita e a extrema-direita estão a fazer nas redes sociais é um sintoma superficial dos esforços do capital para encaminhar a situação para cenários que lhes sejam favoráveis. Tem cabimento neste contexto, como recordou Naomi Klein, que as elites neoliberais tenham tatuadas na sua mente as palavras do seu grande referente, Milton Friedman, segundo o qual “só uma crise, real ou imaginária, dá lugar a uma mudança verdadeira. Quando essa crise tem lugar, as ações que se executam dependem das ideias que estão à nossa volta”, pelo que é necessário “desenvolver alternativas às políticas existentes, para mantê-las vivas e ativas até que o politicamente impossível se converta em politicamente inevitável”.
Conscientes da assimetria do acesso ao poder dos diferentes setores sociais, as elites neoliberais antecipam frequentemente a sua luta ideológica pelo desenvolvimento dessas alternativas. Fascinado pela astúcia neoliberal (ou por referências teóricas do poder como Carl Schmitt), o populismo progressista não presta atenção a esse desequilíbrio ao tratar de promover as suas próprias operações discursivas, como se o terreno da confrontação dialética não estivesse inclinado antes do início do jogo. Parece-nos que a proclamação apressada do fim do neoliberalismo responde a essa tendência.
A desigualdade na correlação de forças explica que, a cada uma das crises a que temos assistido desde os anos setenta, os partidários do monetarismo e do livre mercado tenham ganho uma posição melhor do que as diversas variantes da esquerda política. A capacidade que o neoliberalismo mostrou para forjar outros mundos possíveis foi recentemente reformulada pela direita populista, a extrema-direita e os neo-fascismos, que souberam conjugar a consolidação da ordem existente com uma antecipação, mais ou menos consciente, dos cenários de crise, tirando rentabilidade política e económica deles.
A utopia neoliberal tem assim como sucessoras o que Angelica Dimitrakaki e Harry Weeks identificaram como as “políticas conservadoras pré-figurativas” da nova direita: a sua capacidade para por a inovação política ao serviço da reprodução do mesmo (ou do pior). O capitalismo do desastre avança assim para contextos de uma democracia esvaziada, ou mesmo diretamente autoritários. (No momento em que escrevemos estas linhas, o parlamento húngaro acaba de aprovar um estado de emergência indefinido que, sob a justificação de fazer frente à crise do coronavírus, outorga plenos poderes ao primeiro ministro Viktor Orban ao suspender a atividade da câmara legislativa e instaurar um clima de censura da liberdade de expressão).
Enquanto isso, a esquerda evidencia dificuldades para se organizar apoiando-se em bases sociais sólidas. Face à política frenética promovida pelo neoliberalismo, que em apenas umas décadas revolucionou a matriz produtiva e a subjetividade das sociedades ocidentais, a esquerda tendeu a camuflar essa fraqueza organizativa colocando em jogo diversos “significantes vazios”, máquinas de guerra eleitorais e – por estes dias – a superação imaginária do neoliberalismo. Entendemos que é imprescindível batalhar pela hegemonia em todos os campos, mas também defendemos que a centralidade da política emancipatória não pode residir em projetar sombras e perseguir fantasmas fabricados por peritos em comunicação política. Esta inércia tem arrastado a esquerda política para formas cada vez mais difusas, com um alto grau de inorganicidade no seu funcionamento interno e uma falta de ambição programática em relação àqueles setores sociais que podem verdadeiramente impulsionar e materializar uma mudança radical que facilite a planificação coordenada da nossa vida em comum.
A questão económica e o quadro da União Europeia
O otimismo de que falamos parece também passar por cima de alguns fatores essenciais para entender o que significam as crises para o capitalismo e como atuou historicamente face a elas. O primeiro é vincar um elemento fundamental: as crises são partes constitutivas do capitalismo. Ou seja, uma crise, por si só, não deve entender-se como uma etapa que necessariamente permite adivinhar o fim do capitalismo nem o seu declínio. Trata-se de mais uma fase da dinâmica do capital na qual este se confronta com as suas próprias contradições, de maneira se calhar mais notória do que em etapas de maior estabilidade.
O fato de que durante uma crise seja mais notada a indiferença do capital pela vida humana e as suas condições materiais, nem sempre representa a antecâmara de uma mudança para um projeto social mais equitativo. O capitalismo, como sistema, é uma engrenagem lógica imoral, cujo funcionamento depende da coisificação das relações sociais. O que desnudam as crises é essa (ir)racionalidade subjacente, mas isso não nos diz nada sobre a eventual superação da ordem existente.
