Rio de Janeiro, 13 de março de 2022, Setorial de Mulheres da Insurgência.
“Percebemos que a libertação de todos os povos oprimidos exige a destruição dos sistemas político-econômicos capitalistas e imperialistas, bem como do patriarcado. Somos socialistas por acreditarmos que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo daqueles que trabalham e criam os produtos, e não para o lucro dos patrões. Os recursos materiais devem ser igualmente distribuídos entre aqueles que os criam. Não estamos convencidas, contudo, de que uma revolução socialista que também não seja uma revolução feminista e antirracista garantirá nossa libertação”
(Trecho Manifesto Coletivo Combahee River).
O capitalismo patriarcal em sua fase financeirizada e globalizada coloca em risco a sobrevivência da humanidade e o próprio planeta (a conjugação das crises climática, ambiental, social, econômica e humanitária, assim como a pandemia são expressões desse processo). Em resposta, o capital impõe a cada vez maior precarização e redução do valor da força de trabalho, mais exploração sexista das mulheres - a quem é imposto cada vez mais trabalho reprodutivo sobre o qual se baseia a reprodução do capital, com o desmonte das políticas sociais conquistadas no pós-guerra -, mais controle de seus corpos e desvalorização da sua mão de obra.
Da mesma forma, cada vez mais, a crise capitalista se expressa em conflitos imperialistas, recolocando, inclusive, a ameaça nuclear de extinção da vida no planeta. Potências capitalistas retomam o expansionismo imperialista, apoiando-se, inclusive, em grupos neofascistas para disputar o comando do sistema mundial de estados. A declaração de guerra da Rússia à Ucrânia é uma agressão ainda maior às mulheres, que além de terem suas vidas em risco voltam a sofrer com a violência sexual como tática de dominação territorial. E ressaltamos que as ucranianas não são as únicas atingidas nesta nova forma de guerra híbrida: palestinas; sírias; somális; nigerianas sob domínio do Boko-Haram; afegãs de volta ao jugo dos talibãs; haitianas que ainda vivem o horror da ação das tropas internacionais comandadas por muitos anos pelo exército brasileiro em seu território (que gerou uma geração de “filhos da ONU”) e a punição imposta ainda hoje pelo capital à primeira revolução antirracista no mundo, evidenciam a centralidade da dominação de gênero e raça para a expansão capitalista na atual etapa histórica.
Desde uma perspectiva ecossocialista, percebemos que a guerra da Rússia contra a Ucrânia, e também o lugar da OTAN neste conflito, evidenciam a revisão dos padrões energéticos das potências imperialistas às custas dos países economicamente menores no próprio continente, mas também do sul global, intensificando também na América Latina impactos socioambientais desastrosos e ameaças aos povos e comunidades tradicionais. Mais uma vez, as mais atingidas são as mulheres, especialmente as racializadas.
As crises sem precedentes que vivemos e a pandemia da Covid-19, nos últimos dois anos, evidenciou a crise da reprodução social que atinge o equilíbrio constituinte do capitalismo entre produção e reprodução, afetando principalmente mulheres negras e indígenas dos países periféricos, com a aceleração dos processos de extrema precarização da vida e exploração do trabalho, e ceifando milhões de vidas (a principal força produtiva mundial), tornando ainda mais urgente a necessidade de ruptura com o modo de produção capitalista patriarcal e racista.
Os elementos desse conjunto de crises têm particularidades no cenário político brasileiro. Isso porque a constituição do Brasil como uma nação fraturada, a partir de uma história de escravização e genocídio dos povos indígenas originários e negros e negras sequestrados de África, coloca outro peso para as relações entre raça e gênero no combate ao capitalismo patriarcal racista e evidenciam que um eixo fundamental da luta anticapitalista é a luta feminista.
