José Correa Leite, 18 de janeiro de 2021
Um dos ganhos políticos da luta ambiental no ano de 2020, em especial da Assembléia Mundial pela Amazônia, foi visibilizar para amplos setores da população brasileira e mundial o que todo ambientalista sabia: a grande agroindústria corporativa é, ao lado da produção de combustíveis fósseis, a grande responsável pelos problemas ambientais do planeta. E que, dentro dela, a pecuária é responsável por 80% do desmatamento da Amazônia, através da conversão de terras em terrenos de pasto.
Isso já era afirmado no relatório Estado das Florestas do Mundo 2016, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), ganhando tonalidades trágicas com a expansão crescente das queimadas na região sob o governo Bolsonaro. Mas o processo de expansão da pecuária na região decolou nos governos Lula e principalmente Dilma. Segundo dados do IBGE, a participação da região norte no rebanho bovino nacional, que era de 14% em 2010, passou para 22% em 2016, particularmente em Rondônia e no Pará. Em 2019, o número de reses no país chegou a 214,7 milhões. Mato Grosso concentra 31,7 milhões delas, mas o município com a maior quantidade de bovinos foi São Félix do Xingu (2,2 milhões), no Pará.
Esta informação é estratégica para definirmos o que precisamos superar para atingirmos um Brasil sustentável. A atividade mais destrutiva para a Floresta Amazônica e seus povos é a pecuária, que deve ser proscrita na região. Ela se integra e estimula o avanço de outras atividades igualmente predatórias, como a extração ilegal de madeira e o cultivo da soja (que avança nas áreas de pasto consolidadas e pressiona cada vez mais a Amazônia e o Pantanal). A criação de gado bovino constitui, na atualidade, o coração da predação da Floresta em nosso país (que em outros países da Panamazônia pode ser ocupado por atividades como o garimpo - aqui também responsável pelo envenenamento dos rios e morticínio de muitos povos indígenas - ou o petróleo...).
Esta atividade está organizada como uma vasta cadeia produtiva, em que milhares de criadores (por vezes utilizando trabalho análogo ao escravo na base) fornecem bois para uns poucos grandes matadouros e frigoríficos, no ponta da pirâmide, que por sua vez se vinculam a toda a indústria alimentícia brasileira e internacional. A pandemia mostrou que a cadeia produtiva da carne - todo tipo de carne - é uma das atividades mais insalubres exercidas pelos seres humanos e, em todos os países, [é um foco central de difusão da covid-19. E é uma atividade fortemente monopolista: três empresas, a JBS, a Marfrig e a Minerva, alavancadas pelo apoio do BNDES na política de formação de conglomerados econômicos brasileiros, nos governos Lula e Dilma, passaram a controlar grande parte da produção nacional. Esta cadeia de abastecimento é de muito difícil rastreabilidade, marcada pelo transporte ilegal de gado entre estados e regiões e pelo conluio dos governos em todos os níveis. A questão extravasa, então, a Amazônia.
Mas há muito mais envolvido no combate ao pecuarismo e à atividade predatória que ele desenvolve.
De um lado, os pecuaristas constituem um setor do empresariado brasileira com raízes profundas, sendo historicamente um dos segmentos mais conservadores e regressivos das classes dominantes brasileiras. Eles estão, nos marcos do atual pacto federativo brasileiro, politicamente sobre-representados e hiper-atuantes através das bancadas ruralistas. A conciliação com estes interesses foi central para colocar a defesa destes setores como agenda prioritária nas relações econômicas internacionais do Brasil. Foi central para produzir a regressão da economia brasileira, que chegou a ser bastante industrializada, à atual condição de país primário-exportador na atual divisão internacional do trabalho, análoga à que tínhamos antes de 1930. Ela caracterizou os governos Lula e Dilma e foi central para reestruturar o conservadorismo e tudo que está hoje ligado a ele: negacionismo, racismo estrutural, xenofobia, naturalização das desigualdades, política do ódio… Ela mostrou-se um erro trágico que não deve ser repetido!