O que acontece normalmente numa crise é o contrário, mais ainda quando na sua fuga para a frente o capitalismo não encontra contra-poderes medianamente consistentes. Nessas situações, o capital tende a concentrar-se e, consequentemente, as brechas sociais agigantam-se. O facto disto provocar confrontos cada vez mais azedos não vai traduzir-se numa batalha que resolva as contradições entre o capital e o trabalho, pois o primeiro dispõe de meios suficientes para forjar novas relações sociais que desviem os conflitos para outros cenários, ao mesmo tempo que explora novas formas de gerar lucro: incrementando a divisão racial ou de género no interior das classes subalternas, externalizando serviços prescindíveis, deslocalizando determinados setores económicos, condicionando a mobilidade dos trabalhadores, etc.
Segundo já sugeriram economistas como Michael Roberts, a crise económica que se avizinha tem muitas probabilidades de ser muito superior à de 2007-08 (ou à crise fiscal europeia de 2011), já que arranca sem que a crise anterior tenha resolvido as suas próprias contradições, num cenário económico internacional carregado de incertezas. A isto tínhamos que somar que os próprios instrumentos que se utilizaram para a saída da crise de 2007-08 condicionam o modo como se vai enfrentar esta: a aposta na política monetária e no resgate bancário apenas fortaleceu o poder dos setores especulativos face às conjunturas críticas por vir. Para nos referirmos novamente ao contexto espanhol, estamos a assistir a esta tendência nas medidas que o executivo está a implementar com o objetivo de travar a crise social em curso: a moratória sobre as hipotecas ou a ativação dos créditos para o pagamento de rendas, ainda que possam ser parcialmente paliativas, não comprometem de modo algum os interesses dos setores rentistas e financeiros da economia nacional.
Por seu lado, a União Europeia replicou por estes dias a mesma dinâmica a que assistimos depois de 2011, com as reticências de diversos Estados-membros (em particular, Alemanha, Holanda, Finlândia e Áustria) à criação “coronabounds” ou “bounds de reconstrução” que mutualizem a saída da crise e com a sua aposta em revalidar os mecanismos de resgate financeiro através do MEDE (Mecanismo Europeu de Estabilidade).
Para além de tudo mais, estes apenas estariam isentos de contrapartidas se os seus fundos se destinassem à rubrica sanitária, o que deixariam assim de lado um potencial apoio a todas aquelas políticas destinadas a salvaguardar o emprego ou preservar os serviços públicos. Neste contexto, o papel da UE como agente geopolítico, já muito transtornado desde o início da guerra comercial entre os Estados Unidos e China, pode ficar ainda mais debilitado pela perda da legitimidade interna. Ainda que, devido às desigualdades do poder económico e às fortes relações de dependência entre os países do norte e do sul, seja difícil imaginar uma desestruturação imediata do mercado comum europeu, a ruína de um projeto político pode conduzir a UE a médio prazo a uma situação crítica, senão de dissolução.
A questão geopolítica
Como se isto fosse pouco, não se pode descartar que a (des)ordem internacional dê lugar a um novo belicismo. É conhecida a tendência do capitalismo para resolver as crises e reconstruir-se através da sua “destruição criativa” por excelência: as guerras. O que aconteceu desde a última crise na Líbia e na Síria – para além das tensões, sanções e ameaças à Venezuela e Irão ou outro tipo de intervenções como o recente golpe perpetrado na Bolívia – poderia servir-nos de exemplo.
A reativação da economia precisa de recursos de baixo custo e o saque destes em períodos de declínio é uma das múltiplas políticas, não isentas de convulsões, que os centros capitalistas adotam para alcançá-la. Este risco é ainda mais inquietante, numa época atravessada pela deterioração ecossistémica, a crescente escassez de recursos energéticos e a possibilidade de que pandemias como a vivemos estes dias voltem ciclicamente.
O cenário que se abra deverá contar, ainda, com um fator que até agora parecia parte do passado: a escalada nuclear recomeçada pelos Estados Unidos num cenário global de tensão, no qual a potência norte-americana abandonou ou cortou com todos os tratados que pudesse colocar-lhe um travão.
Finalmente, é de prever que as intervenções militares e as suas “variantes”, somadas à catástrofe climática, provocarão novos movimentos migratórios de populações à procura de condições de vida minimamente seguras. Face à pressão migratória e ao efeito da crise económica nos chamados países desenvolvidos, é possível que o neoliberalismo fomente as suas alianças políticas com as extremas-direitas populistas, impulsionando um reforço das fronteiras que acompanhe as suas medidas económicas de austeridade.
