Fernando Silva*
SÃO PAULO - Encerrado o segundo turno das eleições municipais 2020, confirmaram-se as tendências verificadas no primeiro. Bolsonaro e a extrema direita foram os principais derrotados, o país fez uma inflexão na direção da direita mais tradicional, que favoreceu sobremaneira grandes partidos. DEM, PSDB, MDB, PSD, PP são os partidos que mais obtiveram prefeituras no país; também foram os principais vencedores nas cidades com mais de 200 mil eleitores, com exceção do PP.
A esquerda e a oposição a Bolsonaro no campo progressista capitalizaram pouco o desgaste crescente do governo, mas estiveram longe de serem alijadas da disputa, derrotadas num sentido mais estratégico, pelo contrário começa a se recolocar o cenário, em que pese os fraquíssimos resultados do PT (apenas quatro vitórias nas principais cidades e nenhuma em capital). PT, PCdoB, PSB e PDT diminuíram o número de prefeituras sob seu comando em relação a 2016, ainda que o PT tenha ido ao segundo turno em 15 cidades, disputando de forma muito altiva Recife, com Marília Arraes, assim como o PCdoB com Manuela d´Ávila em Porto Alegre. Ciro Gomes e o PDT venceram em Fortaleza e Aracaju, mas tiveram resultados ruins em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. O PSB teve vitória expressiva em Recife, ainda que às custas de lançar mão do vale-tudo das fakes news e do antipetismo para agregar o voto da direita no segundo.
A principal novidade na esquerda foi o protagonismo que o PSOL adquiriu. Foi o partido politicamente mais vitorioso da esquerda, em que pese eleitoralmente ter vencido apenas em Belém, capital paraense, com Edmilson Rodrigues. Além desta importante vitória eleitoral no Norte do país, o principal e extraordinário fato da esquerda e do PSOL em particular, foi a chegada de Guilherme Boulos do PSOL ao segundo turno das eleições em São Paulo, principal cidade do país.
Some-se a esse fatores a votação expressiva nas eleições proporcionai, com 88 vereadores, com muitos destaque, entre eles o de fazer a principal bancada na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, triplicando a bancada em São Paulo, elegendo pelo país diversas candidaturas negras, jovens, femininas como uma expressão mais nacionalizada e homogênea nos votos e no perfil partidário.
A explicação primeira para o momento atual da esquerda é um profundo processo de renovação, característica central de uma reorganização de ciclo na esquerda brasileira. O PSOL, no âmbito partidário, é o que mais tem capitalizado a simpatia nas camadas mais jovens da população (como verificado nas projeções de voto em Boulos na faixa etária entre 16 e 24 anos). Ainda que sob uma etapa reacionária, o PSOL já vinha num paulatino crescimento desde as eleições de 2016, que foi atenuado mas sobreviveu nas eleições de 2018, no auge da onda direitista no país.
A crise do velho ciclo da esquerda e suas representações, a polarização e politização de camadas mais jovens da sociedade, a emergência das pautas e da luta antirracista, feminista, anti-homofóbica e transfóbica, o novo lugar da luta sócio-ambiental no país, o lugar do partido na oposição implacável a Bolsonaro... tudo isso tem feito do PSOL o partido de maior referência para uma renovação da esquerda.
Pela primera vez o partido é efetivamente empurrado para uma maior inserção popular e periférica, seja pelo êxito da aliança com o MTST em São Paulo e a adesão dos seus militantes ao partido, seja pela centralidade da luta antirracista. Categoricamente, é possível compreender que, como resultado destas eleições, o PSOL entra num novo patamar de disputa da hegemonia do pensamento e do projeto de esquerda no país para os próximos anos, o que vai requerer necessariamente uma atualização programática, o aprofundamento da renovação combativa e anticapitalista da esquerda, e uma capilarização nacional e social.
O desgoverno Bolsonaro antes, durante e depois das eleições
O pós-eleições já se apresenta com os dramas e desafios resultantes do novo momento histórico pautado pela pandemia e pelo aprofundamento da crise econômica e social, que se avizinha no planeta e parece inevitável para o Brasil.
A busca pelas razões e condições desta inadiável renovação na esquerda deve partir da constatação de que o ano de 2020 impôs derrotas e crises ao projeto do bolsonarismo. Ainda que a relação de forças não tenha se modificado favoravelmente para o nosso lado (basta ver que a direita tradicional saiu vitoriosa das eleições municipais) não estamos na mesma conjuntura de 2019. Quando a pandemia se instalou no Brasil, a resposta do governo foi o absurdo negacionismo ao lado de uma ofensiva autoritária nitidamente golpista do presidente e entorno, que tinham como alvos centrais as próprias instituições da democracia burguesa. O negacionismo significava a guerra aberta aos governadores e prefeitos, o golpismo tinha como alvo o Congresso Nacional e o STF.
Mas o extremismo bolsonarista não tinha e não tem maioria na sociedade, em que pese a popularidade do presidente (que sempre oscilou durante este ano, mas que praticamente não baixou para menos de 30%). Além da loucura pró-intervenção militar da extrema direita não ter apelo popular, a grande maioria da classe dominante, seus partidos tradicionais, a maioria da mídia corporativa e as instituições da República rechaçaram essa ofensiva. Os sinais de retomada de mobilização de rua, em meados de junho, interrompidos pelas condições da pandemia, foram o suficiente para mostrar que nas ruas a oposição era maior que a direita bolsonarista.