Vivemos alguns avanços no período de governo petista, como a elevação real do salário mínimo, algumas políticas ainda que limitadas de enfrentamento à violência contra mulheres em um país que convive há décadas com números de guerra do genocício negro e das violências de gênero, ou o acesso a certos benefícios sociais em nome das mulheres. Mas o perfil conciliatório de classe, resultante na negativa dos governos petistas em promover reformas estruturais, no travamento da pauta da legalização do aborto e mesmo na estagnação das reformas agrária e urbana, as grandes obras e megaeventos, além do recrudescimento do estado penal e da submissão a uma política de drogas reacionária e de extermínio, cobraram o preço pavimentando o caminho para o golpe de 2016 e a penetração do discurso “antissistêmico” de direita protagonizado por Bolsonaro no seio da classe. No entanto, não é possível não reconhecer que desde o golpe vivemos um retrocesso generalizado em todas as frágeis políticas de direitos antes conquistadas e um avanço brutal do projeto genocida e ecocida. O assassinato de Marielle Franco é o ponto de virada na consolidação do golpe e alçada ao poder de um projeto reacionário de traços neofascistas (burguês, conservador, anticomunista, misógino, racista, LGBTQIA+fóbico e extremamente violento).
Sob o governo Bolsonaro, as mulheres brasileiras sentem na pele a deterioração dos seus direitos e de suas vidas, com o aprofundamento da (Contra)Reforma Trabalhista que reduz os salários e as parcas garantias de um emprego para aquelas que são as mais vulnerabilizadas, em especial mulheres negras periféricas e mães; com os cortes nos investimentos públicos impostos pela emenda do Teto de Gastos (de 2016) e a drenagem cada vez maior do orçamento público pelo Sistema da Dívida. Vemos o não comprometimento com os tratados internacionais de proteção às mulheres, a feminização do déficit habitacional e da população sem-teto, a fome que atinge 19 milhões de pessoas e a insegurança alimentar que assombra outras 116,8 milhões de pessoas, o desemprego de 11,2% da população, o avanço do genocídio da população negra (80% dos jovens assassinados no Brasil são negros, e a violência contra as mulheres que atinge 52% das mulheres pretas e 40% das mulheres pardas).
Desde o início da pandemia, em março de 2020, 100.398 meninas e mulheres foram vítimas de violência sexual até 31 de dezembro de 2021, aponta o levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número de estupros contra mulheres aumentou 3,7% em 2021 em relação a 2020. Foram 56.098 casos no ano passado, ou um crime sexual a cada dez minutos e um feminicídio a cada 7 horas. Além do quê, têm crescido desde 2005 as taxas de assassinatos de mulheres pretas e pardas.
No Brasil, a violência contra as mulheres é um fenômeno constituinte de sua própria história, e tem origem na violência do Estado colonizador escravocrata, que sempre tratou mulheres negras e indígenas como coisas sem direitos humanos, negando a maternidade com a venda e assassinato dos filhos escravizados, passando pelo estupro como instrumento de reafirmação do poder econômico e jurídico, e pelo desemprego, fome, negação do aborto legalizado e da justiça reprodutiva. Sob o histórico das políticas de esterilização em massa, especialmente de mulheres negras e pobres, agora vemos reeditada experimentalmente a esterilização de mulheres em situação de rua por determinações judiciais.
Diante desse cenário de terrorismo de Estado, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Bolsonaro, promove o desmonte das políticas de proteção da vida das mulheres. E a atuação ecocida do governo Bolsonaro e sua sustentação pela bancada do boi e da bala no parlamento, com o aprofundamento de medidas de destruição socioambiental, aprofundam a ameaça às mulheres.