Outros dos elementos decisivos da fase em que estamos a entrar será a posição hegemónica da China. Ainda que seja apressado declarar o fim do império norte-americano, não podemos desmerecer a nova função que o país asiático tem vindo a desempenhar na geopolítica global, o qual só se tem incremntado (especialmente em termos de visibilidade mediática) com a crise do coronavírus.
Como destacou David Harvey, a China cumpriu um papel fundamental na saída da crise financeira de 2008: o investimento massivo na construção de infraestruturas e habitações, somado à expansão do comércio externo, deram lugar a excedentes de capital e à realização de valor. Para Harvey, encontramos-nos frente a uma tessitura na qual é duvidoso que o gigante asiático, que mais recentemente começou a reconfigurar o seu modelo produtivo para o setor de serviços e para o investimento em I+D, possa voltar a estar nesta função.
Em relação aos Estados Unidos, Harvey prevê que um eventual afundamento da economia derivado da crise sanitária poderia dar lugar a um fechamento autoritário da administração Trump, que numa situação de emergência contemplaria até a nacionalização de setores produtivos chaves como o automóvel.
Em definitivo, tratar-se-ia de uma política destinada a complementar a liquidez que a Reserva Federal está a injetar na economia durante as primeiras etapas da crise (e que, tal como sucede no contexto da UE com o Banco Central, em termos quantitativos privilegiaria os interesses do bloco do poder predominante sobre as políticas sociais paliativas). Quem sabe se não vamos assistir a uma mudança do “Make America Great Again” por um singular “Save America First” (para evocar o livro de 1938 de Jerome Frank, advogado do primeiro período do New Deal), que redefina o discurso protecionista num contexto de progressiva desglobalização dos fluxos económicos.
Por outro lado, inclusive se a China conseguisse estender a sua hegemonia política-económica na nova ordem mundial, a hegemonia militar dos Estados Unidos, com um investimento em defesa superior ao agregado da despesa de, pelo menos, os oito países seguintes (e com um orçamento em crescimento descontrolado), está muito longe do seu alcance. E, como sabemos, não há nada mais perigoso que um império em declínio com a autoestima ferida e uma capacidade de destruição tão vasta, com quantidades enormes de bases militares e soldados repartidos por todo o globo.
Este processo de militarização poderia afetar tanto as relações internacionais como o conjunto da vida pública. Desde há quase duas décadas, tanto nos Estados Unidos como noutras partes do mundo existe uma crescente naturalização social da vigilância e o controlo que pode vir a ser favorecida pela consequências psicossociais do confinamento. Como se não bastasse, durante a crise do coronavírus estamos a assistir em diversos países à proliferação de discursos de patriotismo folclórico que dão apelam à “unidade nacional” e a expressões coercivas que alimentam a desconfiança e o medo entre as pessoas. Trata-se de uma estratégia que fortalece o imaginário reativo do “polícia que trazemos dentro de nós” (uma espécie de socialização viral da lei da mordaça), com a trama adicional do uso futuro dos dados que se terão acumulado neste meses por via de aplicações e redes sociais, independentemente destes terem sido fornecidos com a intenção de contribuir socialmente para a superação da emergência sanitária.
A crise ecológica
Outro argumento que nos suscita dúvidas é o que quer ver na suspensão produtiva surgida pela Covid-19 uma oportunidade imbatível para ativar processos de transformação social que respondam às exigências da crise ecológica. Partilhamos a necessidade de desafiar o modo como a crise ecológica está a ser omitida pela emergência sanitária, algo que invisibiliza a possível relação entre ambas. (Como sinalizou o biólogo norte-americano Rob Wallace, ainda não haja uma certeza absoluta sobre a origem da pandemia, esta crise permite sublinhar o vínculo cada vez mais notório entre a extensão geográfica do modelo agro-industrial, as suas condições de produção e a ativação de estirpes virais que até ao momento estavam isoladas em zonas selvagens da natureza ou de que eram portadores animais não incorporados ainda na dieta humana).
No entanto, somos céticos para com o entusiasmo daqueles que olham com esperança para a notícia da diminuição das emissões de gases de efeito estufa durante estes meses, na medida em que consideramos que tem um valor praticamente insignificante se não houver continuidade. Como é sabido, o problema das emissões de gases de efeito estufa não reside nas emissões pontuais, mas sim na sua acumulação histórica. E, ao contrário do que gostaríamos de acreditar, tudo indica que o aumento sustentado de emissões voltará quando passe a emergência sanitária, inclusive é provável que se acelere com a justificação de reativar a economia, tão dependente dos combustíveis fósseis.