Bolsonaro e sua ala mais fanática foram derrotados nesta ofensiva. Mas o presidente se readequou, surfou na onda do auxílio emergencial (ao qual francamente contrário), buscou o "Centrão" para ter alguma sustentação parlamentar e recuou das provocações ao Poder Judiciário. A contradição é que a manutenção deste governo aumenta o ônus para a maioria do povo, pois o desastre também se aprofundou: a destruição ambiental com "a boiada passando", a genocida política sanitária responsável pelas mortes quase na casa das 189 mil.
Mas a conta da pandemia e da crise econômica começaram a chegar para o presidente mesmo antes das eleições, quando as pesquisa de opinião começaram a detectar uma perda expressiva da sua popularidade na maioria absoluta das capitais do país. Eis que chegou o mês de novembro. Logo de cara veio a derrota de Trump nas eleições estadunidenses, esta, registre-se, a principal derrota de Bolsonaro e seu projeto até aqui, pois agrava sobremaneira seu isolamento político num continente que já vinha numa ascensão progressista, verificadas, entre outros eventos, nas eleições bolivianas, no resultado do plebiscito Constituinte chileno, nas mobilizações democrática no Peru.
Logo em seguida vieram o apagão no Amapá - uma prévia do que pode vir a ser o país no próximo ano sob o caos na infraestrutura e ameaça das privatizações -, a volta da curva pandêmica ascendente e, para coroar, os números recordes do desemprego no país. Foi neste cenário que a maioria ampla das candidaturas apoiadas pelo presidente ou com elas identificadas foram derrotadas nas eleições. Basta citar que, embora Bolsonaro não esteja mais nesse partido, o PSL, a grande estrela das eleições de 2018, não venceu em nenhuma das 100 principais cidades do país, expressando também a fragmentação do antigo campo bolsonarista de 2018.
Antes de 2022 vem o 2021...
Entre os disparates intermináveis do capitão-presidente, vale destacar o do dia das eleições, quando voltou a criticar as urnas eletrônicas afirmando inclusive que "suas fontes" nos EUA afirmam que houve fraude naquelas eleições. Evidente que tal declaração se insere na preparação para 2022 da mesma tática de Trump. O discurso da fraude está no horizonte das fake news do bolsonarismo. A propósito, não foram poucos os setores e personagens da extrema direita que ensaiaram esse discurso nas eleições no primeiro turno para "explicar" o êxito de Boulos/PSOL em SP, na esteira dos suspeitos ataques que hackers fizeram ao site do TSE, atrasando a divulgação dos resultados na noite do dia 15.
Acontece que Bolsonaro deveria se preocupar muito mais com 2021. Aqui entra o desgoverno pós-eleição: não há política econômica alguma de reconstrução durante a pandemia, só a cantilena megaliberal das privatizações. Não há política sobre o que vem depois do fim do auxílio emergencial. Não há planejamento e nem infra-estrutura garantida para a imunização da população quando a vacina chegar. A destruição ambiental segue num descalabro tal que incomoda até setores do agronegócio exportador, pelas consequências comerciais e políticas que pode ter na relação com o mercado europeu e com os EUA de Biden. O próximo ano se avizinha como dramático para a maioria do povo, com o desemprego, a precarização, a manutenção da pandemia, com uma possível guerra pela vacina, que obviamente vai penalizar sobremaneira os mais pobres.
Evidente que a esquerda e a oposição a Bolsonaro precisam o quanto antes debater de forma mais desarmada possível as eleições de 2002 à luz dos resultados e das experiências positivas e negativas das eleições municipais. Como construir cenários como os dos segundo turnos de São Paulo, Porto Alegre, Belém entre outros? Como evitar cenários como o do primeiro turno e o resultante segundo turno no Rio de Janeiro? Não teremos como fugir destes desafios. Mas o que vale como recado para Bolsonaro deve valer especialmente para nós: antes de 2022, vem 2021.
Falar em aprofundar a reorganização e inserção social do PSOL significa nos prepararmos para um ano que poderá ser muito turbulento e com retomada de lutas sociais mais agudas, com o agravamento da crise e dos ataques do próprio governo e deste condomínio vitorioso da direita que têm comum com o Planalto a agenda ultraliberal.
Precisaremos voltar a levantar o quanto antes o Fora Bolsonaro diante da catástrofe que se avizinha para o povo, mas ao lado disso vamos precisar levantar demandas bem concretas para combater a crise, como a defesa do auxílio permanente, investimentos maciços na saúde para fortalecer o SUS e garantir insumos e logística para atendimento e depois imunização, defesa da vacinação gratuita para toda a população, entre outras demandas relativas ao combate ao desemprego, a destruição ambiental, a violência policial nas periferia.
Por fim, falar em unidade para 2022 precisa partir de uma unidade prática, na ação, e em frente única para defender os direitos, as demandas e as lutas sociais do próximo ano. Será esta base e a defesa de um outro projeto de Brasil que poderá começar a construir condições para uma necessária unidade em 2022 contra o bolsonarismo e a direita.
(*) Fernando Silva é jornalista e membro do Diretório Nacional do PSOL