É importante destacar, no entanto, que a classe - e especialmente as mulheres - não foi historicamente derrotada. Há reação e resistências, ainda que fragmentárias e insuficientes, com destaque para as lutas dos povos indígenas (alçados a inimigos número um da elite brasileira e do governo) onde as mulheres são protagonistas, com Sônia Guajajara e outras lideranças próximas ou filiadas ao PSOL tornando-se referências internacionais do fortalecimento da aliança dos povos das florestas e do papel das mulheres, avançando também em sua auto-organização. As mobilizações pelo ‘Fora Bolsonaro’, que se não lograram o impeachment deste governo de morte, impediram que o desastre fosse ainda maior são outro exemplo das possibilidades de desbordamento das iniciativas da esquerda militante. As lutas protagonizadas também pelos movimentos negros para denuciar como a pandemia vem sendo usada pelo Estado brasileiro como mais um instrumento genocida, e que inauguraram a retomada das ruas pela esquerda no pós covid-19, também são mostra alentadora de que a nossa arena prioritária é a da auto-organização da classe e dos oprimidos nas suas múltiplas faces.
No continente, os avanços da legalização do aborto na Argentina, México, Colômbia e Chile, a derrota da extrema-direita pela coalizão liderada por Boric (que ainda precisará se provar como uma alternativa de esquerda, mas é fruto do ascenso de massas que impôs a derrota da organização constitucional pinochetista naquele país). Assim como a derrota de Trump foi fundamental para as e os que lutam para conter e derrotar o avanço da extrema-direita no mundo, derrota essa capitaneada pelas mobilizações de mulheres e dos movimentos negros, com destaque para o Black Lives Matter.
O difícil cenário mundial ressalta que é tarefa das mulheres do PSOL e da Insurgência derrotar o projeto fascista de morte do Governo Bolsonaro, nas ruas e nas eleições.
Eleições 2022
A militância feminista do PSOL, através da Setorial Nacional, teve um papel importante na resistência ao longo de todos esses anos. Nos governos do PT, não deixou de pautar lutas como a legalização do aborto e combate à lgbtqia+fobia e à violência de gênero, além da centralidade das opressões de gênero e raça na construção do Brasil. Na era Bolsonaro, temos feito isso não só em nível institucional, no parlamento, mas também nos movimentos sociais, com peso na construção do EleNão, do movimento negro antirracista e nas campanhas de solidariedade durante a pandemia. Termos eleito metade da bancada federal de mulheres, três delas negras, também não é um balanço secundário da intervenção das mulheres e da negritude do PSOL.
Para responder à política de morte implementada pelo bolsonarismo, é nossa tarefa lutar para derrotar Bolsonaro na eleição de 2022 e apresentar um programa feminista para o Brasil. Um programa com propostas políticas concretas de intervenção na realidade, na luta pelo fim do genocídio negro, feminino e indígena; a luta contra a fome e a insegurança alimentar, por justiça reprodutiva, na garantia do direito antissistêmico ao aborto, mas também do direito à maternidade; distribuição de renda, moradia, emprego, saúde e seguridade social.
Nesse cenário, acreditamos que apenas a candidatura de Lula tem hoje a real possibilidade de derrotar eleitoralmente a política fascista e genocida de Bolsonaro e que, mesmo representando a reedição de uma política de conciliação de classes, em um país profundamente em crise, é a esperança de melhoria imediata (ainda que limitada) de vida de milhares de brasileiras e brasileiros, mais que isso, a “onda Lula” reflete um resultado distorcido do que é hoje a principal luta da maioria da classe trabalhadora no país: SOBREVIVER À FOME, À MISÉRIA E AO ASSASSINATO FÍSICO. Precisamos retomar, minimamente, os marcos democráticos da luta política no país para fazer avançar as lutas por mudanças estruturais na vida das mulheres. Sabemos que teremos de retomar a oposição programática a um eventual governo petista, mas reconhecemos também que foi muito mais possível à esquerda fazer oposição a Lula e Dilma do que se tornou possível sob Bolsonaro e o bolsonarismo - e não podemos tapar o sol com a peneira nesse aspecto.