De fato, encontramos já indícios demasiado preocupantes que apontam para a possibilidade da legislação existente sobre a regulação ambiental ser aligeirada – ou até suprimida – num futuro imediato. Assim, há apenas dois dias, seguindo as exigências da indústria petrolífera, a Agência de Proteção do Meio Ambiente dos Estados Unidos (EPA na sigla em inglês) anunciava que, face à incerteza que a Covid-19 trazia à economia norte-americana, se suspendiam temporariamente as leis de proteção ambiental. É evidente que num cenário político de exceção, no qual é mais viável que se reforcem as posturas autoritárias, e face à inexistência de tratados internacionais a cumpror (recordemos que a administração Trump se retirou dos Tratados de Paris), a medida abre a possibilidade de que este tipo de atuações proliferem e se prolonguem no tempo. Para além disso, o exemplo norte-americano poderá perfeitamente ser replicado em todos aqueles países que não queiram perder competitividade, de acordo com a lógica do crescimento económico capitalista.
Para concluir, no contexto que se avizinha não podemos descartar que dentro do próprio ecologismo, em contraposição àquelas vozes que propõem mudanças sistémicas, se fortaleçam a médio prazo posturas de caráter bio-regionalista, eco-nacionalista e eco-fascista, com um forte preconceito classista e racista, que invoquem melancolicamente passados míticos da conexão com a natureza ou abracem diversas variantes de um anti-humanismo neo-malthusiano.
Outro Plano Marshall.. é possível?
Relativamente a este panorama caberia perguntar-se como se encontra posicionada a esquerda social e política, para além das projeções imaginárias que temos questionado. Obviamente, não desprezamos a importância da imaginação política sobre a evolução futura do curso da história mas queremos questionar o seu desligamento radical de uma análise medianamente precisa da correlação de forças.
Durante estes dias temos ouvido alusões à necessidade de implementar um novo Plano Marshall para a Europa, que neste caso seja promovido pelas próprias instituições europeias, em vez de contar com a tutela do sócio norte-americano. Na realidade, trata-se de uma visão altamente paternalista da viragem sócio-política que se aproxima, que autonomiza a centralidade do Estado nos processos de transformação.
Algo semelhante pode-se dizer de quem advoga a implementação de um Green New Deal. Em ambos os casos não se presta atenção ao facto dos processos históricos do século XX em que se inspiram terem sido impulsionado pela acumulação de poder pelo movimento trabalhador durante um ciclo de longa duração, que teve, entre outros, marcos tão relevantes como os acontecimentos revolucionários de 1848, 1871 e 1917. Quem clama por ativar uma matriz neokeynesiana de políticas públicas com frequência se esquece de analisar mais especificamente quais foram as circunstâncias que propiciaram o original histórico do que defendem.
Como sinalizaram autores como Mike Davis ou Noam Chomsky, a força dos sindicatos industriais norte-americanos foi decisiva durante os anos trinta para que o presidente Roosevelt impulsionasse a segunda ronda de medidas sociais do New Deal, que apesar de tudo não chegou ao ponto de criar um sistema de saúde público (um défice que gera grandes estragos na população norte-americana, como se torna claro neste dias).
Por outro lado, essa dialética entre o poder sindical e o Partido Democrata, somada ao clima pré-macarthista e às acusações de querer implantar um regime comunista nos Estados Unidos, impediram que a classe trabalhadora norte-americana consolidasse uma organização política própria de referência (outra conta pendente que se arrasta até hoje).
Enquanto que na Europa, segundo relembra Josep Fontana, o Plano Marshall foi antes de mais um exercício de contenção que marcou, em 1947, o início da Guerra Fria, com a consequente dependência dos Estados Unidos a todos os níveis (inclusive o energético, com a viragem decisiva para o petróleo que, como assinalaram Timothy Mitchell ou Andreas Malm, impulsionou as multinacionais petroquímicas dos EUA). Este plano de contenção não só foi implementado pelo governo dos Estados Unidos com a intenção de aplacar a irradiação da União Soviética para a Europa ocidental, mas também supôs um pacto de conjuntura entre as forças do capital e do trabalho no contexto da pós-guerra que nem sempre satisfazia as aspirações das classes subalternas.
Segundo destacou há décadas E.P. Thompson, ou mais recentemente Selina Todd, o período 1942-48 contribuiu para que as classes trabalhadoras da Europa ocidental alcançassem uma hegemonia social sem precedentes que por sua vez permitiu ao governo britânico levar avante uma agressiva agenda de reformas sociais – inclusive a nacionalização de setores estratégicos –, que está na origem do Estado Social. Mas essas reformas eram percebidas por amplos setores do movimento de trabalhadores e da cultura antifascista como um avanço provisório para o socialismo, não como uma conquista definitiva. O Estado Social era um campo disputa entre quem reivindicava a herança dessa imaginação histórica e a sua progressiva conversão no que o próprio Thompson denominou um “Estado de oportunidade”: um modelo social que, em vez de se constituir com um horizonte nivelador que garantisse a felicidade coletiva, promoveu a consciência individualista segundo a qual a igualdade era concebida como um ponto de partida para a competitividade entre pares.
