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Defender a performance de Tertuliana é defender a Universidade

20 de outubro de 2024

Na última quinta-feira (17), uma performance na UFMA ganhou forte repercussão na mídia e nas redes sociais. A historiadora da arte, cantora, piauiense e travesti Tertuliana Lustosa fez a performance "Educando com o cu" ao som de funk, durante um seminário com o tema "Dissidências de gênero e sexualidade". A performance foi alvo de reações virulentas, tanto da direita quanto de setores da esquerda. Do lado da extrema direita, o deputado inimigo da educação Nikolas Ferreira - conhecido por sua performance transfóbica na tribuna da Câmara dos Deputados - acionou a PGR por supostos crimes que a performer teria cometido. Já do lado progressista,o professor e cientista político Luís Felipe Miguel fez dois posts em sua página de instagram argumentando que a universidade não seria espaço para esse tipo de expressão e que Tertuliana estaria dando munição para a extrema direita.

Ora, não é de se espantar que o deputado Nikolas use de qualquer subterfúgio para atacar as universidades. Como presidente da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, o deputado se dedica diuturnamente para inventar qualquer factoide improcedente para perseguir professores, limitar a liberdade de cátedra e espalhar mentiras sobre o que se faz em uma universidade pública. A extrema-direita não tem precisado de nenhuma "munição" para fazer esse trabalho sujo contra a educação, vide os vídeos sobre a mamadeira de piroca em 2018.

Espanta vermos ataques à colega que se tornou o alvo momentâneo nessa guerra vindo de progressistas que supostamente dividem a mesma trincheira contra a extrema direita. Os movimentos negro, trans, feminista, antiproibicionista têm sido usados como bodes expiatórios dos fracassos da esquerda de conjunto. Ignorando as décadas de ataques aos trabalhadores e a precarização dos direitos sociais nos anos de neoliberalismo - da qual parte da esquerda se adaptou, cedeu e enfrentou bem menos do que deveria - quem atribui as sucessivas derrotas eleitorais e a dificuldade estrutural da esquerda conquistar as maiorias sociais nos movimentos "identitários" está somente desaguando expiação de sua própria impotência.

No caso das universidades - que não são a mesma coisa e nem têm a mesma função da esquerda organizada, é sempre bom lembrar - essa frustração é canalizada a partir de um saudosismo da época em que as universidades não eram frequentadas por outros corpos, em um tempo de homogeneidade racial e de classe na conformação da elite universitária do país. Com a implantação das cotas raciais e sociais, outras expressões epistemológicas adentraram com força nas universidade e têm sido mais tematizadas no debate tal como o funk, o brega, a cultura ballroom, os torés indígenas, o rap. Não é um acaso que toda essa perseguição contra Tertuliana venha junto da vitória da aprovação das cotas trans na Universidade de Brasília. É um efeito rebote e uma tentativa constante de frear novas universidades na incorporação desses avanços.

"Por que não educar com a cabeça?", pergunta Luis Felipe Miguel. Essa é uma pergunta que interdita a possibilidade de outras produções sensoriais, artísticas e que não seguem o modelo hegemônico de produção de conhecimento. O que fazemos então com os cursos de Dança? Banimos as Artes Cênicas da Universidade? A universidade não se limita e nunca se limitou apenas ao intelecto descolado do corpo. É uma ilusão também achar que, banindo essas expressões de conhecimento, os artigos escritos sobre gênero em revistas de circulação nacional, limpos dos cus e dos movimentos das rabas, terão paz da extrema direita.

Há problemas graves na educação e precisam ser enfrentados. Será que as dificuldades de leitura que hoje encontramos nas salas de aula não têm a ver com o Novo Ensino Médio, os anos de enclausuramento da pandemia, a ansiedade generalizada produzida pela precarização e pela velocidade do tempo das redes sociais? Será mesmo Tertuliana o problema da educação? Lutemos junto com Tertuliana por mais verbas, por um Ensino Médio de qualidade, por bolsas permanência, por salários justos para os professores.

Defender a universidade da extrema-direita é defender o conhecimento em todas as suas expressões. Atacar Tertuliana não vai avançar nenhum passo nesse sentido.