De outro lado, a imensa maioria da carne produzida no Brasil é consumida dentro do próprio país (quase 80%), em um sistema alimentar que combina excesso de proteínas animais para uma parte da população com má alimentação e fome para outra. A atual crise pandêmica, econômica, ambiental e social só agrava esta situação, fazendo recrudescer a ameaça da fome (que nunca desapareceu)! Um sistema alimentar com cada vez mais alimentos ultraprocessados, que associa fome, obesidade e doenças clínicas comórbidas. As iniciativas do Ministério da Agricultura contra o Guia Alimentar Brasileiro em 2020 mostram uma articulação muito consciente das indústrias alimentícias e do ruralismo contra as barreiras à difusão da comida lixo no país. Tornar a alimentação uma escolha consciente é muito importante para a saúde da população brasileira, trabalha valores qualitativos e não só quantitativos e é uma causa cada vez mais popular. Isso se expressa no crescimento do número de pessoas que se autodeclararam vegetarianos ou veganos que, segundo dados do Ibope, quase dobraram entre 2012 e 2018, atingindo então 30 milhões de pessoas (14% da população). Independente de como se avalie o tema em si, ele se cruzou de maneira muito direta com a preservação ambiental e deve ser fortemente abraçado não só pelo movimento ambiental mas pela esquerda.
Por fim, como é cada vez mais evidente que a grande agroindústria capitalista constitui, junto com a queima de combustíveis fósseis, a atividade humana de maior impacto ambiental, isso coloca em discussão o conjunto este setor e seu lugar na economia brasileira - que a reprimarização da economia brasileira voltou a colocar como eixo da economia. Produzimos hoje alimentos mais do que suficientes para alimentar toda a humanidade (para mais de 12 bilhões de pessoas...), mas, além da desigualdade social que gera quase um bilhão de pessoas passando fome, boa parte da produção de grãos (como soja e milho...) vai para alimentar animais de corte. Além da grande indústria agropecuária ser petróleo intensiva, ela destrói as florestas tropicais e outros biomas estratégicos, a biodiversidade e os sistemas hídricos do planeta, desequilibra com o uso abusivo de fertilizantes os ciclo biogeoquímicos do nitrogênio e do fósforo, produz imensas zonas mortas nos oceanos etc. A produção de alimentos saudáveis é, por todo o mundo, em grande medida feita pela agricultura familiar ou por pequenas empresas, que tem que enfrentar a competição desleal das megacorporações do agronegócio e da indústria alimentícia (sempre apoiados pelos governos de seus países). O lema da Via Campesina há duas décadas - “os camponeses esfriam o planeta” - se torna cada vez mais atual, frente ao impulso destrutivo das grandes corporações agroindustriais. A greve de 2020 dos camponeses indianos contra as políticas de liberalização da agricultura do país mostram o alcance estratégico global deste tema. Da mesma maneira, o papel de vanguarda que os agricultores europeus podem ter no combate ao Acordo de Livre Comércio União Europeia-Mercosul.
A situação da grande agropecuária industrial é, de conjunto, insustentável - ambiental, social e sanitariamente. É porque este é um elo estratégico na cadeia de devastação interminável do planeta que mobilizações nas grandes cidades do mundo associam a devastação da Amazônia ao boicote a empresas que não apenas contribuem para a destruição deste bioma estratégico, mas também produzem comida lixo. Como coloca a campanha inglesa, “Tire a Amazônia do seu prato”.
Podemos abordar a discussão de diferentes pontos de vista: ambiental, político, nutricional, direitos humanos, direitos dos animais... Mas no mundo real isso se combina para produzir o país e o planeta que temos hoje e deve se somar para produzir alternativas. Este é um debate que tem que ser levado, com seu caráter estratégico e com o peso que merece, para muitos milhões de pessoas a mais no Brasil, além dos trinta milhões que já se mostraram sensíveis ao tema.