Ainda assim, não nos furtaremos até o fim de manifestar nossa oposição à indicação e definição de Alckmin como vice - representante legítimo da terceira via almejada pela burguesia brasileira, que não conseguiu emplacar uma candidatura viável por fora de Lula, e comandante do projeto genocida operado pelos governos tucanos no Estado de São Paulo, que resultou, por exemplo, nos massacres de 2006 (quando 434 pessoas, maioria jovens negros, foram assassinadas pelas forças policiais) e do Pinheirinho (em 2012, em São José dos Campos), além da Chacina de Osasco e Barueri (a maior desde o massacre do Carandiru, sob o governo Fleury). Alckmin pode até dar à chapa de Lula alguma legitimidade perante o “mercado”, mas como Temer, não hesitará em dirigir um novo golpe se as elites brasileiras considerarem necessário. E ainda vai desmobilizar uma parcela da vanguarda que foi fundamental no ‘Vira-Voto de 2018’ e tirar votos de uma parte dos trabalhadores.
Temos o desafio de incidir sobre um PSOL mais feminino, negro, periférico e indígena. Nesse sentido, ressaltamos a necessidade de garantia de candidaturas fortes de mulheres cis e pessoas trans, com investimento da militância, com financiamento, tempo de TV, etc. Nosso PSOL não pode retroceder no papel que tem tido de referência frente a essas populações e movimentos. A violência política racista e transfóbica de gênero é parte central dos governos autoritários, e tem escalado rapidamente nos últimos anos. Portanto, esse tema deve ser alvo constante de nossa atenção e preocupação. Devemos pressionar para que as estruturas organizativas e partidárias possam enfrentá-la e proteger nossas militantes, mandatas e figuras públicas.
O período pós-eleitoral, no entanto, exigirá muito de nós. Fazer uma leitura crítica do novo governo Lula, diante da manutenção da existência do bolsonarismo. Isso exigirá estarmos muito mais organizadas.
Nesse contexto eleitoral e pós-eleitoral, precisamos incidir no PSOL no sentido de que ele consiga garantir uma identidade que preserve seu papel histórico de ser um partido socialista comprometido com as transformações radicais da realidade. Nesse sentido, ainda que compreendamos a importância da campanha Lula/Fora Bolsonaro, não podemos admitir a composição do PSOL no possível futuro governo federal do PT.
Nesse sentido, é preciso que avancemos para:
- Solidariedade às mulheres ucranianas e à auto-determinação do povo daquele país, pelo fim imediato da invasão promovida pelo governo capitalista e imperialista de Putin na Ucrânia. Solidariedade com a oposição russa à guerra e defesa da libertação imediata dos presos políticos pelo estado russo! Pelo fim das guerras imperialistas e da OTAN!;
- Resistir à ofensiva permanente do capital sobre a vida e a reprodução da classe trabalhadora;
- Fortalecer as nossas candidaturas feministas, negras, periféricas e LBTs;
- Nessas eleições, construir a campanha do Lula para derrubar Bolsonaro, pautando em nossas candidaturas e atuação geral de campanha a disputa de um programa feminista sólido radicalmente anticapitalista, antirracista e ecossocialista, de propostas para o Brasil que respondam às demandas das mulheres, negros e negras, populações periféricas e indígenas e da classe trabalhadora em geral;
- Na hipótese de vitória de Lula, incidir fortemente para que o PSOL não componha futuro governo e mantenha a coerência que foi sua marca nos primeiros 15 anos de governos petistas e que o fez o partido de esquerda que mais cresceu no país (em militância, número de filiados e representações parlamentares), e que nos deu autoridade para estar na linha de frente da luta contra o golpe sem exercer o papel de quinta coluna nem do petismo e nem do sectarismo. O PSOL nasceu como oposição de esquerda aos governos petistas e é nesse lugar que deve se manter diante de medidas e política sociais-liberais, ainda que em momentos que a luta antifascista exija possamos e devamos fazer necessárias unidades de ação nas ruas e até no parlamento.