Que este segundo modelo se impusesse preparou o caminho para as teses da Escola de Chicago, com Friedman à cabeça. O que fez a contrarrevolução neoliberal foi construir um novo jogo de equilíbrios no qual o separatismo das elites (a blindagem dos interesses do 1%) e a crescente desigualdade de rendimentos e de acesso aos serviços sociais se conjugaram com um modelo meritocrático de reconhecimento económico e cultural falacioso.
A falta de uma cultura igualitária por detrás deste modelo acabou por reproduzir, nesse sentido, a desarticulação das classes trabalhadoras a que aludimos mais acima. Isto dificulta enormemente a construção de formas de solidariedade que não surjam simplesmente como uma irrigação do Estado para a sociedade civil através de políticas redistributivas; um clima social no qual a falta de acesso ao emprego e certos bens de primeira necessidade (como a energia), somada à crise de cuidados e ao bloqueio da imaginação de alternativas radicais e viáveis, constituem um cocktail subjetivo enormemente inflamável.
A esquerda face a uma nova encruzilhada histórica
Se queremos travar uma possível involução das nossas sociedades que capitalizaria num sentido reativo as diferenças abismais já existentes em termos de classe, género e raça, a esquerda tem de atuar de maneira coordenada em diversas frentes e dotar-se dos contrapesos adequados. Não temos a menor dúvida de que as expressões de solidariedade e de consciencialização cidadã a favor do setor público que presenciámos emocionados por estes dias ficarão como um capital político incalculável para rearmar toda a forma de resistência social. Mas o trabalho de formação de um novo bloco histórico não pode responder novamente aos atalhos discursivos que hegemonizaram o ciclo da “nova política” – notavelmente presente em quase todas as geografias do Estado espanhol –, um aspeto que ajuda a explicar a porosidade muito escassa dessas organizações para canalizar as reivindicações provenientes dos setores sociais desfavorecidos.
Contudo, também desejamos identificar alguns elementos que transmitem esperança quando olhamos para o futuro. Mesmo que não acreditemos que se deva sobrevalorizar a capacidade dos movimentos cidadãos e da “nova política” para acabar a desestruturação neoliberal da vida pública, a verdade é que o ciclo aberto em 2008 não apenas fortaleceu o poder das finanças. Também forjou espaços de aprendizagem valiosos para as formas de contestação dentro do tecido associativo dos bairros e noutros âmbitos de conflito e resistência sócio-política de base.
De qualquer forma, é possível que, no futuro imediato, a raiva e a consciência acumuladas durante o movimento cidadão detonado em 2011 devam encontrar outra modulação política. A memória viva dos protestos sociais e a sobrevivência de redes informais de organização comunitária criadas desde então oferecem uma boa plataforma a partir da qual forjar as lutas que virão, ainda que provavelmente estas apresentarão uma composição social diferente da do ciclo anterior. No caso espanhol, essas lutas deverão para além do mais assumir o desafio de resistir à possibilidade de uns novos “Pactos da Moncloa” consolidarem a autonomia da política partidária, com a justificação de travar a incerteza económico-social.
Face a uma emergência como a atual e às suas prováveis consequências dramáticas, antes de imaginar futuros desligados da realidade histórica que nos coube viver, e com o propósito genuíno de construir uma força transformadora em benefício da maioria, é importante que a esquerda disponha de uma radiografia o mais precisa possível da situação que enfrenta. Não para ficar-se num mero nível de análise, mas para inscrever de modo efetivo a sua ação no processo político que abre a crise da covid-19.
Se, como assinalou Bertolt Brecht, “a esperança está latente nas contradições”, então temos de enfrentar estas com determinação, sem no entretermos com previsões auto-realizáveis. Só desta forma será possível constituir formas coesas de contrapoder que possam antecipar-se às elites e resistir às suas “políticas inevitáveis” de forma imaginativa, para assim ativar aquelas alternativas que respondam às necessidades e anseios de uma vida melhor em comum.
Alejandro Pedregal é doutor em Artes e leitor na University-Wide Art Studies da Universidade de Aalto, na Finlândia. Jaime Vindel é doutorado em História da Arte e professor na Universidade Complutense de Madrid. Texto publicado no El Salto Diario.