A Google perdeu o recurso contra a multa de 2,4 mil milhões de euros aplicada por Bruxelas. Ao definir que estas empresas não podem orientar os consumidores para os seus próprios produtos, a decisão pode ter grandes consequências.
Renaud Foucard, Esquerda.net, 12 de novembro de 2021
A Google está a ser multada em 2,4 mil milhões de euros por entraves à concorrência na UE, após uma decisão de 2017 ter sido confirmada em recurso pelo tribunal geral da União Europeia. Esta é uma saga com mais de 15 anos, na qual a Comissão Europeia tem acusado o gigante tecnológico de utilizar os seus resultados de pesquisa para dar um tratamento preferencial ao seu serviço de comparação de compras em relação aos dos concorrentes.
A multa, da qual uma parte irá diretamente para o Reino Unido em virtude do acordo de retirada da UE, vem também dar razão à longa luta contra a "big tech"por parte da comissária da concorrência Margrethe Vestager. Ela sofreu uma derrota esmagadora em Julho de 2020 quando o mesmo tribunal anulou uma multa de 13 mil milhões de euros imposta à Apple por um esquema sofisticado - mas legal - de evasão fiscal.
Mas desta vez, a maré mudou e a mensagem é clara: os reguladores não permitirão que a Google e os seus congéneres gigantes tecnológicos orientem os consumidores para os seus próprios produtos. Podem agora ter de repensar todos os seus modelos empresariais em consequência disso. A Internet tal como a conhecemos - na qual a maioria dos serviços é livre de utilizar mas os consumidores pagam dando os seus dados privados - pode chegar ao fim.
O processo contra a Google
Tudo começou em 2005 quando um casal britânico, Adam e Shivaun Raff, desenvolveram o Foundem, um novo serviço de comparação de compras. O Google tinha o seu próprio serviço de comparação chamado Froogle (agora Google Shopping), embora ela própria tenha reconhecido em 2006 num documento interno que esse serviço "simplesmente não funciona".
O Foundem foi despromovido dos resultados de pesquisa do Google. A menos que o pesquisasse especificamente, ele só apareceria após várias páginas de navegação. Sem consumidores reencaminhados do motor de busca dominante, o Foundem nunca chegou a arrancar.
Tendo suspeitado que a Google estava a restringir a concorrência, Adam e Shivaun Raff tentaram convencer a empresa a dar-lhes alguma visibilidade. Em 2009, desistiram e apresentaram uma queixa à Comissão Europeia contra a Google por abuso de posição dominante.
Ao longo dos anos, vários outros serviços de comparação, tais como Expedia e Yelp, juntaram-se à queixa. Tinham também tentado competir com o Google, apenas para verem os seus sítios web repentinamente relegados para o fundo dos resultados de pesquisa pelo algoritmo de pesquisa dominante.
Em seguida, os concorrentes da Google noutros mercados começaram a acusar a empresa americana de práticas anticoncorrenciais. Uma queixa era sobre a Google forçar a pré-instalação de software gratuito da Google em telefones Android, por exemplo. Outra queixa era sobre a Google forçar os anunciantes a utilizarem os serviços da empresa se quisessem retirar anúncios no YouTube. Em suma, a Google está a lutar contra uma longa série(link is external) de casos semelhantes em recurso contra a Comissão.
É aqui que a multa da Google por causa do Froogle se torna realmente séria. Está longe de ser a maior imposta pela Comissão Europeia, mas pode ser a mais consequente porque é provável que os próximos casos de recurso utilizem este como um precedente.
Grande tecnologia e direitos dos consumidores
Empresas da Internet como o Facebook e a Google obtêm as suas receitas através da monetização dos dados dos seus clientes para lhes mostrar a pesquisa e exibição de publicidade que é relevante para eles. Constróem um conjunto de empresas - por exemplo Google Search, Google Maps, Google Shopping e YouTube - e tentam certificar-se de que quando os consumidores deixam um serviço, permanecem nesse conjunto.
A casa-mãe da Google chama-se Alphabet, e 80% das receitas da Alphabet provêm de anúncios da Google. O problema surge quando uma empresa como a Google tenta manter os consumidores no seu espaço, dificultando a concorrência.
A Google e outros gigantes tecnológicos sabem quase tudo sobre nós porque recolhem informações de muitas fontes diferentes. A lógica do atual julgamento é que essas fontes devem funcionar como entidades separadas.
No futuro, a sua experiência no Google Maps ou na comparação de voos poderá não utilizar a informação que o Google possui sobre si, ou em alternativa a empresa teria de partilhar os dados com os concorrentes. Ao mesmo tempo, a Google poderá não ser capaz de pré-instalar nenhum dos seus serviços em telefones Android, e poderá ser forçada a dar aos consumidores uma escolha justa de alternativas ao Gmail, Maps ou YouTube.
Este caso também confirma abordagens divergentes à política de concorrência na UE e nos EUA. O principal objetivo da política de concorrência, tanto nos EUA como na Europa, é a proteção dos consumidores.
Mas nos EUA, as autoridades da concorrência concluíram num caso semelhante em 2013 que o comportamento dos gigantes da tecnologia não prejudica os consumidores. A sua perceção foi que o que torna a Google rica é o que faz os consumidores felizes, que os consumidores não se importam de entregar os seus dados pessoais a esta empresa, uma vez que recebem conselhos personalizados em troca.
É claro que pode parecer que os consumidores não se importam em dar privacidade simplesmente porque não estão conscientes do quanto a Google sabe, e de quanto dinheiro ganham com os seus dados. Por exemplo, quando as pessoas começaram a notar que o que agora se chama Meta, a casa-mãe do Facebook, estava à procura de formas de ganhar dinheiro com os utilizadores da WhatsApp, isso causou grande agitação.
Os reguladores europeus seguiram uma abordagem radicalmente diferente. O seu raciocínio remonta a duas décadas atrás, desde que multaram pela primeira vez a Microsoft por pré-instalar o Media Player e o Internet Explorer com o sistema operativo então dominante Windows 95.
A mesma objeção essencial foi agora aplicada à Google. Ao bloquear a entrada de concorrentes no mercado, os consumidores perdem o benefício de potenciais inovações. Nessa lógica, desfrutamos dos serviços gratuitos do Google simplesmente porque não temos ideia de quão melhores poderiam ser as alternativas se tivessem a oportunidade de se desenvolver.
O tribunal geral da União Europeia justificou a opinião da Comissão Europeia de que o comportamento da Google é anti-competitivo. A Google pode tentar recorrer ao tribunal europeu de justiça, mas é provável que o veredito do tribunal geral continue a ser o princípio orientador para os anos vindouros, com consequências importantes para os consumidores.
Se os gigantes tecnológicos não conseguirem ganhar dinheiro com o seu atual modelo de negócio, poderão ter de encontrar outras fontes de rendimento, quer cobrando diretamente aos consumidores, quer criando um sistema mais transparente em que os consumidores estejam conscientes do valor dos seus dados e os vendam livremente. Se os EUA seguirão o exemplo, e com quem o Reino Unido optará por alinhar se as políticas antitrust começarem a divergir radicalmente entre os dois lados do Atlântico, são agora as próximas grandes questões.
Renaud Foucard é professor de Economia na Escola de Gestão da Universidade de Lancaster, em Inglaterra. Artigo publicado no portal The Conversation. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.